quinta-feira,21 novembro, 2024

Os erros que as empresas cometem ao adotar a inteligência artificial sem reflexão ou estratégia

Para Silvio Meira, um dos maiores especialistas em inovação e tecnologia do país, as empresas precisam olhar para a IA não como uma ferramenta, mas como uma nova dimensão da realidade, onde poderão tomar melhores decisões

Fundador e cientista-chefe da consultoria estratégica tds.company, professor extraordinário da Cesar School e professor emérito do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Silvio Meira é um dos maiores especialistas em inovação e tecnologia do país. Um dos fundadores do Porto Digital de Recife, também faz parte do conselho de empresas como CI&T, Magalu, MRV e Tempest, e acompanha de perto o desenvolvimento do ambiente de negócios brasileiro.

Diante das transformações robustas pelas quais o mercado vem passando, Meira faz um alerta para as empresas: “Há uma falta de estratégia em relação aos investimentos em IA”. Para ele, muito mais do que inserir tecnologia na operação, as organizações precisam repensar e redesenhar o negócio como um todo, olhando para a IA não como uma ferramenta, mas como uma nova dimensão da realidade — uma aliada na tomada de decisões se as lideranças souberem, de fato, como usá-la.

Autor de mais de trezentos artigos científicos e dos livros “O que é estratégia?” (2021) e “Novos negócios inovadores de crescimento empreendedor no Brasil” (2013), Meira foi eleito um dos 100 brasileiros mais influentes pela revista Época em 2007. Em 2011, foi escolhido pelo jornal O Globo como personalidade do ano da economia brasileira. Em 2013, a revista Galileu o escolheu um dos 100 brasileiros mais influentes na web. Em 2021, recebeu o Prêmio Newton Faller da Sociedade Brasileira de Computação.

Em entrevista exclusiva a Época NEGÓCIOS, ele falou sobre o impacto da IA generativa nas empresas, mudanças no mercado de trabalho, regulamentação da tecnologia e as possibilidades de o Brasil se tornar competitivo nessa área — o que vai demandar investimentos de longo prazo em pesquisa e desenvolvimento tecnológico e científico.

Confira os principais trechos da conversa a seguir.

Época NEGÓCIOS – O ano de 2023 foi marcado por investimentos robustos em inteligência artificial (IA), tanto de grandes empresas quanto de negócios menores. Startups de IA se destacaram no mercado, por exemplo. Você acredita que, em 2024, esses investimentos vão continuar?

Silvio Meira – O que eu vejo é uma falta de estratégia nos investimentos, não em todas as empresas, mas em boa parte delas. Muitos dos investimentos que vêm sendo feitos carecem de reflexão. Há um certo frenesi sobre inteligência artificial, um sentimento muito grande de que ‘se eu não entrar nessa, vou perder esse bonde’. Três em cada quatro CTOs ou líderes de tecnologia dizem que, no próximo ano, vão colocar IA em muitas facetas do negócio, se não em todas. Isso tem consequências não triviais. Por exemplo, de onde apareceu tanta gente especialista em IA? Não apareceu. Essas pessoas não existem. As empresas terão que trabalhar em redes, isto é, descobrir parcerias que entendam o que fazer e por que fazer. O como fazer é muito mais fácil. Agora, ter uma estratégia de valor da IA no negócio é muito mais complicado, e aqui há uma quebra de entendimento. A IA não é uma ferramenta, é uma nova dimensão da realidade. E como dimensão da realidade, você tem que tratar isso como um vetor que habilita um novo espaço. Existe a inteligência individual e a inteligência coletiva dentro das organizações. É preciso haver uma imersão da IA que se articule com a inteligência coletiva e pessoal, isso é o mais precioso.

A IA é muito mais do que uma ferramenta para gerar textos ou imagens, ela habilita uma nova classe de tomada de decisões instrumentadas por dados e interatividade, se a gente souber usá-la para tal. Agora, isso requer um entendimento razoavelmente profundo de estratégias para lidar com IA nas organizações. E é nisso que estamos pecando mais, no momento. Há pouca reflexão, pensamento, competência. As empresas correm o risco de se perder de maneira estrutural, jogando IA dentro dos negócios para fazer um monte de coisas sem pensar no impacto, efeitos, mudanças e na competitividade da organização. O que está em jogo não é colocar IA na operação e ponto final, é redesenhar o negócio.

Você mencionou a falta de preparo dos profissionais para lidar com IA. Qual o impacto dessa tecnologia no futuro do mercado de trabalho? Há risco real de aumento do desemprego?

Sempre existe risco real de aumento de desemprego quando você introduz uma nova dimensão nos mercados – na transição de carroças para motores a combustão, por exemplo. Nenhuma fábrica de carroças conseguiu com sucesso montar um automóvel, porque o motor não apenas substituiu o cavalo, ele redesenhou completamente o mercado. Saímos da terra para as rodovias asfaltadas, criamos os postos de gasolina… Toda uma nova arquitetura foi desenhada, inclusive boa parte do aquecimento global que vivemos hoje foi criada pelo motor a combustão. É uma mudança de estrutura.

Voltando aos grandes modelos linguísticos, os GPTs. GPT significa “generative pre-trained transformer”, mas a sigla GPT tem outro significado em economia: “general purpose technologies”, isto é, tecnologias de propósito geral. São aquelas cujos usos não estão limitados ao propósito específico da tecnologia no mercado. Elas se expandem, porque novas aplicações começam a ser desenhadas sobre elas para todo o mundo que tenha capacidade de usá-las.

Por exemplo, um profissional de atendimento. Quando você treina esse profissional, você não dá para ele uma enciclopédia do produto, serviço, da empresa. Você o treina em perguntas e respostas. Quando você treina um grande modelo de linguagem, você insere nele uma enciclopédia de dados. Isso vai ser adicionado a todo treinamento que ele tem sobre informações abertas, e ele será capaz de responder literalmente qualquer pergunta sobre qualquer coisa. Então, tarefas cognitivas, mas que são repetitivas, estão imediatamente obsoletas, e isso inclui o trabalho de advogados, jornalistas, designers, ilustradores, impacta o campo das engenharias, dos programadores.

Os grandes modelos de linguagem também são capazes de criar letras de músicas, vídeos, desenhos, livros, roteiros de filmes. A criatividade humana está ameaçada?

Tenho uma frase para isso. Penso que os grandes modelos linguísticos representam a obsolescência iminente do profissional criativo mediano e todo mundo abaixo dele. E a razão é a seguinte: a criatividade é um algoritmo. Se você resolve criar uma xícara de café, para ser criativo fazendo isso, primeiro você tem que saber a história do café, a história das xícaras, depois o design de xícaras associados a mesas, culturais locais, isto é, um painel de tudo o que já foi feito sobre xícaras de café e que ninguém fez ainda. Isso para que alguém olhe e diga: que coisa bela, ou linda, ou funcional. Descrevi o que é um algoritmo de fazer uma xícara. O que isso significa? Que o profissional criativo de música, roupa, sapato, móveis também executa um algoritmo. Se ele executa um algoritmo, a gente pode colocar uma máquina para executar da mesma forma. O profissional que reproduz sem criar em cima do algoritmo está obsoleto, não agora exatamente, mas em pouco tempo. Os acima de medianos são os profissionais que vão redefinir o algoritmo da criatividade, porque estes redefinidores são aqueles que repensam e refazem o “como fazer, como criar, por que criar”. Estes redefinidores estão fora do alcance dos modelos linguísticos. Agora, os copiadores estão ameaçados. Se você foi treinado na universidade para desenhar joias de uma certa forma e vai seguir ‘by the book’, você está obsoleto. Isso vale para qualquer profissão criativa.

Hoje o Brasil é um mercado muito mais consumidor de IA do que produtor da tecnologia, cujo desenvolvimento está concentrado nos Estados Unidos e na China. Como o Brasil pode se tornar competitivo em relação à adoção de IA?

Primeiro, tendo uma estratégia de ciência e tecnologia de IA propriamente dita e do uso de IA nas outras áreas de ciência e tecnologia. Por exemplo, grandes modelos linguísticos afetam a maneira como você faz pesquisa. Você pode analisar dados de um experimento de forma muito mais eficaz e eficiente, mas não apenas isso, pode desenhar o experimento todo usando IA. Existe, sim, uma interferência muito grande de grandes modelos linguísticos em todas as áreas da ciência humana. Agora, o que está envolvido nisso: você não forma um especialista em IA da noite para o dia. Formar um PhD em IA, um mestre em IA capaz de entender as fundações por trás de grandes modelos linguísticos leva anos. Dá para o Brasil entrar nisso de forma competitiva? Sim. Da forma como está sendo feito agora? Não. Depende de investimento de grande porte a longo prazo. O Brasil tem investimento em IA, mas é ridículo, de R$ 10 milhões, R$ 15 milhões, com poucas dezenas de pessoas envolvidas. Precisa de muito mais gente envolvida, e de muito mais dinheiro, porque R$ 10 milhões não mexe o ponteiro da comunidade científica. Vai ter mais paper publicado? Vai, mas isso não se traduz em ganho de competitividade.

Qual sua opinião sobre regulamentação da IA? Há iniciativas na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil temos o PL 759/23. Que tipo de diretrizes regulatórias essa tecnologia demanda?

Veja, quando a gente tem que regular alguma coisa? Quando a gente entende o que é, para que serve, como funciona e quais são os riscos que isso representa para os mercados, para a economia e para as pessoas. A gente não sabe o suficiente sobre IA para fazer isso. E, no Brasil, há uma tendência em criar impossibilidades, isto é: não pode fazer isso, não pode fazer aquilo. Tanto a interpretação europeia quanto a americana é de descobrir riscos enquanto se usa IA para tratar problemas reais. Nos Estados Unidos, a regra básica da pré-regulação existente é a seguinte: se você está fazendo uma IA que afeta muita gente e sabe quais são os riscos envolvidos ao usar essa IA, ou dos riscos que outras pessoas que não usam a IA também correm, vá conversar com o regulador para que ele entenda os riscos. No caso da Europa, é: se sua IA é usada por mais de 10 mil negócios, você representa risco para a sociedade porque sua IA pode ter impactos sociais e econômicos muito grandes, então vamos entender os riscos. No Brasil, não. A gente está quase emitindo regulação sem ter entendimento do que é, para que serve, como funciona. Além disso, sem ter uma política e uma estratégia de ambiente de financiamento à pesquisa e desenvolvimento para a inovação.

No documento “24 anotações para 2024”, você fala que um dos grandes desafios que as lideranças enfrentam, hoje, são aspirações ambiciosas, mas alcançáveis, que necessitam de uma estratégia robusta para sua realização. Como as empresas podem se tornar mais competitivas neste momento em que há grandes transformações em curso, inclusive estas geradas pela IA?

Essa é a pergunta que define os mercados. No Brasil, a gente é muito básico ao tratar dos negócios. O nível de ingenuidade corporativa no Brasil é muito grande, mesmo em grandes empresas. O que mais falta é gente pensando de forma abstrata, pensando na teoria do negócio. E executar uma teoria quer dizer o seguinte: dentro do negócio, você tem uma série de normas, regras, KPIs para fazer com que o negócio funcione. Quando há uma mudança para introduzir um novo produto, você tem de mexer em fundações, em processos, e no Brasil normalmente fazemos isso de forma muito simplória. Você chama alguém para dar a consultoria de mercado, alguém para a consultoria do produto, chama a agência de marketing. Estamos na economia de conhecimento. Então, quando você chama um bocado de gente de fora para fazer coisas, significa que sua capacidade de conhecimento está baixa. A gente precisa elevar o nível do pensamento estratégico nas empresas, no sentido de que empresas são coisas difíceis de fazer, executar e sustentar.

Se você olhar globalmente, é quase como se as empresas fossem feitas não para sobreviver, mas para morrer. Quantas empresas você conhece cujos produtos usa diretamente que têm mais de 100 anos? As empresas desaparecem porque são ruins, porque não entendem estratégia e não sabem reinterpretar o mercado, entender as mudanças e entrar em novos mercados quando o mundo exige. Adiantaria hoje eu ter uma empresa de fax e melhorar meu serviço de fax? Não, porque o mercado de fax acabou, não importa que eu melhore meu serviço. Isso que é necessário desenvolver dentro de uma empresa para ela ser sustentável: capacidade de aplicar conhecimento estratégico nessas mudanças drásticas. Quem define a empresa não é o mercado, é o entendimento de mundo que ela tem.

A inteligência artificial se tornará consciente um dia? Há algum risco para a humanidade, se isso acontecer?

Imagine que a gente construísse uma rede neural com 100 bilhões de elementos e ela fosse feita de forma biológica. Construiríamos essa rede de tal forma que cada um desses 100 bilhões de neurônios conseguissem se conectar entre eles de forma natural, com um algoritmo tão simples que esses neurônios conseguiriam escolher, singularmente e em grupos, com quais outros neurônios se conectar, por meio de estímulos externos, como luz, som, tato. A gente já tem todos os sensores. O que a gente não tem em escala, mas temos em laboratório, em pesquisas, é esse mecanismo de criar uma rede de centenas de bilhões de neurônios biológicos. O que eu acabei de descrever foi um cérebro. Qual a diferença deste cérebro que eu acabei de descrever para o meu e para o seu? Nenhuma.

Então, temos as ferramentas para criar cérebros em escala? Sim. A gente vai querer fazer isso? É um mega dilema ético. Mas esse negócio está num horizonte distante. Não acho que teremos isso nessa década. Nada impede que uma empresa tente fazer isso, associado a grandes modelos linguísticos, que entendam de mercado, de sociedade, do que for, e com capacidades muito acima de seres humanos. É um cenário distópico? Não. E nem utópico. É um cenário que tem probabilidade real de acontecer, dentro de certo prazo que não é agora.

Mas vamos voltar para a realidade. A vasta maioria do trabalho humano é mediana, e digo isso de todos nós, eu, você. Em um mês de trabalho, em quantos dias você fala: ‘Nossa, hoje fiz algo extraordinário’? No dia a dia, somos medianos, vez por outra fazemos algo incrível. Entenda: estou falando do trabalho. Todos os humanos são especiais, mas a vasta maioria do trabalho humano é muito básica, inclusive em tarefas cognitivas. O problema não é você substituir um advogado, o problema é que, com a IA, 50% das funções realizadas por um advogado mediano podem ser substituídas, e aí teremos uma crise social de proporções épicas. Um escritório que tinha 50 advogados vai precisar só de 20. O que os outros vão fazer? Existe uma demanda social e humana imediata e um processo de up-skilling de elevar o nível de competências e habilidades das pessoas para lugares que a gente nunca pensou anteriormente.

Então, a gente não precisa se preocupar hoje com inteligências artificiais gerais nem com inteligências censcientes, que dominam espaços de autonomia e socialização humanas. Deixa isso lá pra frente. O problema de agora é muito maior do que isso.

Fonte: Época Negócios

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