domingo,24 novembro, 2024

Inteligência Artificial desafia docentes a repensar o fazer pedagógico

A IA passa por um período semelhante àquele que vivemos na década de 1990, quando navegávamos sem saber ao certo como seria o futuro

Assim como foi com o advento da Internet, a inteligência artificial tem passado por um período semelhante àquele que vivemos na década de 1990, quando, em meio a descobertas e discussões, navegávamos sem saber ao certo como seria o futuro.  

Bem, o futuro está posto e hoje é impensável uma realidade sem a já velha “World Wide Web”. 

Com a IA, sobretudo no contexto da Educação, alunos e professores enfrentam dificuldades para desbravar a ferramenta de uma forma que seja, de fato, útil. Como ir além dos chatbots, ChatGPT e similares e buscar entender a contribuição que esses recursos podem trazer para formação e desenvolvimento do estudante? 

A grande preocupação já migrou da adoção tecnológica em si para o impacto que ela pode promover na promoção da diversidade e inclusão, inovação, sustentabilidade e bem-estar, tanto que foram esses os grandes temas explorados durante a Bett UK, um dos maiores eventos de educação e tecnologia do mundo, que aconteceu no final de janeiro, em Londres. 

Como integrante da comitiva brasileira, tive a oportunidade de visitar escolas, universidades, empresas de tecnologia, a Feira e o Congresso Bett Show. Apesar de todas as diferenças entre as realidades britânica e brasileira, foi interessante observar que, quando falamos na preparação dos professores e alunos para incorporar uma Cultura Digital em suas vidas, vemos que os desafios são praticamente os mesmos. 

E o que é Cultura Digital? 

O termo define o conjunto de práticas, valores, e conhecimentos que emergem do uso e da influência das tecnologias digitais na vida cotidiana. A Cultura Digital abrange a forma como as pessoas interagem com dispositivos, internet e plataformas de mídia social, influenciando comunicação, criação de conteúdo, compartilhamento de informações e construção de comunidades. 

A cultura digital também envolve a compreensão de questões relacionadas à privacidade, ética digital, cidadania digital e o impacto das tecnologias na sociedade. Ela molda novas formas de aprendizado, entretenimento, trabalho e relações sociais, refletindo a integração profunda da tecnologia no tecido social. 

A quinta competência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) diz que os estudantes devem “compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva”. 

Para aproximar o conceito da nossa realidade, basta se perguntar: sei usar todas as funcionalidades do meu smartphone de última geração? Identifico as ferramentas de IA presentes nas interações que promovo com este aparelho? Se eu mesma não tenho clareza, como posso entender e repassar o conhecimento tecnológico adiante? Apesar de haver muitos recursos digitais disponíveis, poucos ainda estão aculturados e sendo utilizados de forma plena pela comunidade acadêmica, assim como pela população de forma geral. 

Para ilustrar, imagine um programa capaz de traduzir o que você fala em tempo real, com a sua voz e imagem, em qualquer idioma? Um único recurso de IA com o poder de limar as profissões de tradutor e dublador? Pois saiba que ele já existe e está sendo embarcado nas novas gerações de smartphones lançadas em 2024.  

Diante de algo dessa magnitude, é natural vir à tona a reflexão do porquê aprender ou ensinar um novo idioma. É normal que alguns educadores queiram proibir e fechar as portas para a Inteligência Artificial. O recorte de uma pesquisa apresentada em uma das conferências do evento mostrou que quase um terço dos professores e professoras acredita que a profissão deles vai desaparecer totalmente com o avanço da IA. 

Mas, e se esses mesmos professores tivessem mais habilidade para explorar e utilizar os recursos de IA presentes nos aparatos tecnológicos que eles têm à disposição, será que responderiam a pesquisa da mesma forma? A insegurança de não saber lidar com esses recursos e administrá-los junto aos alunos pode ser contornada? 

Como mencionei, os profissionais do setor em todo o mundo possuem os mesmos dilemas, algo que ficou claro com uma enquete feita no evento e que listou os principais desafios do uso das tecnologias para fins pedagógicos. Foram mencionados: investimento em feedback individual; ferramentas fáceis de usar; uso de sistemas integrados e compatíveis; um time melhor de TI para apoiar os professores; mais treinamento; mais tempo para estudar; reduzir e centralizar o número de plataformas; apoio aos professores sem habilidades tecnológicas; prover soluções inteligentes; e melhorar o custo. 

Mesmo que no Brasil a conectividade das escolas ainda seja uma questão a ser amplamente resolvida, o cotidiano do docente parece universal e requer políticas públicas nacionais para equacioná-lo. É evidente que não adianta jogarmos um turbilhão de novidades em cima deles sem formação e avaliação dos resultados na aprendizagem dos estudantes. 

Qual o papel da escola? 

Também não podemos perder de vista para quem ensinamos e por qual motivo ensinamos. Não podemos nos encantar de novo com os recursos disponíveis e perdermos de vista a verdadeira essência do processo educacional. Para ilustrar, comento algumas das aulas que assisti, do início ao fim, em uma escola pública, católica e bastante tradicional de Londres. 

As atividades na Cardinal Vaughan Memorial School foram ministradas com disciplina rígida e uso restrito de tecnologias digitais. Somente uma lousa eletrônica e um projetor multimídia estavam disponíveis em sala de aula. Os alunos não podem utilizar celulares ou outros recursos durante a aula e o acesso às tecnologias está disponível somente no laboratório de informática que oferece aulas com ensino de programação, fazendo uso de desktops. 

A escola foca na formação dos estudantes para desenvolvimento da competência de comunicação e construção do pensamento crítico e analítico, com uma didática bem estruturada, o que contempla atividades de aquecimento, debates e exemplos para posterior apresentação de uma proposta de atividade prática. 

Nas quatro aulas que assisti, todas fizeram uso de situações do mundo real, que apoiados pela leitura de gráficos e tabelas orientavam a discussão promovida pelo professor. Posteriormente, os alunos eram orientados a registrar suas próprias reflexões e percepções por meio das atividades propostas pelas diferentes disciplinas, inclusive matemática. 

Falar em Inteligência Artificial também é entender o conceito de Fake News e Deep Fakes. Por isso, exercitar o pensamento crítico e analítico se mantém como habilidade essencial. 

Apesar da ausência de tecnologias digitais, as aulas lá têm um ritmo constante e com atividades cadenciadas, o que exige dos estudantes foco total. Os professores parecem estar aptos para conduzir as atividades e muito atentos a tudo o que ocorre no espaço da sala de aula. O resultado? A escola pública é a 4ª no ranking de alunos que ingressam na renomada Universidade de Cambridge. À sua frente, três escolas particulares. 

O resultado já é bom sem o uso de tecnologias digitais, o que reforça que uma boa pedagogia contribui para o desenvolvimento dos estudantes. Agora imagine essa mesma didática potencializada pela disponibilização de acesso a recursos tecnológicos, com professores bem preparados para promover discussões sobre fatos encontrados pelos alunos em sua imersão no espaço virtual? 

Imagine estes professores promovendo discussões e reflexões que vão além daquelas trazidas por eles e apresentadas em seus planos de aula? O resultado não poderia ser ainda melhor? 

Devemos enxergar as escolas como locais que usam tecnologia em favor dos processos de aprendizagem e identificar como cada tecnologia, inclusive a IA, pode contribuir com a formação e desenvolvimento dos estudantes. Um relatório recente da UNESCO faz “apelo urgente ao uso apropriado da tecnologia na educação”, pede para acelerar a oferta de Internet nas escolas e adverte que a tecnologia não pode jamais substituir o ensino presencial, ministrado por professores. 

Por aqui, o governo federal lançou em setembro do ano passado a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas para universalizar a conectividade com fins pedagógicos nas escolas públicas de educação básica, bem como apoiar a aquisição e melhoria dos dispositivos e equipamentos das unidades escolares. Pretende-se conectar 138,4 mil escolas até 2026 e, até lá, precisamos de uma estratégia eficiente. 

O processo já começou e aos poucos novas escolas públicas estão sendo conectadas, abrindo uma janela para o mundo aos estudantes. Aculturá-los nesta nova realidade, desenvolver competências e habilidades para que tirem melhor proveito das oportunidades geradas pelo acesso à Internet, inclusive com uso de IA, é fundamental para formação de um novo sujeito e de uma nova sociedade, muito diferente daquela que se constituiu com o advento da WWW. 

Precisamos, cada vez mais, de sujeitos críticos e participativos, capazes de entender o universo em que estão inseridos e que tenham as competências e habilidades necessárias para agir neste mundo de forma plena em tempos de IA. Os avanços tecnológicos precisam integrar todas as etapas educacionais em vez de virar o “Dia do Filme” do século XXI. 

Créditos: Luciana Allan, Doutora em Educação pela USP e diretora técnica do Instituto Crescer, onde há mais de 20 anos lidera projetos nacionais e internacionais na área de educação 

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