sexta-feira,22 novembro, 2024

O misterioso sequestro que pode ter impedido avanço de energia solar no início do século passado

Um dos argumentos apresentados em defesa dos combustíveis fósseis é que eles foram uma necessidade histórica, já que não havia substitutos viáveis (para a geração de energia) em grande parte do século 20.

Por isso, a humanidade teria uma dívida de gratidão com os combustíveis fósseis, já que eles impulsionaram o nosso desenvolvimento.

E se eu dissesse a você que havia uma alternativa viável e que ela pode ter sido sabotada pelos interesses do setor de combustíveis fósseis desde a sua criação?

Ao pesquisar sobre a viabilidade econômica das inovações no setor de energia limpa, encontrei uma história pouco conhecida: a do inventor canadense George Cove, um dos primeiros empreendedores do setor de energias renováveis.

Cove inventou painéis solares domésticos, com aparência excepcionalmente similar aos que são instalados nas casas hoje em dia. Eles incluíam até mesmo uma bateria rudimentar para manter a energia disponível quando o Sol não estivesse brilhando no céu.

Mas isso não foi nos anos 1970. Nem mesmo na década de 1950. Foi em 1905.

A empresa de Cove se chamava Sun Electric Generator Corporation e tinha sede em Nova York, nos Estados Unidos. Seu capital era de US$ 5 milhões (cerca de US$ 160 milhões ou R$ 810 milhões, em valores atuais).

A ideia dos painéis solares já recebia ampla atenção da imprensa em 1909. A revista americana Modern Electrics, por exemplo, destacou que “em dois dias de sol… [o aparelho] armazenará energia elétrica suficiente para iluminar uma casa comum por uma semana”.

‘Aproveitando a luz solar’: a reportagem sobre as recém-inventadas placas de energia solar, publicada 114 anos atrás

A publicação salientava que a energia solar barata poderia libertar as pessoas da pobreza, “trazendo luz, aquecimento e energia a baixo custo e liberando as pessoas da luta constante pelo pão”.

A reportagem prossegue, especulando como até os aviões poderiam ser alimentados por baterias carregadas pelo Sol. Um futuro com energia limpa parecia estar disponível para quem quisesse desfrutar dele.

Interesses ocultos?

Mas, segundo notícia publicada no jornal The New York Herald em 19 de outubro de 1909, George Cove foi sequestrado.

A condição imposta para sua libertação era que ele desistisse da sua patente solar e fechasse a empresa. Cove se recusou, mas acabou sendo libertado perto do zoológico do Bronx, em Nova York.

Depois desse incidente, seus negócios com a energia solar fracassaram – o que parece algo estranho. Afinal, nos anos anteriores ao sequestro, ele havia desenvolvido diversos modelos do aparelho solar, cada um mais avançado que o outro.

Painel solar de Cove em 1909
Legenda da foto,Painel solar de Cove em 1909

Não posso afirmar com certeza se havia interesses ocultos envolvidos.

Algumas pessoas da época acusaram Cove de forjar o sequestro para conseguir publicidade. Mas isso não faz sentido, especialmente porque a atenção da imprensa para o seu invento não faltava.

Outras fontes sugerem que um antigo investidor poderia estar por trás do ocorrido.

O que se sabe, entretanto, é que as jovens companhias do setor de combustíveis fósseis costumavam desenvolver práticas inescrupulosas contra seus concorrentes.

E a energia solar era uma ameaça, pois é uma tecnologia inerentemente democrática – afinal, todos têm acesso ao Sol – que pode empoderar os cidadãos e as comunidades. Já os combustíveis fósseis exigem a construção de impérios empresariais.

A Standard Oil, liderada pelo primeiro bilionário do mundo (John D. Rockefeller, 1839-1937), esmagou completamente os concorrentes, forçando o governo americano a instituir leis antitruste para combater os monopólios.

Da mesma forma, o lendário inventor Thomas Edison (1847-1931) eletrocutou cavalos, animais de criação e até um ser humano na fila de execução, usando a corrente alternada do seu rival Nikola Tesla (1856-1943). O objetivo era mostrar os perigos da corrente alternada, para favorecer a tecnologia do próprio Edison – a corrente contínua.

A empresa Sun Electric, de propriedade de Cove, com suas placas solares autônomas, teria prejudicado os negócios de Edison, que previam a construção de uma rede elétrica utilizando energia a carvão.

Houve alguns esforços isolados para desenvolver energia solar após o sequestro de Cove. Mas não houve atividade comercial importante nas quatro décadas seguintes, até a retomada do conceito pela Bell Labs, o setor de pesquisa da Bell Telephone Company, nos Estados Unidos.

Enquanto isso, os setores de carvão e petróleo cresceram em velocidades sem precedentes, apoiados por políticas governamentais e pelos dólares dos contribuintes. Enquanto isso, a crise climática provavelmente já estava em andamento.

Quatro décadas perdidas

Quando descobri a história de Cove, eu quis saber o que o mundo havia perdido naqueles 40 anos. Para isso, desenvolvi um exercício intelectual.

Usei um conceito conhecido como Lei de Wright, que se aplica à maior parte dos bens renováveis. Trata-se da ideia de que, à medida que se aumenta a produção, os custos são reduzidos devido aos aprimoramentos e aprendizado do processo.

Apliquei este conceito para calcular o ano em que a energia solar teria ficado mais barata do que o carvão.

Para isso, considerei que a energia solar teria crescido modestamente entre 1910 e 1950 e estimei em quanto tempo essa “experiência” adicional teria se traduzido em redução de custo.

Em um mundo no qual Cove fosse bem sucedido e a energia solar competisse com os combustíveis fósseis desde o princípio, a eletricidade gerada pelo Sol teria superado o carvão em 1997, com Bill Clinton presidente dos Estados Unidos e no auge das Spice Girls.

Na realidade, isso só aconteceu em 2017.

Retrato de George Cove
Legenda da foto,Pioneiro da energia solar, o canadense George Cove também patenteou um aparelho gerador de energia das marés

Século alternativo

É claro que esta estimativa parte do princípio de que o sistema energético não sofreria alterações. E é possível que toda a trajetória das inovações energéticas tivesse sido muito diferente, se a energia solar estivesse disponível já em 1910 e nunca desaparecesse.

Talvez mais dinheiro de pesquisa fosse direcionado para o desenvolvimento das baterias que ajudariam na descentralização da energia solar, por exemplo. Neste caso, a rede elétrica e as ferrovias que foram usadas para sustentar a economia movida a carvão teriam recebido muito menos investimentos.

Alternativamente, outros avanços mais recentes da industrialização poderiam ter feito com que a energia solar decolasse, de forma que a continuidade do trabalho de Cove não trouxesse avanços significativos.

Em última instância, é impossível saber exatamente qual caminho a humanidade teria tomado, mas eu aposto que a eliminação de um intervalo de 40 anos no desenvolvimento da energia solar poderia ter feito com que o mundo economizasse imensas quantidades de emissão de carbono.

Pode parecer doloroso refletir sobre esse grande “e se” enquanto as condições climáticas se degradam à nossa volta. Mas esta análise pode nos oferecer algo de útil: o conhecimento de que produzir energia a partir do Sol não é nada radical, nem mesmo novo. É uma ideia tão velha quanto as próprias companhias do setor de combustíveis fósseis.

A predominância dos combustíveis fósseis até o século 21 não era inevitável. Ela foi uma escolha, sobre a qual poucos de nós opinamos.

Os combustíveis fósseis se desenvolveram inicialmente porque não sabíamos de seu impacto ambiental e, depois, porque o lobby havia se tornado tão poderoso que resistiu às mudanças.

Mas ainda há esperança. A energia solar fornece agora a eletricidade mais barata que a humanidade já viu. E os custos continuam despencando, conforme avança seu desenvolvimento. Quanto mais rápido caminhamos, maior é a economia.

Se abraçarmos o espírito de otimismo verificado na época de Cove e tomarmos as decisões tecnológicas corretas, ainda poderemos construir o mundo abastecido pelo Sol que ele idealizou tantos anos atrás.

* Sugandha Srivastav é pesquisadora de pós-doutorado em economia ambiental da Academia Britânica na Universidade de Oxford, no Reino Unido.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em inglês.

Texto: Sugandha Srivastav/ BBC

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