sexta-feira,22 novembro, 2024

Sisteminha faz 21 anos e ganha versão voltada ao empreendedorismo comunitário

O Sistema de Produção Integrada de Alimentos, conhecido como Sisteminha, acaba de completar 21 anos como uma das tecnologias sociais de maior sucesso no Brasil e adotada em vários outros países. Ele permite que famílias de baixa renda possam se alimentar com o que é produzido localmente, por meio de estruturas simples montadas com recursos disponíveis no lugar. A produção excedente pode ser partilhada com vizinhos ou mesmo comercializada. Ela ganha agora uma versão para auxiliar as famílias a gerar renda por meio do empreendedorismo comunitário, o Sisteminha Comunidades.

Combatendo a fome no Brasil, na África e expandindo para a América do Sul
Desenvolvido em parceria entre Embrapa, Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), o Sisteminha é empregado em 14 estados brasileiros e 8 países africanos: Gana, Uganda, Etiópia, Camarões, Tanzânia, Angola, Senegal e Moçambique e está sendo levado a países da América do Sul.

No estado do Maranhão, está presente nas comunidades familiares mais carentes, abaixo da linha da pobreza e em insegurança alimentar, como as pertencentes aos Territórios dos Cocais e Baixo Parnaíba maranhenses.

Atualmente, além de contribuir para a segurança alimentar e nutricional da família, quando instalado com ênfase na comunidade, a produção é incrementada para atender ao mercado local, podendo se tornar modelo de empreendedorismo e desenvolvimento comunitário. Esse processo de escalonamento da produção do Sisteminha está sendo conduzido pela Embrapa Cocais (MA), em algumas comunidades do Maranhão e Piauí, com resultados promissores. O Maranhão adotou a tecnologia em projetos de desenvolvimento social em comunidades indígenas, quilombolas e áreas periféricas (leia aqui).

Como funciona o Sisteminha
A tecnologia social é apropriada para produzir alimentos em pequenos espaços em áreas urbanas e rurais para atender às necessidades nutricionais de uma família de quatro a cinco pessoas, de acordo com as recomendações nutricionais da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em um quintal de tamanho entre 100 e 1,5 mil metros quadrados, o Sisteminha expressa toda sua versatilidade, sendo possível a produção de peixes, ovos e carne de galinhas e codornas, suínos, porquinhos-da-índia, grãos, legumes, frutas, hortaliças, húmus de minhoca e composto orgânico, entre outros. Além de garantir a alimentação básica às famílias, possibilita também a geração de renda, por meio da comercialização do excedente da produção.

Toda a implantação do projeto é voltada para a redução de custos e seguindo modelo agrícola sustentável. “É uma metodologia simples, de fácil construção, que não interfere culturalmente nas famílias e consegue retirar as pessoas da situação de pobreza e miséria, gerando segurança e soberania alimentar em menos de sete meses. E o principal, ensina as famílias a conquistarem sua independência alimentar e nutricional, melhorando sua autoestima e capacidade de resolver problemas relacionados à execução das atividades”, explica o criador do Sisteminha, o zootecnista Luiz Carlos Guilherme, pesquisador da Embrapa.

O coração do Sisteminha
O Sisteminha utiliza a piscicultura intensiva praticada em pequenos tanques construídos com materiais diversos, como papelão, argila e plástico. O tanque para a produção de peixes (tilápias) tem capacidade de 8 mil a 10 mil litros de água. Todos os módulos se beneficiam em algum momento da produção de nutrientes oriundos do tanque de peixes, capaz de produzir entre 100 e 120 quilos de tilápia em três ciclos por ano. Ao fim de cada ciclo, os peixes chegam a pesar entre 200 e 300 gramas.

A partir da recirculação dos nutrientes provenientes do tanque de peixes, é possível obter um sistema de produção integrado de frutas e hortaliças – irrigados com efluentes e resíduos sólidos gerados do tanque –, aves e pequenos animais, que beneficia todos os módulos do sistema, organizados de acordo com a disponibilidade e interesse do produtor. A água residual da criação dos peixes, rica em sólidos orgânicos, é usada na alimentação das minhocas e irrigação dos canteiros convencionais de horticultura e hidroponia. É um biofertilizante que contém macronutrientes como nitrogênio e potássio, além de fósforo, magnésio, enxofre e cálcio. O esterco das aves e pequenos animais, por meio da compostagem, é curtido e se transforma em húmus com auxílio das minhocas. Em seguida esse adubo natural retorna ao cultivo dos vegetais.

Segundo Luiz Guilherme, o Sisteminha permite o uso de fontes alternativas de energia e garante às famílias alimentação equilibrada durante o ano todo. A plantação é escalonada, ou seja, o plantio é feito aos poucos; assim a colheita é gradual, para não faltar nem sobrar muitos alimentos. Em cada fase, algo é acrescentado. “É um ‘pacote’ de soluções tecnológicas integradas que consiste na integração do tripé peixe, aves e húmus, em associação ou rodízio com outras atividades da cadeia alimentar, tendo, como ponto central da produção integrada, a piscicultura intensiva. Outro diferencial do Sisteminha é que, por exemplo, a própria produção de peixes em tanques sequestra mais de 60% do carbono que poderia ir para a atmosfera. Tecnologia sustentável social, econômica e ambientalmente”, resume o pesquisador.

A inovação desenvolvida e que viabilizou a tecnologia foi a simplificação do biofiltro utilizado no sistema de recirculação da água do tanque de criação de peixes. Ele permite a degradação da amônia (tóxica para os peixes), que é transformada em nitrato pela ação bacteriana. Por isso, o tanque, que consegue oferecer água rica em nutrientes para as plantações, é o módulo principal, considerado o “coração” do Sisteminha. “Conseguimos simplificar o material do biofiltro, o que reduziu em mais de 99% o custo: um balde, cordas de nylon desfiadas, um cano de PVC, uma mangueira de limpeza de piscina e uma garrafa pet. Essa redução dos custos permitiu fazer a criação dos peixes em pequenos espaços com garantia de qualidade”, explica Guilherme.

O tanque rústico de peixes pode ser composto de madeiras, bambu e talos disponíveis na própria propriedade, amarrados por fios de garrafa pet ou afins, podendo ser revestido por papelão como parede e usando a argila como acabamento. Em alguns casos, pode ser revestido com plástico para melhorar a impermeabilização e, por fim, recoberto com a lona plástica para a retenção de água. Dentro do tanque, a água com restos de ração e fezes passa por um sedimentador que retém o material sólido. Antes de voltar para o tanque, a água passa pelo biofiltro. No interior, centenas de fios de nylon cheios de bactérias que decompõem a amônia. Com a evolução dos trabalhos em campo, foram sendo construídos tanques de tijolos e de placas de concreto.

Respeitadas as dimensões de um tanque circular, que resultem em armazenamento de 10 mil litros de água, em uma lâmina de 70 cm a 80 cm, muitas alternativas construtivas são viáveis. Embora o formato retangular seja possível, o tanque redondo com raio de 1,2 m e 0,7 m de profundidade é o mais indicado, por facilitar a circulação da água, concentrando resíduos sólidos no centro do tanque, de onde são sugados.

Curso online
Está disponível na plataforma de ensino à distância da Embrapa o curso “Sisteminha – Gerenciamento de Projetos”, voltado, preferencialmente, a agentes municipais e estaduais, professores e interessados na tecnologia. A capacitação é gratuita e tem duração de 30 horas. Inscrições e mais informações estão disponíveis no Espaço Virtual de Aprendizagem da Embrapa.

Do empreendedorismo familiar ao comunitário
Embora seja simples, o Sisteminha tem que ser gerido como uma empresa. A princípio, sem fins lucrativos, mas com clientes: os próprios integrantes da família beneficiada. Os insumos utilizados, como sementes e ração, por exemplo, devem ser escolhidos visando à produtividade. “Porque não adianta você receber um animal, um pintinho GLK, ISA Brown, com a capacidade de postura de até 300 ovos por ano e não alimentá-lo com ração balanceada específica ou substituí-la por milho e outros alimentos alternativos, que não suprem a necessidade imposta pela alta produção”, observa Guilherme.

Segundo explica o autor da tecnologia, no modelo de execução individual, a família é responsável pela gestão de toda a cadeia produtiva do Sisteminha, incluindo a aquisição de insumos, obtenção de informações técnicas e comercialização dos produtos excedentes, de acordo com as possibilidades de negócios que aparecem (escambo ou venda). “Mesmo com limitações, consegue-se, por meio de alguns multiplicadores populares, racionalizar e organizar a produção de alimentos e a geração de excedentes. No entanto, o ônus do processo individual de produção não contribui para a formação de uma rede que possa atuar diretamente com o mercado, de modo a profissionalizar o empreendedorismo individual da família, uma vez que o mercado, nesse caso, não é prioridade, mas sim a segurança alimentar,” detalha Guilherme. “O Sisteminha Comunidades, novo modelo do Sisteminha proposto pela Embrapa Cocais, vem para integrar o mercado nas atividades de produção.”

O modelo do Sisteminha Comunidades favorece a execução coletiva nas comunidades e a produção escalada de alimentos. Com isso, o empreendedorismo vai além da estabilização da segurança alimentar e nutricional da família. O excedente da produção dos alimentos pode ser compartilhado, trocado ou vendido entre a comunidade das famílias e comercializado no mercado local para compra coletiva dos insumos e demais necessidades do negócio. “O papel dos multiplicadores populares é essencial para o sucesso do empreendimento coletivo. São eles que levam o conhecimento técnico-científico para o entorno das comunidades, assim sucessivamente, movimento que pode ser potencializado nas regiões com o apoio institucional”, destaca o pesquisador. Ele afirma que a versão escalada da tecnologia é o Sisteminha melhorado e foca no desenvolvimento socioeconômico da região com sustentabilidade.

A união que faz a diferença
Na comunidade quilombola São Martins, em Paulistana, sudoeste do Piauí, o impacto da produção coletiva viabilizada pelo Sisteminha Comunidades alterou positivamente os índices de desenvolvimento humano. Diversas oportunidades de negócios ocorreram, transformando a comunidade em exemplo de sucesso. As famílias já lidam bem, e coletivamente, com o mercado de insumos, os produtos e a gestão das atividades.

A comunidade conheceu o Sisteminha em 2015; implementado inicialmente por uma única família, ele serviu de modelo para as demais. A experiência vingou e, em novembro de 2020, a comunidade recebeu apoio de projetos governamentais que contemplaram 25 das 103 famílias. Divididos em cinco grupos, os moradores montaram uma fábrica de placas de cimento para construir os 25 tanques em regime de mutirão. Também dessa forma foram montados os 25 galinheiros. O foco são os peixes e as galinhas de postura. De um modo geral, cada família produz de 18 a 20 ovos por dia e cerca de 30 a 40 quilos de tilápia a cada três meses. Para inovar, estão introduzindo o frango de corte branco de peito duplo, uma linhagem industrial.

Os pesquisadores observaram mudanças como o empoderamento das mulheres, a ocupação dos homens desempregados, a diminuição do êxodo rural e a melhoria geral da qualidade de vida das pessoas. A comunidade compra os insumos e compartilha e intercambia a produção entre si e comercializa o excedente. “Hoje conseguimos produzir o nosso próprio alimento. Vejo, orgulhosa, a minha comadre fazendo bolo sem precisar comprar ovos. Já podemos vender batatas para comprar açúcar e vender uma dúzia de ovos para comprar manteiga. A minha avaliação é totalmente positiva”, conta Milena Martins, da Associação de Quilombolas e coordenadora de Apoio das Comunidades Quilombolas do Estado do Piauí.

“O Sisteminha Comunidades estimulou a produção e a comercialização com qualidade, variou e melhorou o hábito alimentar com a inserção comercial dos produtos vindos dos nossos quintais. Antes só se consumia peixe na quaresma ou na semana santa; frutas, verduras e hortaliças vinham de Petrolina (PE) e Juazeiro (BA); ovos eram sempre comprados em Paulistana (PI). Hoje temos tudo isso na comunidade, com qualidade, e ainda podemos incrementar a produção com mais estrutura”, conta Ivanete Pereira Rosa, presidente da Associação da Comunidade Quilombola São Martins.

Agostinho Orlando Pereira é representante de mais uma família impactada pela tecnologia. Para ele, transformação e conhecimento são sinônimos do Sisteminha. “Nossa vida mudou, e muito. O que se via de ano em ano agora temos em casa todos os dias. A cada dia aprendemos mais com o cultivo da agricultura familiar e somos multiplicadores populares na região. Ajudamos mais famílias a se alimentar verdadeiramente e se articular coletivamente para que mais pessoas alcancem esses benefícios.”

No município de Inajá (PE), o Sisteminha Embrapa/UFU/Fapemig tem 19 unidades em dez comunidades e mais quatro serão implantadas, duas delas em uma escola indígena na cidade de Itacuruba (PE). A técnica Cláudia Leal, responsável pela implantação da tecnologia, conta que, na comunidade Caraibeirinhas, em Inajá, o Sisteminha já iniciou de forma comunitária e, atualmente, cada família possui sua própria unidade, não deixando de ajudar uns aos outros sempre que necessário.

As famílias de Caraibeirinhas são um exemplo de cooperativismo, pois vendem seus excedentes agroecológicos via WhatsApp com direito à entrega no município. “Toda família da comunidade tem Sisteminha e todos dividem coletivamente desafios e soluções. Houve falta de água e juntos construímos um poço artesiano. Todos os benefícios do Sisteminha – fartura na mesa, independência, dignidade, saúde e qualidade de vida, consciência ambiental – são alcançados cada dia por mais e mais pessoas. É um projeto coletivo de amor, uma semente do bem”, declara.

Fonte: Embrapa Cocais

Redação
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