Tudo ou nada: Como as bets estão mudando o jogo do consumo no Brasil

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O sucesso das apostas on-line no Brasil colocou o País como o terceiro do mundo em consumo da modalidade, com 2,3% do orçamento das famílias sendo apostado. Além disso, segundo levantamento do Banco Central, estima-se que 5 milhões de famílias beneficiárias do programa Bolsa Família enviaram R$ 3 bilhões às empresas de apostas on-line via Pix apenas em agosto de 2024. Como resposta, o Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias, anunciou o bloqueio do cartão do Bolsa Família como meio de pagamento em plataformas de bets.

A moral dessa história – pelo menos, até aqui – é que as apostas on-line já deixaram de ser um fenômeno pontual e transformaram-se em um novo comportamento de consumo do brasileiro. Apesar da expectativa por novas regulamentações que freiem esse avanço, as bets já ocupam um espaço na vida e nos bolsos dos apostadores.

A questão é: Se todo esse montante está indo para as plataformas de apostas on-line, como o varejo e o mercado de consumo estão sentindo essa transformação? Com o bolso do consumidor cada vez mais apertado devido à inflação, à alta da inadimplência e às demais inconstâncias no cenário macroeconômico, alguém está deixando de ganhar. E, uma vez que a projeção é que esse mercado alcance um faturamento de mais de R$ 100 bilhões até 2026, segundo a Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo e do Instituto de Desenvolvimento, Turismo, Cultura, Esporte e Meio Ambiente (IDT-CEMA), as apostas esportivas e os cassinos on-line não estão do lado perdedor.

“Esse é um negócio que veio para ficar”, alerta Michel Alcoforado, antropólogo e sócio-diretor do Grupo Consumoteca. “O consumidor, que está com a máquina do cassino no bolso, se vê mais disposto a jogar e, obviamente, tem deixado de comprar para poder tentar a sorte”, alerta. 

O fenômeno das bets

No Brasil, as apostas esportivas são legalizadas desde 2018, a partir da promulgação da Lei nº 13.756. A nova legislação permitiu que casas de apostas nacionais e internacionais de quota fixa – ou seja, em que o apostador tem conhecimento sobre o quanto pode receber em caso de acerto – funcionassem nos País. No entanto, as exigências para que as operadoras de apostas pudessem se estabelecer no Brasil só foram formalizadas em 2023, por meio da Lei nº 14.790. A regra também incluiu a participação de jogos on-line de cassino, sendo apenas as apostas esportivas permitidas no País.

A partir de então, o fenômeno das bets alcançou novos patamares, com a entrada de novos players de peso e a disseminação de anúncios e propagandas das plataformas. No futebol, por exemplo, 19 dos 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro assinaram patrocínios com casas de apostas – apenas o Cuiabá não conta com uma parceria comercial do tipo.

Já em agosto de 2024, o Banco Central estimou que cerca de R$ 20,8 bilhões foram transferidos via Pix para casas de apostas e jogos on-line. Outra estipulação, agora da XP Investimentos, aponta que as plataformas poderão arrecadar entre R$ 90 bilhões e R$ 130 bilhões no ano.

Segundo levantamento do Banco Central, entre janeiro e setembro de 2024, cerca de 24 milhões de pessoas físicas participaram de apostas on-line, realizando ao menos uma transferência via Pix para as plataformas de bets. A maioria dos apostadores tem entre 20 e 30 anos de idade, mas o estudo ressalta que pessoas de diferentes idades se engajam em jogos de azar pela internet. Enquanto os apostadores mais jovens gastam em média R$ 100 por mês, os mais velhos chegam a depositar valores acima de R$ 3 mil.

Na cabeça do apostador

Mas por que essas pessoas começaram a apostar? Segundo levantamento da QuestionPro em parceria com o Instituto Locomotiva, as principais influências para o indivíduo começar a apostar são:

  • Anúncios veiculados pela televisão e pelo rádio (39%)
  • Propagandas em aplicativos e sites (37%)
  • Recomendação de amigos (36%)
  • Publicações em redes sociais (29%)
  • Bônus recebido (25%)
  • Patrocínio a times esportivos (23%)
  • Notícias (16%)

Além disso, 80% dos apostadores acreditam que assistir a esportes se tornou mais emocionante depois que começaram a apostar, e 77% passaram a acompanhar mais partidas e disputas depois que deram início às apostas. Ainda, 77% dos apostadores acreditam que ganhar dinheiro com as bets depende de uma combinação de sorte e conhecimento.

A percepção de que é possível utilizar um conhecimento que se acredita ter – e, assim, não depender apenas da sorte para vencer uma aposta – faz com que o consumidor brasileiro, historicamente acostumado a “fazer uma fezinha” no jogo do bicho ou nas loterias, se sinta ainda mais atraído. E os motivos para isso vão além do entretenimento.

Como explica Michel Alcoforado, o consumidor entende que os possíveis ganhos vão permitir um upgrade de categoria para consumir produtos e serviços mais premium – que, geralmente, não cabem no seu orçamento mensal e, por isso, está deixando de comprar para apostar. “No cálculo dele, o acesso a pequenos luxos, possibilitado pelo retorno pontual que a aposta pode dar, faz a restrição momentânea valer a pena”, aponta. “Então, não tem problema comer salsicha um dia se no outro ele poderá comprar um filé-mignon.”

Consumo e renda comprometidos

O resultado de tudo isso é que mais de R$ 124,3 bilhões foram injetados em plataformas de apostas on-line nos últimos 12 meses, segundo levantamento do Grupo Consumoteca, representando 2,3% do orçamento familiar médio, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Na prática, 54% do volume apostado – ou seja, R$ 66,8 bilhões – está deixando de ir para o consumo das famílias brasileiras. E quais são os efeitos desse novo comportamento de consumo no mercado? Em primeiro lugar, marcas e subcategorias que costumavam fazer parte do dia a dia das pessoas estão deixando de ser consumidas para dar lugar às apostas.

Mesmo que haja algum retorno da “fezinha”, ele será destinado a marcas, produtos e serviços premium, alterando um padrão histórico de consumo.

Segundo Jorge Gonçalves Filho, presidente do Instituto para Desenvolvimento do Varejo, os efeitos das apostas on-line no mercado brasileiro já são sentidos há tempos, mas somente recentemente foi dada a devida visibilidade ao tema. “Temos o efeito econômico, que retirou dos diversos mercados de consumo e serviços em 2023 algo entre R$ 70 e R$ 90 bilhões, e com previsão de alcançar R$ 200 bilhões em 2024”, aponta.

O executivo chama a atenção para uma certa semelhança entre um dos objetivos do varejo e das bets. “O varejo trabalha intensamente na fidelização dos seus clientes, buscando ser lembrado, dando compensações para fomentar a demanda, criando hábitos e experiências, que sempre busquem a felicidade e a satisfação do consumidor, e agregando valor ao estilo de vida e aos bens ofertados”, explica. “As bets e os jogos on-line também usam ferramentas semelhantes na busca da fidelidade, oferecendo valores e aparentes vantagens para as pessoas iniciarem no vício do jogo.”

A competição pela atenção e preferência do consumidor, utilizando, inclusive, estratégias e comunicações próximas, impõe um desafio ainda mais para varejistas e empresas de bens de consumo.

Todos serão “bets”?

Como, então, as empresas podem recuperar os valores que estão sendo destinados às apostas on-line? Uma hipótese é elas mesmas criarem verticais de bets – algo que já acontece de forma tímida.

Por se tratar de um mercado tão massivo e em constante expansão, novas empresas de apostas on-line têm surgido, inclusive aquelas criadas por organizações com diferentes modelos de negócio. É o caso do Grupo Bandeirantes, que em outubro lançou sua própria plataforma, a BandBet – resultado da colaboração entre a Bell Ventures Digital e a OpenBet, que pertence ao grupo Endeavor, dono do Ultimate Fighting Championship (UFC) e da World Wrestling Entertainment (WWE).

Outras empresas de mídia, como Globo e Grupo Silvio Santos, também já estão trabalhando em suas próprias plataformas.

“A crescente das apostas faz com que outros segmentos tradicionais da economia brasileira acabem vendo uma oportunidade de diversificar seus negócios”, explica Bruno Carazza, economista e professor associado da Fundação Dom Cabral. “As bets são muito relevantes para outros mercados no Brasil, como o setor Publicitário e de Mídia. No caso do futebol, são as principais anunciantes de clubes no Campeonato Brasileiro. Não se trata de um fenômeno isolado da economia e, por isso, desperta um interesse de diversificação de atividades.”

“Bad run”

Segundo levantamento do Instituto Locomotiva, em 2024, a maior parte dos apostadores (86%) ficou endividada devido aos jogos de azar, estando 64% negativados na Serasa. Dos consumidores endividados e inadimplentes no Brasil, 31% apostam em bets.

Ainda, 45% dos apostadores ouvidos pela pesquisa afirmam que as apostas já causaram prejuízos financeiros, enquanto 37% declaram ter usado recursos destinados a outros objetivos importantes em suas vidas para fazer apostas on-line. Já 30% admitem que as bets provocaram prejuízos nas relações pessoais.

Em um cenário no qual 72,64 milhões de pessoas estão inadimplentes no Brasil, segundo o Mapa da Inadimplência e Renegociação de Dívidas da Serasa, as apostas on-line apresentam-se como um verdadeiro agravante. Apesar de os apostadores esperarem, principalmente, ganhar dinheiro com as apostas (53%), eles também buscam por diversão (22%), emoção e adrenalina (10%), passar o tempo (7%), curiosidade (6%) e aliviar o estresse (2%).

Ainda, os apostadores indicam sentimentos positivos, como emoção (54%), felicidade (37%) e alívio (11%). Além disso, 42% apontam que as apostas são uma forma de escapar de problemas ou emoções negativas.

Por isso, aumenta-se o risco de essas pessoas desenvolverem ludopatia – o vício em jogos –, doença reconhecida pela Organização Mundial de Saúde caracterizada pela necessidade de continuar jogando para obter emoção e ativar o sistema de recompensa do cérebro.

Outro impacto importante causado por esse comportamento está relacionado à disponibilidade de crédito para o consumidor – o que deve frear ainda mais a economia brasileira. “O número de pessoas que estão adquirindo problemas financeiros por causa das apostas é crescente, e isso começa a ameaçar, inclusive, a concessão de crédito. Cada vez mais, do ponto de vista das empresas, será necessário ter mais cautela e critérios para a concessão de crédito, para identificar padrões de clientes que podem estar se comprometendo com apostas, o que pode resultar em maior calote nos empréstimos e em uma inadimplência futura”, alerta Bruno Carazza.

CAIO ROCHA, diretor de Autenticação e Prevenção à Fraude da Serasa Experian

Para além disso, a Serasa Experian aponta uma preocupação em relação às fraudes no ambiente das apostas on-line. Segundo pesquisa realizada pela organização, 13% dos apostadores afirmam terem sido vítimas de golpistas que se apropriaram de seus dados nas plataformas de apostas – e o número salta para 31% entre aqueles que realizam apostas diariamente. Entre as vítimas, 65% tiveram perdas financeiras e 81% perderam até R$ 1 mil.

Ainda, 43% dos respondentes mostram-se muito preocupados com fraudes, especialmente com golpes envolvendo o uso indevido de identidade e vazamentos de dados financeiros e cadastrais. Por isso, 85% dos respondentes afirmam optar sempre, ou frequentemente, por plataformas que consideram seguras.

“Por isso, a nova regulamentação das casas de apostas exige a revalidação de todas as contas, o que deve mitigar esse tipo de golpe, protegendo os apostadores e ajudando as empresas a identificar e a banir contas fraudulentas”, aponta Caio Rocha, diretor de Autenticação e Prevenção à Fraude da Serasa Experian. O executivo destaca que, embora não exista uma bala de prata para contornar esse desafio, a prevenção à fraude tem tido a oportunidade de aprimorar suas plataformas e soluções de proteção de identidades digitais utilizando a Inteligência Artificial.

“Temos uma guerra de tecnologias. Se o fraudador usa a Inteligência Artificial para atacar, a gente usa para contra-atacar – e até antever potenciais ameaças. Não é possível prevenir esses golpes sem tecnologia.” Rocha cita o exemplo do treinamento e aprimoramento de modelos de Machine Learning – ou aprendizado de máquina – que detectam quando uma face é gerada por Inteligência Artificial.

O cenário é crítico, tanto que a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) tem publicamente manifestado sua preocupação com os aspectos sociais e econômicos dos jogos de apostas no Brasil, “em especial sobre o endividamento das famílias, bem como sobre o uso indevido do mercado de bets para a prática de ilícitos financeiros”, como destaca comunicado oficial da Federação. No entanto, como contornar esses impactos em prol de uma relação de consumo mais harmoniosa e menos prejudicial ao consumidor e apostador?

Ainda, 43% dos respondentes mostram-se muito preocupados com fraudes, especialmente com golpes envolvendo o uso indevido de identidade e vazamentos de dados financeiros e cadastrais. Por isso, 85% dos respondentes afirmam optar sempre, ou frequentemente, por plataformas que consideram seguras.

BRUNO CARAZZA, economista e professor associado da Fundação Dom Cabral

“Por isso, a nova regulamentação das casas de apostas exige a revalidação de todas as contas, o que deve mitigar esse tipo de golpe, protegendo os apostadores e ajudando as empresas a identificar e a banir contas fraudulentas”, aponta Caio Rocha, diretor de Autenticação e Prevenção à Fraude da Serasa Experian. O executivo destaca que, embora não exista uma bala de prata para contornar esse desafio, a prevenção à fraude tem tido a oportunidade de aprimorar suas plataformas e soluções de proteção de identidades digitais utilizando a Inteligência Artificial.

“Temos uma guerra de tecnologias. Se o fraudador usa a Inteligência Artificial para atacar, a gente usa para contra-atacar – e até antever potenciais ameaças. Não é possível prevenir esses golpes sem tecnologia.” Rocha cita o exemplo do treinamento e aprimoramento de modelos de Machine Learning – ou aprendizado de máquina – que detectam quando uma face é gerada por Inteligência Artificial.

O cenário é crítico, tanto que a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) tem publicamente manifestado sua preocupação com os aspectos sociais e econômicos dos jogos de apostas no Brasil, “em especial sobre o endividamento das famílias, bem como sobre o uso indevido do mercado de bets para a prática de ilícitos financeiros”, como destaca comunicado oficial da Federação. No entanto, como contornar esses impactos em prol de uma relação de consumo mais harmoniosa e menos prejudicial ao consumidor e apostador?

Há limites para as apostas?

Na visão de Jorge Gonçalves Filho, do Instituto para Desenvolvimento do Varejo, deveria ocorrer a proibição total das bets e dos jogos on-line ou, no mínimo, tornar mais rigorosa a regulação publicada pelo governo até o momento. “Realisticamente, da forma como está sendo feita a regulação das bets e dos jogos on-line, será difícil contornar seu crescimento, o que afetará cada vez mais o consumo”, afirma.

Essa perspectiva é compartilhada pelas previsões do estudo do Grupo Consumoteca, o qual aponta que mudanças abruptas na legislação vigente, como a imposição de restrições ou novas exigências para o licenciamento, podem aumentar o custo de operação das plataformas de bets no País. Isso reduziria a rentabilidade dessas empresas, assim como a atratividade do mercado brasileiro para novos players.

Para o professor Bruno Carazza, da Fundação Dom Cabral, uma vez que os efeitos das apostas on-line têm sido significativos no mercado, há maior pressão para que o Governo Federal aperte as regras para empresas do setor. “A regulação vigente estabeleceu regras e tributação para tentar colocar as contar públicas em ordem, com o propósito de arrecadação fiscal. Entretanto, observamos que essa regulação acabou sendo um estímulo para a entrada de várias bets, tanto legais quanto ilegais”, afirma.

JORGE GONÇALVES FILHO, presidente do Instituto para Desenvolvimento do Varejo

Ainda, no dia 12 de novembro, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, determinou que o Governo Federal deve impedir beneficiários de utilizar recursos de programas sociais, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, para fazer apostas e que a regulação e o controle dessa nova premissa devem ser de responsabilidade do Ministério da Fazenda. Ainda, o ministro determinou na decisão liminar, referendada pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal, que devem entrar em vigor medidas que proíbam anúncios de bets que tenham como público-alvo crianças e adolescentes.

“Hoje, vemos ações nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na tentativa de criar regras mais duras para coibir esse mercado no Brasil”, explica o professor. “Por exemplo, o governo pensar em uma forma de evitar que os consumidores utilizem o cartão de crédito – o que poderia gerar um efeito cascata em relação aos juros – e restringir o uso do Pix no período da noite e de madrugada.”

Porém, depender de ações do governo para frear esse fenômeno pode colocar as empresas em uma posição ainda mais complicada. Dados do Grupo Consumoteca mostram que 92% dos consumidores pretendem continuar suas apostas on-line em bets esportivas no próximo ano, sendo 51% com a mesma frequência e valor e 7% com uma maior frequência ou valor.

Pagar para ver as bets ocuparem um espaço permanente no bolso dos consumidores não pode ser uma opção – seja pela redução do consumo, seja pelos riscos de inadimplência ou pelo impacto que isso pode gerar na concessão de crédito e na sustentabilidade da economia brasileira. Para que todos não paguem a conta, frear esse avanço para criar uma relação de consumo mais harmoniosa deve ser prioridade.