Símbolos de resiliência, animais chegam a percorrer mais de seis mil quilômetros em mar aberto; aventura começa já ao nascer quando, com 5cm, elas deixam a África
A Marina da Glória abriga bem mais do que embarcações. Construída para a comodidade humana, ela se tornou o que pode ser o maior refúgio de tartarugas-verdes do mundo. Um projeto de pesquisa indica que as águas à volta da marina são o lar de uma das maiores densidades da espécie do planeta e que cerca de duas mil delas moram lá. Elas vêm de longe, da África em sua maioria. Cruzam o Atlântico e elegem o Rio de Janeiro para passar a juventude.
Ver uma tartaruga-verde é apreciar um animal que sobreviveu a tempestades de dimensões ciclônicas, ondas gigantes, tubarões e orcas. Não à toa, são consideradas as guerreiras dos oceanos pelos cientistas. Nas águas da Glória, encontram alimento nas algas que crescem ali em abundância e águas quentes e sem predadores, embora poluídas.
— Nos fascina a história das tartarugas da Baía de Guanabara. São incrivelmente fáceis de observar, apesar de todo impacto da presença humana — diz o coordenador do Projeto Tartarugas Cariocas e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Gustavo Baila.
E as tartarugas fazem mais do que a alegria dos frequentadores da orla da Baía de Guanabara. São sentinelas do mar, indicadoras importantes da saúde ambiental e da presença de contaminantes perigosos para o ser humano.
Desafio à fúria do clima
Numa época de mudança climática, nadam sem descanso por milhares de quilômetros e enfrentam algumas das condições mais hostis da Terra até chegar ao Rio. Algumas sucumbem à fúria do clima. Em julho, oito delas foram lançadas mortas em praias na esteira de uma tempestade.
No passado, perseguidas e caçadas, as tartarugas eram chamadas de “galinhas do mar”, mas hoje o risco maior é a poluição. Ainda assim, perseveram. E os cientistas esperam que, se a melhora da balneabilidade observada este ano continuar, mais chances elas terão de sobreviver e se multiplicar.
— Com os dados de marcação e recaptura entre os anos de 2022 e 2023, a estimativa preliminar é que existam cerca de duas mil tartarugas vivendo na área da Marina da Glória — afirma Baila.
O projeto realiza o primeiro censo das tartarugas do Rio e contempla análises sobre saúde e ecologia. Os animais são coletados e depois soltos para estudos de genética e detecção de poluentes, entre outros.
Além da FURG, integram o projeto financiado pela Faperj, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e as ONGs Caminho Marinho e Instituto Mar Urbano (IMU).
A marina é o porto seguro para as protagonistas de uma das mais longas e perigosas sagas do mundo animal. Sessenta por cento delas vêm da África. Algumas fazem travessias que superam seis mil quilômetros de mar aberto.
Outras 30% chegam da ilha oceânica de Ascenção, uma possessão britânica no meio do Atlântico, a 2.249 quilômetros da Ponta do Funil, em Pernambuco, o ponto mais próximo no território brasileiro.
Apenas 10% são originárias de praias do litoral brasileiro. Os cientistas sabem disso graças a estudos de genética populacional.
Gustavo Baila conta que elas deixam a África logo após nascer. Não medem mais do que 5cm. Ainda assim, nadam por pelo menos cinco dias, sem descanso, até o meio do Atlântico:
— Esses cinco dias são os mais difíceis da vida delas, pois são frágeis e precisam escapar da predação na praia e, depois, na água por peixes, como dourados e atuns.
Até alcançarem por volta dos 30cm, o tamanho de um prato, vivem no meio do Atlântico. O mais provável é que fiquem nos giros, lugares de convergência de circulação oceânica, que acumulam todo tipo de criatura à deriva. É um período de um a quatro anos, chamado de “anos perdidos” pelos pesquisadores.
No mar aberto, enfrentam ondas gigantes, ciclones com ventos acima de 100km/h, tubarões, orcas. A maioria das tartarugas que chega à Baía de Guanabara tem cerca de dois a três anos. Elas permanecem por aqui até chegarem à maturidade sexual, quando medem aproximadamente 70cm. Isso faz com que fiquem cerca de 20 anos, quando é chegado o período de “namoro” e reprodução.
E, então, elas viajam para as praias de desova, dando início a um novo ciclo. A falta de parceiras disponíveis pode fazer com que machos verdes se reproduzam com fêmeas de tartaruga-cabeçuda, outra espécie encontrada no litoral do Brasil, embora em águas mais profundas. Híbridos já foram identificados, embora isso não seja bom para nenhuma das espécies.
A maior parte da vida das tartarugas-verdes permanece misteriosa. Os cientistas procuram na Baía de Guanabara outras áreas de concentração da espécie. Há milhares de anos elas fazem a travessia. Mas ninguém sabe, por exemplo, para onde iam antes da marina, inaugurada em 1979, nem quando começaram a se concentrar por lá.
As tartarugas são capazes de vocalizar, se comunicam, mas o que dizem não se tem pistas. E cada animal tem sua identidade, com marcas nas escamas laterais, que são únicas como as digitais humanas. Sua lentidão não passa de mero mito. Velozes, podem acelerar até 36km/h.
Elas chegam a viver um século e crescem no ritmo do clima. São consideradas adultas quando medem mais que 89cm, podendo alcançar 1,40m. Tornam-se adultas com 25 anos, se crescerem no Rio de Janeiro, onde as águas mais quentes favorecem seu desenvolvimento. Porém, animais que optam pelo Rio Grande do Sul e o Uruguai podem só atingir a maturidade aos 50 anos porque as águas são mais frias.
A chegada da idade adulta é o momento do adeus. Algumas seguem para África, mas há áreas de desova em Trindade, Fernando de Noronha e Atol das Rocas. Na África, a desova ocorre em praias de São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau e Guiné Equatorial.
No olho da tempestade
Na marina, não há predadores. Os perigos são a contaminação da água e a pesca acidental. Algas são o prato favorito das tartarugas, mas elas são onívoras e não dispensam nada que pareça comida, mesmo não sendo. E, por isso, não raro, ingerem plásticos, abundantes nas águas poluídas da baía.
Tumores são o maior problema de saúde das tartarugas. São frequentes e têm várias causas, entre elas, um vírus do herpes específico desses répteis expostos a poluentes.
Os cientistas já encontraram também animais com bactérias resistentes a antibióticos, contraídas nas águas poluídas que recebem esgoto doméstico, industrial e de hospitais.
— Se alguma coisa estiver errada, as tartarugas vão nos contar, pois estampam em seus corpos efeitos da poluição. É triste ver nelas as consequências da ação humana — destaca a pesquisadora Rosane Silva, professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ, cujo grupo investiga as bactérias resistentes e a sua origem na Baía de Guanabara.
O presidente do IMU, Ricardo Gomes, um dos maiores conhecedores das águas da Guanabara, já se deparou muitas vezes com esses répteis carismáticos e jamais deixa de se maravilhar. Gomes acredita que a redução da poluição na baía observada este ano possa estar contribuindo para a diminuição dos tumores.
Para os pesquisadores, as tartarugas materializam também nossos desafios.— Tartarugas são símbolos de resiliência. Mas estão no olho da tempestade das mudanças do nosso tempo. Dentre tantos lugares, elas escolheram o Rio. São símbolos também de nossa responsabilidade planetária — alerta Baila.
Texto: Ana Lúcia Azevedo