Para Edson Tse, professor de Stanford, especialista em IA e profundo conhecedor da economia chinesa, é preciso usas as novas tecnologias para criar iniciativas de impacto social que tragam retorno imediato à empresa
“Como é possível explorar o vasto potencial da tecnologia para criar impacto positivo na sociedade?” Este é o tema principal do evento Tech for ESG Innovation, que acontece nesta segunda-feira (4) em Pequim, na China, a partir das 22h (horário de Brasília), com transmissão online. A conferência é promovida pelo Financial Times China e pela comunidade global de inovação THINC.
A palestra mais esperada do evento é do expert em IA e economia de impacto Edison Tse, diretor do Centro Asiático de Ciência e Engenharia da Universidade de Stanford, um dos fundadores da Advanced Decision System (ADS), uma companhia de software com ênfase em IA, e membro do conselho do grupo de fundos belga KBC Fund Management.
Em seu painel, Tse deve mostrar como as empresas ocidentais podem seguir o exemplo de companhias chinesas como Tencent e Alibaba, que aliaram inovação social, tecnologias de ponta e conhecimento do cliente para criar impérios que promovem a prosperidade social. Esse é o tema de seu recém-lançado livro “Digital Systems Philanthropy: Technology Empowered Innovation Thrives in China” (numa tradução livre: Sistemas Digitais de Filantropia: como a inovação alimentada pela tecnologia prospera na China).
Confira a seguir os principais trechos da entrevista exclusiva que Edison Tse concedeu a Época NEGÓCIOS.
Época NEGÓCIOS – Você acredita que novas tecnologias, como a inteligência artificial, podem ter um papel decisivo nas mudanças de que o planeta precisa?
Edison Tse – Eu acredito que a tecnologia será fundamental para criar impacto social, e que as empresas estarão prontas para fornecê-la. Veja bem, se você precisa de transparência ou de rastreabilidade em um projeto, o blockchain pode te ajudar, certo? Ou vamos dizer que esteja envolvido em um projeto ambiental, em que são necessários muitos dados para preservar determinado bioma, e precise de algoritmos treinados para isso. De onde virão essas tecnologias? Das empresas privadas, claro. O blockchain será desenvolvido por uma fintech, que cederá sua tecnologia de graça para um projeto ambiental, por exemplo. E a IA pode vir de uma empresa de IA generativa. Mas por que essas empresas fariam isso? Bom, para começar, para criar outro uso para a tecnologia. Em segundo lugar, mais pessoas vão entender como a tecnologia funciona, e isso irá ajudar a companhia a crescer. E, em terceiro lugar, pode ser que, dessa forma, crie clientes. Outro benefício é a possibilidade de testar novas tecnologias em projetos desse tipo, antes que elas se tornem comerciais.
De que maneira vê a inteligência artificial sendo aplicada a projetos de impacto social?
Eu tenho uma visão bem particular sobre IA. Eu acredito que, em certas áreas, a tecnologia pode ser muito benéfica. Em outras, pode fazer mais mal do que bem. Se usarmos a IA para tentar substituir a inteligência humana, o resultado vai ser terrível, porque você fará com que as pessoas parem de pensar e se tornem preguiçosas. É o que faz o ChatGPT, por exemplo. Depois de um tempo, não vamos mais querer escrever, ou discutir, ou mesmo pensar, o que será horrível para a sociedade.
Agora, se você usar a IA para fazer o que o ser humano não é capaz, daí a tecnologia e as empresas de IA podem contribuir, sim, para o impacto social. Vamos dizer que ela nos ajude a substituir um metal cuja produção gera resíduos tóxicos por outro mais limpo e mais eficiente, aumentando a produtividade, os empregos e a renda. Ou, então, que sirva para criar um sistema de controle de tráfico mais eficiente, que vai melhorar a mobilidade e ajudar os pequenos negócios. Ou para aumentar a previsibilidade da atividade agrícola, melhorando a renda do produtor e sua capacidade de consumir – o que vai alimentar toda a economia. Todas essas são aplicações que vão ajudar a humanidade, sem nos deixar burros nem preguiçosos.
Vamos falar sobre o seu novo livro. Como funciona essa integração entre inovação e impacto social, e como isso aconteceu mais especificamente na China?
Em qualquer país, podemos dizer que temos três sistemas. Temos a economia de mercado, que é a iniciativa privada voltada para o público. Você tem o sistema previdenciário social, que é a iniciativa pública voltada para a população. E o terceiro é o sistema de impacto (empresas privadas e organizações), que é a iniciativa privada lidando com as questões sociais. Esses três sistemas se complementam, no sentido de que todos eles colaboram para o crescimento da economia. Se você tem apenas dois desses três sistemas, o país não vai crescer, ou então vai crescer, mas de maneira desigual, criando uma economia desequilibrada. Todos os sistemas previdenciários no mundo estão ultrapassados, o que ajuda a perpetuar a desigualdade.
Eu gosto de pensar nas iniciativas de impacto social como algo integrado aos outros dois pilares da economia, mas a maioria das pessoas não pensa desse jeito. Durante muito tempo, esses três sistemas trabalharam separadamente, e isso gerou grande parte do desequilíbrio que existe no mundo hoje. Mas uma pequena revolução na China, em 2008, mudou tudo isso, fazendo com que inovação, impacto social e governo passassem a caminhar juntos. E os sujeitos dessa mudança foram as empresas digitais, porque perceberam que ajudar a sociedade fazia bem para os negócios e contribuía para a economia nacional.
Governo, empresas e iniciativas de impacto social devem andar juntos, na sua opinião?
Sim, porque um reforça o outro. Na China, eles criaram um efeito de rede, que integrou os interesses das empresas ao objetivo maior do governo, que era a prosperidade para todos. E, para conseguir essa prosperidade, o primeiro passo é erradicar a pobreza. Tudo começou com o terremoto de 2008, quando todos, empresas, governo e organizações, se uniram na mesma missão, e tudo funcionou muito bem, tanto para as autoridades, quanto para as empresas, quanto para o público, que se engajou com a causa. Depois disso, o próximo passo foi a união nacional para erradicar a pobreza. E foi assim que conseguimos, em 2020. Isso para mim é revolucionário.
Nesse movimento, a primeira coisa incrível que as empresas fizeram foi criar produtos muito atraentes com impacto social, fazendo com que as pessoas comuns se engajassem com a causa, não importando o seu poder aquisitivo. Todos sentiam que podiam colaborar. A segunda atitude disruptiva das companhas foi pegar toda a tecnologia que haviam desenvolvido e aplicar também no impacto social. A Tencent e a Alibaba fizeram isso. Por quê? Porque sabiam que a tecnologia as ajudaria a criar mais um ponto de contato com a população, por meio da empatia. E porque a tecnologia, aplicada às ações de impacto social, faria com que mais pessoas pudessem fornecer e consumir os seus produtos, em um ecossistema onde todos ganham. Se você tem um projeto rural que melhora a renda das pessoas, você cria um fornecedor e, ao mesmo tempo, novos consumidores. Por que as empresas não iam querer fazer isso? Ainda mais sabendo que todas as outras empresas vão se juntar nesse esforço, e o governo também. Dessa maneira todos vão construir juntos a renda da população. Cada companhia pode achar sua própria maneira de se envolver. E isso faz com que a economia seja sustentável no longo prazo.
Você acha que a mesma estratégia usada na China pode funcionar em outros países?
Com certeza. Todos os países têm as mesmas necessidades. Se você for ao Brasil e perguntar para um produtor rural se ele quer ajuda para se modernizar, claro que ele vai aceitar. Se você construir uma estrada, um sistema de água potável, uma infraestrutura para que o negócio dele cresça, você cria um ecossistema fornecedor e consumidor ao mesmo tempo. Dessa maneira, todos são favorecidos. É por isso que o impacto social não pode andar sozinho. Primeiro, você tem que fazer com que o governo construa a estrada. Depois, pode criar um fundo para colocar iluminação. E daí pode conseguir investidores para ajudar os negócios a crescerem.
Nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, o que se defende muito hoje é a adoção de uma agenda ESG. Como você vê essa agenda? Acha que o sistema integrado chinês é mais eficiente?
Bem, eu acho que o ESG em teoria é uma boa ideia, mas o problema é que é algo isolado. Na minha visão, a economia de mercado, o sistema previdenciário e o impacto social precisam andar juntos. Mas, no mundo ocidental, eles tendem a andar separados. E isso faz com que o efeito seja muito menor. Com um efeito menor, a companhia não se beneficia e acaba desistindo. A razão por que o sistema chinês funciona é que as companhias sentem os benefícios de forma muito clara. Quando isso não acontece, existe um hype inicial, mas daí o empenho desaparece. Daí o ESG vira uma espécie de moda, em que um consultor te diz o que fazer, mas dali a um tempo a coisa toda some. Não dá para esperar que as empresas apostem em projetos de impacto apenas para melhorar a reputação.
Vamos supor que o CEO de uma grande empresa brasileira decida seguir o exemplo das empresas chinesas. É possível dar início a esse processo sozinho?
Isso seria muito difícil. Nenhuma empresa consegue fazer isso sozinha. É preciso que todos trabalhem juntos: empresas, governo e iniciativas de impacto social, para atingir um objetivo comum. Talvez um certo grupo de empresas possa dar início a esse movimento. Na China, foram as empresas digitais. Foram a Tencent e a Alibaba que deram início a esse movimento. E foram essas duas companhias que descobriram que o impacto social poderia ser um ótimo ponto de contato com os clientes. E, depois que essas duas embarcaram nessa jornada, todas a outras foram atrás. Então, um grupo de empresas com uma causa real, que possa juntar todos os sistemas econômicos, talvez consiga realizar essa mudança em seu país.
Fonte: Época Negócios