segunda-feira,25 novembro, 2024

Sustentabilidade e saúde digital: O que aprendi em uma ida ao Alto Xingu

Nosso futuro como coletividade dependerá da nossa capacidade de criar novas formas de interação com a natureza, incluindo cooperações e parcerias com os povos que sempre preservaram a floresta

Quando Caetano Veloso escreveu a canção “Um índio”, em 1977, um futuro de destruição ambiental completa, no qual todas as populações indígenas foram dizimadas, parecia algo mais distante do que parece hoje. Na epifania tropicalista, a salvação para essa tragédia advém de uma tecnologia capaz de conectar uma “estrela colorida brilhante” e a América do Sul, quando um indígena vindo do futuro nos revela algo que pode “ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio”.

Com essa imagem na cabeça e Caetano nos headphones, cruzei o coração do Brasil até a maior reserva indígena do planeta, o Parque Indígena do Xingu. Criado em 1961, o parque se situa na fronteira sul da Amazônia brasileira e engloba uma área de 2.642.003 hectares no estado do Mato Grosso, abrigando cerca de 6.000 indígenas de 16 etnias. Na agenda, o Kuarup da aldeia kamayurá, um misto de cerimônia funerária e ritual de iniciação das jovens virgens à sociedade, quando as relações entre aldeias vizinhas são festivamente celebradas. Ao meu lado, integrantes da ONG Xingu+Catu, criada em 2022 por médicos e empresários com o objetivo de oferecer serviços de saúde a comunidades indígenas em áreas de difícil acesso.

Meu olhar científico para populações historicamente desassistidas se relaciona a um objeto de estudo maior: poderiam as soluções digitais contribuir para a promoção de equidade no acesso à saúde? Mais recentemente, a crise climática atual me trouxe novas perspectivas sobre o tema. Estudos demonstram que o setor de assistência à saúde é responsável por significativa parcela das emissões globais de gases de efeito estufa, em sua maior parte oriundos do consumo energético em sua longa cadeia de suprimentos. Em um país com dimensões continentais como o Brasil, o deslocamento terrestre ou aéreo de pacientes de pequenas localidades para grandes centros constitui fator incremental a essa conta.

Por outra via, estudos apontam ainda que povos originários e ribeirinhos estão entre as populações mais vulneráveis às mudanças do clima, o que inclui doenças relacionadas a patógenos emergentes, à poluição ambiental e à insegurança alimentar.

Nesse contexto, a implementação de práticas de ESG (do inglês Environmental, Social and Corporate Governance) na assistência à saúde é ainda um vertiginoso desafio. Na era da saúde digital, estratégias como a teleconsulta e o telediagnóstico têm grande potencial no suporte e capacitação de equipes locais, na otimização dos fluxos e construção de ecossistemas de saúde mais sustentáveis. No caso específico da saúde indígena, tais ações devem ser planejadas em consonância com as necessidades específicas desses povos, em respeito aos seus saberes ancestrais e culturalidades.

Com um viés de médico e pesquisador, volto do Xingu me fazendo novas perguntas: qual seria nossa “tecnologia salvadora”? Lembro então que, no Brasil, terras indígenas são a categoria fundiária com menores índices de desmatamento e emissão de carbono. Até aqui, ainda não inventamos uma tecnologia melhor do que uma árvore para capturar carbono da atmosfera, nem chegamos perto de entender completamente a complexidade das interações biológicas de uma floresta tropical. Em seu livro recém-lançado “Arrabalde: Em busca da Amazônia”, o documentarista e escritor João Moreira Salles nos lembra que “a episteme dos povos da floresta não atribui ao homem a centralidade na transformação do mundo”. Na cosmovisão de algumas tradições indígenas, como o Kuarup, homens e outros seres (animais, plantas, fungos, etc) alinham suas ações em interações complexas e de longo prazo. Dessa parceira nasce a floresta.

Indo além, nosso futuro como coletividade dependerá da nossa capacidade de criar novas formas de interação com a natureza, incluindo cooperações e parcerias com esses povos que sempre preservaram a floresta porque não vivem sem ela. Tão oculta quanto óbvia, como a mensagem do índio futurista do Caetano, foi essa a maior lição que o Xingu me trouxe.

Ari Araújo é médico e Doutor em Radiologia pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Instituto de Pesquisa Sírio-libanês e membro do Programa de Jovens Líderes da Academia Nacional de Medicina.

Texto: Ari Araujo

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