A quarta edição do relatório “Cumplicidade na destruição IV — Como mineradoras e investidores internacionais contribuem para a violação dos direitos indígenas e ameaçam o futuro da Amazônia”, lançado nesta terça-feira, 22, reúne uma série de dados e informações sobre o avanço dos interesses das grandes mineradoras sobre as terras indígenas no país desde 2020.
O relatório, feito em parceria entre a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a ONG Amazon Watch, também aborda o papel da indústria da mineração nas mudanças climáticas e na devastação da biodiversidade no Brasil. Além disso, o material expõe os impactos socioambientais da atividade sobre povos indígenas e suas terras, em especial na Amazônia.
Apib e Amazon Watch nomearam as empresas que lideram e financiam “a corrida pelo roubo dos recursos minerais, com o aval do atual governo brasileiro”, e tecem recomendações para pôr fim à “cadeia da destruição” nas Terras Indígenas. Entre as oito mineradoras destacadas no relatório estão as canadenses Belo Sun e Potássio do Brasil, operadas pelo banco canadense Forbes & Manhattan (F&M) e citadas ontem em reportagem exclusiva da Agência Pública.
As outras mineradoras citadas no relatório são: Vale, Anglo American, Mineração Taboca/Mamoré Mineração e Metalurgia (ambas do Grupo Minsur), Glencore, AngloGold Ashanti e Rio Tinto. Segundo Apib e Amazon Watch, estas companhias “possuem pedidos ativos sobrepostos a Terras Indígenas no sistema da Agência Nacional de Mineração; têm histórico de impactos sobre territórios e povos indígenas no Brasil, em especial, na Amazônia; e possuem vínculos com corporações financeiras internacionais”.
À Pública, Rosana Miranda, assessora de campanhas da Amazon Watch, explicou que as informações da publicação pretendem orientar novos marcos regulatórios que freiem o avanço da mineração e do garimpo sobre as terras indígenas. “Uma das expectativas é trazer a discussão para o caráter central e urgente que precisa ter sobre mineração em terras indígenas num momento em que o Congresso tenta passar esse pacote de destruição, caso do PL 191 [que abre os territórios indígenas para a mineração e outras atividades extrativas]”.
Ontem, a Agência Pública revelou, a partir de um conjunto de documentos, bastidores dos negócios entre o governo Bolsonaro e o grupo Forbes & Manhattan, com foco sobre Belo Sun e Potássio do Brasil — duas empresas ligadas a este banco de investimentos de risco canadense.
A investigação revelou como um general de brigada e velho conhecido do vice-presidente da República Hamilton Mourão (PRTB) no Exército tem feito lobby para este grupo canadense aqui no país. Tanto Belo Sun quanto Potássio do Brasil estão entre as primeiras contempladas pela Pró-Minerais Estratégicos, uma política federal criada em março de 2021 voltada para mineradoras com problemas em seus licenciamentos ambientais — como no caso das duas companhias ligadas ao F & M.
Segundo o relatório, até 5 de novembro de 2021, Belo Sun seguia com 11 requerimentos minerários ativos na Agência Nacional de Mineração (ANM) com sobreposições em terras indígenas, todos para pesquisa de ouro. Os pedidos invadem áreas dentro das terras indígenas Arara da Volta Grande do Xingu e Trincheira Bacajá, respectivamente com 7 e 4 requerimentos da mineradora canadense.
Já a Potássio do Brasil detinha 19 requerimentos minerários ativos até 5 de novembro de 2021, com sobreposições em três Terras Indígenas. Desse total, 14 dos pedidos têm interferência sobre territórios dos povos Mura, 4 sobre terras dos Munduruku e um dos Kaxuyana. O relatório aponta a Terra Indígena Jauary como a mais impactada por esta mineradora.
Em 12 desses requerimentos, os relatórios de pesquisa não foram aprovados pela ANM. Em outros 4, a agência autorizou a prorrogação dos pedidos e informou desmembramento das áreas com interferência sobre terras indígenas. Um requerimento teve pedido de desistência homologado pela ANM.
Mineradoras do grupo F&M ameaçam indígenas e ribeirinhos, segundo relatório
Apib e Amazon Watch são enfáticas ao analisarem o projeto de mineração de ouro da canadense Belo Sun, ligada ao grupo F & M. “Será o maior projeto de exploração de ouro da América Latina — e o golpe final à região da Volta Grande do Xingu”, às margens da usina hidrelétrica de Belo Monte, como afirmam no relatório recém-lançado.
As organizações também repercutem comunidades atingidas pela proposta caso Belo Sun avance. “Eles estão usando o argumento que o Brasil está passando por uma crise, e que esse empreendimento (Belo Sun) é bom. Bom pra quê? Pra quem?”, diz um morador da Vila da Ressaca em Senador Porfírio (PA), assentamento da reforma agrária na área de influência do projeto.
O assentamento está no centro da disputa por trás de um acordo de Belo Sun com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), feito com apoio de um militar da reserva. Como revelado pela Agência Pública ontem (21), o general de brigada do Exército Cláudio Barroso Magno Filho reuniu-se, em nome de Belo Sun, com a presidência do Incra um dia antes da assinatura do acordo para a concessão de uso de áreas na Vila da Ressaca, para que a mineradora garimpe ouro.
O outro projeto minerário do grupo F&M na Amazônia se destaca por razões distintas, segundo Apib e Amazon Watch. “Mineradoras podem violar direitos indígenas muito antes de suas atividades entrarem em operação, e o caso da Potássio do Brasil é exemplar nesse sentido”, afirmam as organizações.
O recém-lançado relatório aponta que a mineradora canadense “não respeitou o direito de consulta às comunidades indígenas” do povo Mura atingidas por seu projeto, Potássio Autazes, no município de mesmo nome — a pouco mais de 100 km da capital Manaus (AM). Mais de 14 mil indígenas podem ser atingidos pela iniciativa, com risco de “contaminação de fontes de água essenciais para a vida das comunidades”, segundo Apib e Amazon Watch.
As entidades destacam ainda que a Potássio do Brasil “está descumprindo decisão judicial” em seus negócios recentes. As organizações referem-se a um contrato assinado entre a mineradora do grupo F&M e a construtora chinesa CITIC. Como revelado pela Pública, os executivos-chefe destas duas companhias reuniram-se com o vice-presidente Mourão em 2019 para discutirem o projeto. Desde então, a iniciativa avança e, hoje, é avaliada como “estratégica” para o Brasil, segundo o governo Bolsonaro.
Números impressionam
O relatório denuncia o excesso de requerimentos de pesquisa mineral protocolados na ANM com impacto em Terras Indígenas a partir de uma análise feita em parceria com o projeto Amazônia Minada, do Infoamazonia. Em 5 de novembro de 2021, o Amazônia Minada identificou 2.478 pedidos ativos e sobrepostos a 261 terras indígenas no sistema da ANM. Esses processos estão em nome de 570 mineradoras, associações de mineração e grupos internacionais. Juntos, eles tentam explorar uma área de 10,1 milhões de hectares em todo o Brasil, quase o tamanho da Inglaterra.
A pesquisa encontrou um total de 225 requerimentos minerários ativos das mineradoras citadas no relatório, sobrepostos a 34 Terras Indígenas. A Vale lidera este ranking com 75 pedidos ativos, seguida pela Anglo American, com 65, e pelas duas empresas do Grupo Minsur (Taboca e Mamoré), com outros 35. Na sequência vêm Potássio do Brasil, com 19 requerimentos ativos, Rio Tinto, com 14, Belo Sun, com 11, Glencore, com 3 e AngloGold Ashanti, com 3. Os pedidos são para mineração de metais diversos, em especial cobre, ouro, níquel, sais de potássio, zircão, cassiterita, bauxita e diamante.
Os 225 requerimentos visam uma área total de 572.738 hectares, o tamanho do Distrito Federal. O Pará é o estado com a maior concentração de pedidos: 143 requerimentos sobrepostos a 22 Terras Indígenas.
As mineradoras destacadas no relatório receberam um total de USD 54,1 bilhões em financiamentos, do Brasil e do exterior, segundo Apib e Amazon Watch. No texto, as organizações afirmam que as corporações sediadas nos Estados Unidos continuam entre as principais financiadoras “cúmplices na destruição” no Brasil. Juntas, as gestoras financeiras Capital Group, BlackRock e Vanguard investiram USD 14,8 bilhões nas mineradoras com interesses em áreas indígenas e histórico de violações de direitos.
Rosana Miranda, assessora de campanhas da Amazon Watch, explica ainda que o relatório pretende pressionar as empresas que assumem compromissos formais de respeito aos povos indígenas, de respeito à sustentabilidade, a tornarem esses compromissos em ações concretas – “se colocando contra esse tipo de legislação”, explica.
Outra questão, segundo ela, é que o relatório objetiva “pressionar o capital internacional, pressionar esses outros atores e seus governos que regulam esses atores financeiros, para que eles coloquem limites na forma como esses investimentos chegam para essas empresas, para que adotem políticas mais restritivas com relação a investimentos que violam os direitos de povos indígenas e destruição da floresta”.
Após a publicação da reportagem, Vale e Anglo Gold Ashanti encaminharam a seguinte nota:
Vale
“Como já amplamente informado, a Vale não possui nenhum requerimento em terra indígena no Brasil. No ano passado, a empresa anunciou a desistência de todos os seus processos minerários em TIs no país (o que inclui requerimentos de pesquisa e lavra). Os pedidos de desistência foram protocolados na Agência Nacional de Mineração (ANM) ao longo de 2021. Essa decisão se baseia no entendimento de que a mineração em TIs só pode se realizar mediante o Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) dos próprios indígenas e uma legislação que permita e regule adequadamente a atividade. Veja mais detalhes aqui: http://www.vale.com/esg/pt/Paginas/Controversias.aspx. A Vale reforça ainda que está à disposição para esclarecer todos os pontos com a Apib e a Amazon Watch”.
Anglo Gold Ashanti
“A AngloGold Ashanti informa que não opera e não tem interesse em operar em Terras Indígenas (TIs). Na década de 1990, a produtora de ouro solicitou requerimentos de pesquisa mineral em diversas regiões no país. Três dessas áreas posteriormente foram demarcadas como Terras Indígenas (TIs), o que levou a companhia a desistir das mesmas. A decisão foi protocolada junto à Agência Nacional de Mineração (ANM) no final da década de 1990. No entanto, como não houve atualização do processo no sistema da ANM, a AngloGold Ashanti ratificou a retirada do requerimento de pesquisa em 21 de junho de 2021. Atualmente, os investimentos da empresa no Brasil estão concentrados basicamente na expansão de suas minas localizadas em Minas Gerais e Goiás”.
Fonte: A Publica