Há incontáveis mitos de inovação que protegemos, cultivamos, sacralizamos e que trazem efeitos danosos, paralisantes, mortais para nossas organizações. Aqui estão quatro deles
Nessa longa estrada como executivo, professor e consultor, já assisti a centenas de “falsos profetas da inovação” que sobem ao púlpito, com talentos de comunicação, mas ocos de verdade, disparando ideias equivocadas à plateia incauta.
Nem acho que seja má fé. Normalmente, é só alguém entusiasmado, com habilidades narrativas, mas pouca bagagem, falando sobre algo que nunca fez, sem vivência consistente para avaliar e nutrir seu discurso.
Esses dias, gravei conteúdo educacional para faculdade famosa e uma das perguntas era justamente sobre Mitos da Inovação, construídos por décadas por tais falsos profetas e certo apoio midiático. Como sempre encarnei o destruidor de mitos, sem perder a ternura jamais, ataquei pequena lista de alvos a serem desmascarados e ressignificados.
1) Inovação é tecnologia
Mito complexo porque Tecnologia está em tudo: no pão que você faz em casa, no plantio do manjericão na varanda, na aula de Pilates de ontem, no celular em que lê meu artigo.
Entretanto, nos dias de hoje, tecnologia se associa imediatamente a softwares, circuitos, semicondutores, IA generativa, biotecnologia, edição genética, novos materiais de cerâmica, silício, titânio, polímeros e outros elementos.
O efeito colateral negativo dessa tara pela alta tecnologia (que é muito importante) faz com que as pessoas acreditem que inovação é para a turma de jaleco branco, developers estilosos com seus computadores, engenheiros de plantão e suas máquinas poderosas.
Investimentos potentes e profissionais STEM (sigla em inglês para Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática) são fundamentais e o Brasil deve investir fortemente na formação de engenheiros, matemáticos, cientistas de dados como faz a Índia, China, Coréia e outros países.
No entanto, a verdade é que todos podem inovar. A professora na sala de aula, a enfermeira na clínica, a treinadora esportiva junto a sua equipe, a gestora pública em seus processos administrativos.
Para além do universo técnico, inovação é caminho para realizar algo superior, que gere melhores impactos. Pode ser um novo processo de seleção, um melhor formato de reuniões e aulas, um redesenho do modelo de onboarding ou de precificação.
O olhar hipertrofiado para a tecnologia induz o pensamento de que inovação sempre exige elevados investimentos, laboratórios caros, aceleradores de partículas, computadores quânticos. Por extensão, fortalece a falsa crença de que só grandes empresas, instituições governamentais, organizações globais é que devem se incumbir da inovação.
Ainda que grandes empresas e investimentos de base sejam essenciais para nutrir potente sistema nacional de inovação na direção da competitividade, precisamos ter claro que, no mundo micro, inovação está ao alcance de todos, da padaria da esquina, da lavanderia do bairro, da academia de ginástica, da escola infantil. Para essa turma toda, inovação pode gerar bons impactos sendo simples, barata, rápida e fácil de implementar.
2) Inovação é um fim em si mesmo
Gente que nunca criou louva a ideia de inovar pelo objetivo em si, de inovar per se. Porém, antes de sair por aí a inovar, precisamos fazer um trabalho anterior de posicionamento estratégico, de reflexão sobre nosso propósito como organização, de mãos dadas com análise de mercado, observação de tendências, compreensão e desenvolvimento de conhecimentos e capabilidades da empresa.
Isso soa contra-intuitivo no mundo imediatista, onde falsos profetas tentam demolir a importância de qualquer planejamento, rejeitar tudo que não seja instantâneo como num story de rede social.
Certamente, o mundo se tornou veloz, incerto, não-linear, líquido. Isso não quer dizer que planejamentos e estratégias sejam “velharias do passado”. Nesses dias, aprendemos bastante em nosso curso de mestrado na FGV sobre o projeto do “carro voador” da Eve Air. Esse e tantas outras iniciativas exigem anos de estudos profundos, posicionamento estratégico, desenvolvimento de capacidades, planejamentos, execução e controles.
Adoro quebrar a fantasia de que na 3M trazíamos ideias aleatórias diárias em post-its. Trabalhamos com horizontes estratégicos, priorização, visões e processos de longo prazo.
É essencial um ambiente não engessado, que permita a qualquer um apresentar ideias, acessar espaços, buscar apoios, mas é falso considerar que inovações significativas nasçam de programas sem alinhamento estratégico, sem entrar na prateleira de priorizações da empresa, sem sinergia com propósito, mercados, capacidades.
3) Qualquer erro é maravilhoso e deve ser tolerado
Falsos profetas romantizaram demasiadamente a ideia do erro na inovação como algo desejável e sagrado. É claro que um ambiente de segurança em que se permite errar é fundamental para a inovação.
Se uma ideia vira projeto e dá errado, receber condenação hostil das lideranças, onde se escorraça o intraempreendedor, se constrói clima de “terra arrasada” e ninguém jamais terá coragem de sugerir qualquer coisa.
Na 3M, cultivamos essa cultura fundamental de tolerância ao erro, trabalhando sempre em equipes, sem apontar dedo a um culpado por fracassos. Mas nosso desejo era acertar da primeira vez. E não existia tolerância a qualquer erro.
Deslizes por falta de ética, por não seguir determinadas etapas de processo, por recusar comportamento colaborativo não eram aceitos em nossa jornada de inovação.
Naturalmente, o erro é intrínseco ao processo de inovar quando se busca mudança. No cenário de imprevisibilidade, o importante é aprender de maneira sábia com os erros para não repetí-los, usá-los de feedback para mudar de direção, iterar para expandir horizontes.
O fracasso deve ser controlado nas empresas. Não pode ser oneroso, nem tomar colorações de política interna, nem despertar torcidas egoístas, nem gerar inércia.
A grande verdade: inovação não deve cultivar o erro como fetiche. O que precisamos é tolerância para lidar com um universo de incertezas e experimentações, assumir compromisso para aprender e refletir, ser flexível para oportunidades de mudanças de rotas e exploração de novos caminhos.
4) Inovação é acidental
Passei uma vida corrigindo a informação de que a criação do Post-it não foi acidente. Conheço a história por ser expert na cultura e história da 3M, onde trabalhei por 3 décadas, mas também por ter ouvido a versão da boca do próprio inventor, o cientista Art Fry, que trouxe ao Brasil em 2012.
As inovações precisam de um sistema. Qualquer eventual acidente, para se transformar em inovação, depende de suporte cultural, da intervenção de lideranças, de agência empreendedora, de processos, investimentos e validações.
Já contei a “verdadeira história do Post-it” em artigo para Época NEGÓCIOS, mas observo que “falsos profetas” continuam fortalecendo versões ingênuas e pouco edificantes.
Ainda que, muitas vezes, uma oportunidade surja como acaso, como evento inesperado (o Viagra para disfunção erétil, a penicilina de Alexander Fleming, o microondas que foi patenteado pela Raytheon, o Post-it da 3M), esses “acidentes” somente se tornam inovações quando há elementos dentro da organização que os sustentem.
Especialmente, se a organização quer se posicionar como inovadora serial, construindo seu futuro continuamente, isso não se baseará em acidentes, mas sim em um sistema com visão estratégica, valorização de conhecimento, estabelecimento de processos, desenvolvimento de competências específicas, entre outros.
Obviamente, há ainda outros incontáveis mitos de inovação que protegemos, cultivamos, sacralizamos e que trazem efeitos danosos, paralisantes, mortais para nossas organizações.
Se, como eu, você quer inovar na sua vida e nas empresas, comece incendiando mitos, sem se guiar por romantismos exacerbados, buscando informações e experiências mais consistentes e pragmáticas.
No entanto, mantenha a paixão necessária para perseguir sonhos, enfrentar adversidades e levar adiante o árduo, imperativo e delicioso processo de transformação de nossas organizações.
Por: Luiz Serafim