“Muitos acreditam que é preciso apoiar o capital de risco para obter inovação. Isso está errado. É preciso apoiar a inovação, a pesquisa, as novas tecnologias. Depois, atrás, vem o capital de risco.” Entenda por que Stefan Hepp, investidor, empreendedor e professor de negócios, acredita que os unicórnios devem morrer
Investidores e empreendedores vão enfrentar problemas sérios se insistirem no modelo de unicórnios – as startups que chegam ao valor de US$ 1 bilhão antes de abrir capital, e muitas vezes antes de começar a lucrar. A análise é de Stefan Hepp, autor da bíblia Private Capital: The Complete Guide to Private Markets (em tradução livre, “Capital fechado: o guia completo para os mercados de participações”, de 2024, ainda sem edição em português).
Hepp fez barulho ao explicar seu ponto de vista no artigo “A morte dos unicórnios”, publicado no ano passado pela Universidade de Chicago, onde dá aula. O professor tem autoridade no tema, porque já viu o mundo dos negócios por diferentes ângulos. Como empreendedor, criou uma empresa de investimentos, a SCM, que geria US$ 10 bilhões em ativos quando foi vendida, em 2015.
Liderou o braço de investimento em participações da gigante financeira Mercer e foi diretor do banco americano Morgan Stanley na Suíça. É suíço-alemão, com carreira parte na Europa, parte nos Estados Unidos – e com conexões no Brasil (é conselheiro do Itaú na Suíça). Falante e bem-humorado, ele pediu desculpas por não falar português e detalhou suas ideias para Época NEGÓCIOS.
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Época NEGÓCIOS Você já disse que a caça aos unicórnios gera riscos para investidores e outros atores do mercado. Quais riscos?
STEFAN HEPP Podemos falar sobre os riscos gerais de tentar investir em um unicórnio. A maioria deles ainda não é lucrativo. É seguro dizer que, entre esses cerca de 1,4 mil unicórnios que temos hoje, nem todos alcançarão a lucratividade. Isso cria para os investidores um risco de perda de dinheiro. Tradicionalmente, um investidor em estágio inicial obteria participação maior por preço menor. Quanto mais cedo ele entrasse na empresa, mais espaço ele teria para obter lucro, mesmo que avaliações posteriores reduzissem seu valor total. Mas isso mudou. Em rodadas de financiamento de estágio avançado que temos visto desde 2017, frequentemente os investidores tardios pagam por valorações muito altas. São eles que criam os unicórnios. Mas ganham mais do que os iniciais, porque obtêm uma preferência de liquidação, uma garantia de devolução do dinheiro. Se eu compro uma participação de 10% na sua empresa e a avalio em US$ 1 bilhão, eu pago US$ 100 milhões. Se sua empresa for vendida mais adiante por US$ 500 milhões, meus 10% agora valeriam apenas US$ 50 milhões. Mas eu tenho uma preferência de liquidação. Posso exigir meus US$ 100 milhões de volta. Não ganhei dinheiro, mas também não perdi. E para todos os outros investidores, sobraram US$ 400 milhões para dividir. Isso pode significar que outros investidores perdem dinheiro.
NEGÓCIOS E os investidores iniciais acabam correndo os maiores riscos, não é mesmo?
HEPP Se essa bolha estourar, os investidores de estágio avançado podem não lucrar muito, mas conseguem sacar seu dinheiro às custas de investidores que participaram de rodadas anteriores, o que é muito diferente do modelo de capital de risco que vimos nos 10, 15 anos anteriores. Antes, eram os primeiros investidores que podiam fazer esse tipo de pressão sobre os fundadores: ‘Você começa uma empresa, eu invisto US$ 3 milhões, se a empresa não for bem-sucedida, recebo meu dinheiro de volta e depois você vê o que sobrou para você’. Era uma proteção para investidores em estágio inicial. Agora surgiu uma proteção para investidores em estágio avançado.
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NEGÓCIOS Essa prática se tornou comum no mercado?
HEPP Sim. Foi uma demanda dos investidores de estágio avançado – fundos de hedge e outros. Eles geralmente não insistem em assentos no conselho e outros direitos de governança que os fundos de venture capital (VC) tradicionalmente querem. Esses grandes investidores tardios dizem: ‘Você pode administrar sua empresa, não quero estar no conselho, estou feliz em ser um observador, mas quero uma preferência de liquidação, sou o primeiro na fila para sacar meu dinheiro se for preciso’. Esse tipo de acordo tem um custo. É menos exigência de governança na empresa.
NEGÓCIOS Você alerta que a maior parte dos unicórnios não dá lucro. Mas isso não é a realidade para startups em geral?
HEPP Sim, mas os unicórnios são uma resposta a uma regulamentação mais rigorosa do mercado de ações [nos Estados Unidos], introduzida depois da quebra das empresas pontocom [em 2000]. Ela exige que as empresas tenham certos resultados financeiros. Na bolha das pontocom, era possível listar na Nasdaq empresas que nunca haviam tido um dólar de lucro. Posteriormente, a listagem se tornou mais rigorosa e era necessário ter um histórico de ganhos. O que pode fazer se quer crescer, mas não tem esse histórico? Você permanece privado. Do lado do investidor, a crescente importância dos fundos soberanos e outros grandes investidores facilitou isso. Com bolsos cheios, eles proporcionaram as rodadas finais para empresas levantarem centenas de milhões de dólares, sem ser obrigadas a fazer um IPO. Há 20 anos, se você fosse uma empresa e quisesse levantar US$ 300 milhões, só havia uma maneira: você tinha que abrir o capital. Agora, é possível fazer isso em rodadas de investimento privado. Isso permite que essas companhias continuem a se empenhar em crescimento em detrimento de lucratividade.
NEGÓCIOS Você considera essa lógica insustentável?
HEPP Nada disso significa necessariamente que o investidor perderá dinheiro. Fiz uma análise da era pontocom. Eu me fiz uma pergunta simples: e se eu tivesse comprado todas as ações de empresas de internet oferecidas ao público em IPOs a partir de 1995 e tivesse mantido essas ações até 2021? Comprei todas elas e mantive, no estilo Warren Buffett. Muitas dessas ações teriam se tornado inúteis após o estouro da bolha pontocom. Mas uma única, sozinha, teria proporcionado lucro geral para todo o meu portfólio: a Amazon. O valor total arrecadado por meio desses IPOs foi de cerca de US$ 76 bilhões. A Amazon [que fez IPO em 1997], sozinha, representa US$ 54 bilhões desse total. Essa participação teria se transformado em US$ 209 bilhões em dezembro de 2021. O retorno para o período inteiro não é espetacular, mas [nessa hipótese experimentada] eu tive lucro. Isso prova que precisamos ter cuidado ao pensar que os investidores são irracionais ou que se trata apenas de uma bolha maluca.
NEGÓCIOS Você afirmou não ver risco sistêmico para o mercado em geral na caça aos unicórnios. Essa “caçada” pode ter outros efeitos, para a inovação ou o mercado?
HEPP Existem efeitos positivos: a disponibilidade de grandes quantidades de capital para financiar novas ideias e conceitos de negócios permite o desenvolvimento de outras tecnologias. Às vezes, é preciso tempo para dimensionar uma nova ferramenta, antes que ela se torne viável e lucrativa. Dependendo da tecnologia, isso exige muito dinheiro. Nem todas as startups precisam de megafinanciamento, mas alguns tipos de inovação, sim. E também haverá muita perda de dinheiro. É como as coisas funcionam. Houve muito dinheiro para o ChatGPT e a IA aberta. Mas não se sabe como isso vai se desenrolar, que tipo de tecnologia vai ganhar. Se o modelo chinês [da DeepSeek], desenvolvido a um custo muito menor, for o modelo bem-sucedido, essa abordagem mais barata pode invalidar os investimentos bilionários feitos anteriormente. Outra questão é que, para ganhar dinheiro com investimento em empresas fechadas, é preciso muita diversificação. Se você tiver a capacidade, como os fundos soberanos, de investir em centenas desses negócios, aumentam as suas chances de ter um, dois ou três em seu portfólio que vão muito bem. Mas se o investidor não tem dinheiro suficiente para colocar em centenas de negócios, fica muito mais exposto, porque não diversifica o suficiente. Se você joga na loteria e compra um bilhete, precisa saber que está partindo de uma proposta e de um perfil de risco muito diferente de quem compra 5 mil bilhetes.
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NEGÓCIOS O WeWork é provavelmente o exemplo mais usado de unicórnio que desapontou o mercado. Eles convenceram muita gente inteligente de que dariam certo. Como você vê esse caso?
HEPP O WeWork é um exemplo ótimo de uma empresa em que muito dinheiro foi investido e hoje não vale nada [nos EUA, o WeWork saiu da recuperação judicial em junho de 2024 e tenta se restabelecer]. É ainda exemplo dos problemas de governança de muitas empresas investidas. O Uber também ilustra os problemas de governança que vêm com grandes investimentos em estágio avançado, e que podem gerar traumas [o Uber recebeu US$ 11 bilhões de investidores entre sua fundação, em 2009, e 2016. Em 2017, seu então CEO, Travis Kalanick, deixou o cargo sob denúncias de que uma cultura de assédio moral e sexual havia se difundido pela empresa]. Há uma discussão a respeito do fato de que essas empresas recebem dinheiro em excesso. O investimento em estágio tardio, o investimento realmente grande, tem chegado [aos candidatos a unicórnio] com pouca exigência de governança e pouca representação no conselho. Isso leva a dois tipos de problemas. O primeiro são os excessos. Quem tem dinheiro demais não aprende a ser frugal, econômico, eficiente com os gastos. O segundo problema é que, se num momento posterior a companhia chegar a uma situação em que precise cortar custos e ganhar eficiência, ela não sabe como fazer isso. Dar muito dinheiro a empresas e fundadores sem governança e sem supervisão rigorosa pode levar essas empresas ao fracasso, o que é um risco para todos os stakeholders. Há evidências de que empresas que recebem menos investimento têm chance maior de sucesso, porque sabem melhor como virar o jogo.
NEGÓCIOS Um ciclo de euforia terminou em 2022, mas outros virão. Nesses momentos de empolgação do mercado, como deveríamos avaliar startups?
HEPP Você tem de pensar: ‘Qual é o modelo por trás dessas empresas que me faz acreditar na sua habilidade de continuar lucrando daqui para a frente?’. Nem todas as empresas que afirmam ter esses atributos digitais realmente os têm. Se você observar o Walmart e a DoorDash, verá que as duas usam muita tecnologia. O negócio principal do Walmart é varejo e logística, e a DoorDash é uma empresa de gig economy que entrega sua pizza ou sua comida em casa. Mas a DoorDash se apresenta como uma empresa de tecnologia e, ao fazer isso com sucesso, alcançou uma avaliação muito maior em relação aos seus lucros do que o Walmart.
NEGÓCIOS Você tem alguma avaliação sobre a situação em outros mercados?
HEPP Muitos países tentaram criar ecossistemas de inovação, mas poucos conseguiram. Não quero dizer quais erraram, mas digo o seguinte: muitos acham que precisam apoiar o capital de risco para obter inovação. Muitos políticos também pensam assim. Isso está errado. É preciso apoiar a inovação. Depois, atrás dela, vem o capital de risco. Inovação é pesquisa, instituições acadêmicas, instituições que desenvolvem novas tecnologias, ambiente regulatório que facilita criar empresas, pouca burocracia, baixos impostos, tudo isso. É também abertura para o talento – é preciso trazer as pessoas de onde quer que estejam, o que não é a tendência política atual em muitos lugares. É preciso ter um lugar para onde os talentos queiram vir e se sintam confortáveis.
Isso pode ser resolvido com um bom tipo de hub de tecnologia. Temos o treinamento, as pessoas que querem trabalhar nessa área, as instalações de pesquisa? Temos regulamentação e impostos que facilitem criar empresas? Se você reunir tudo isso, então precisará de capital. Mas o capital é tão internacional hoje em dia que isso não é um problema.
Esta reportagem foi publicada originalmente na edição de abril de Época NEGÓCIOS
Por: Marisa Adán Gil