Estamos aproveitando o poder da inteligência artificial para diminuir ou aumentar as diferenças de igualdade de gênero? Essa é a pergunta de ouro cuja resposta pode explicar porque as mulheres usam menos IA do que os homens.
Outra maneira de entender as causas dessa realidade é inverter o questionamento e colocar no centro da pergunta a própria revolução tecnológica.
Por que a inteligência artificial atende mais aos interesses do homem do que os das mulheres? Quem são os criadores desses algoritmos que entregam resultados discriminatórios e racistas?
O momento para discutir a disparidade de gênero que persiste nesse campo é agora. Então, venha entender os motivos que levam as mulheres a utilizarem menos IA em comparação aos homens e desvendar os desafios enfrentados por elas nesse cenário.
Fatos que contribuem para a desigualdade de gênero
1) Uma infância baseada em estereótipos de gênero
Desde a infância, as meninas são direcionadas para brinquedos e atividades que reforçam estereótipos de gênero, como dedicação à família e tarefas do lar. Em contrapartida, os meninos são incentivados a explorar sua liderança e proatividade em campos relacionados à tecnologia e ciência.
Se as expectativas sociais moldam escolhas desde cedo, influenciando decisões educacionais e profissionais futuras, esse tipo de socialização cria barreiras para o interesse das mulheres em carreiras ligadas à inteligência artificial ou pelo simples uso em chatbots como ChatGPT ou Bard.
2) Falta de representatividade no setor STEM
A ausência de mulheres em posições de destaque na área de STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) contribui para a falta de representatividade e o senso de pertencimento. Sem modelos femininos visíveis, as mulheres sentem que o setor da tecnologia não é receptível a elas e os produtos derivados desse trabalho não conseguem atender às suas demandas.
Mais mulheres na tecnologia pode trazer um olhar mais empático e resiliente para o setor.Fonte: GettyImages
O caso da Amazon que ocorreu em 2015 é um reflete bem esse cenário. A corporação encerrou seu projeto de mecanismo de recrutamento devido a problemas com discriminação de gênero.
Segundo a agência Reuters, a IA preferia homens para as vagas, simplesmente porque o banco de dados de currículos recebidos pela empresa ao longo de 10 anos era composto majoritariamente por profissionais do sexo masculino.
3) Barreiras culturais perpetuadas pelos algoritmos
Como já mencionamos, os algoritmos de IA podem perpetuar e amplificar os preconceitos existentes na sociedade. Logo, estamos falando de diferentes culturas no mundo que não consideram plenamente as perspectivas e experiências das mulheres, tornando a IA menos atrativa ou útil para elas.
Para verificar essa hipótese, testei o ChatGPT ao pedir uma lista de exemplos de usos comuns da inteligência artificial no cotidiano das mulheres e, depois, dos homens.
A diferença nas respostas é sutil, mas confirma o argumento: a IA generativa do Open.AI menciona profissionalismo apenas no caso dos homens. Quanto às mulheres, o chatbot foca em temas de beleza, moda e bem-estar.
Comparação das respostas do ChatGPT sobre a presença da IA no cotidiano de mulheres (à esquerda) e homens (à direita).Fonte: ChatGPT/Bianca Seabra/Captura de tela
4) Cultura corporativa hostis para as mulheres
Ambientes de trabalho hostis e culturas corporativas tóxicas ainda são prevalentes em muitas empresas de tecnologia. Adicione a essa equação a discriminação de gênero, o assédio e a falta de igualdade salarial que as mulheres precisam para enfrentar desde a sua formação e o ingresso no mercado de trabalho, até a permanência em carreiras relacionadas à IA.
Ainda que diversas ferramentas de IA sejam acessíveis a todos, muitas mulheres podem hesitar em experimentá-las na vida profissional (e pessoal) se não se sentirem confiantes em suas habilidades técnicas.
“As mulheres já são desacreditadas e têm as suas ideias tomadas pelos homens. Por isso, ter pessoas sabendo que você usa uma IA também pode contribuir para a narrativa de que você não é qualificada o suficiente. É apenas mais uma coisa que está afetando suas habilidades, sua competência ou seu valor.”, diz o psicólogo Lee Chambers em entrevista a BBC News.
5) Acesso desigual a recursos educacionais
Diferenças econômicas e sociais muitas vezes resultam em um acesso desigual a cursos, treinamentos e networking. O que só afasta o público feminino de participar efetivamente no uso e aprimoramento da inteligência artificial.
Soma-se a essa preocupação o impacto da automação impulsionada pela IA no trabalho das mulheres. Pesquisas recentes revelam que quase oito em cada 10 profissionais do sexo feminino podem ser afetadas.
“Acho que há razões legítimas para se preocupar que alguns dos ganhos que as mulheres obtiveram possam ser corroídos, pelo menos temporariamente”, disse Julia Pollak, economista-chefe do marketplace online ZipRecruiter, à CNN.
Contudo, há esperança na visão do professor de marketing Mark McNeilly: “Nem sempre vai se relacionar com ‘estou perdendo meu emprego. Acho que é realmente uma questão de saber se há algo que a pessoa possa fazer para agregar valor.”
6) Ficção científica mira no público-alvo masculino
A indústria da ficção científica historicamente direcionou seus produtos, como livros, filmes e séries, principalmente para um público masculino. Essa abordagem contribui para a construção de um estereótipo de que a IA e temas relacionados são mais consumidos pelos homens.
O desafio é superar essas representações limitadas e criar narrativas mais inclusivas que atraiam um público diversificado para explorar ou adotar a IA em suas vidas.
O protagonismo feminino no gênero ficção científica não recebe grandes investimentos.Fonte: GettyImages
6) Estímulo ao uso de IA focado em estética
Apesar dos diversos estudos científicos ressaltar que as mulheres usam menos inteligência artificial do que os homens, há um setor em que essa realidade se manifesta de modo contrário: as redes sociais.
De acordo com a Infobase, 52% do público presente nas redes sociais na América Latina e do Norte é composto por mulheres. A relação desses dados com a IA está no o impacto do uso das redes sociais e filtros na autoestima de meninas e mulheres adultas.
Uma pesquisa de 2020 realizada pelo Projeto Dove pela Autoestima e Edelman Data & Intelligence com meninas entre 10 e 17 anos e mulheres de 18 a 55 anos nos Estados Unidos, Inglaterra e no Brasil foi reveladora.
- 84% das jovens brasileiras com 13 anos já aplicaram um filtro ou usaram um aplicativo para mudar sua imagem em suas fotos;
- 89% das jovens relatam que compartilham selfies na esperança de receber validação de outras pessoas;
- 69% das mulheres adultas gostariam de ter sabido como construir autoestima quando eram mais jovens.
Ou seja, a presença de ferramentas de IA é constante nas vidas das mulheres quando o objetivo é atender a padrões irreais de beleza que a sociedade e a mídia tanto cobram.
Superar esses desafios exige esforços coordenados em diversos níveis, como a desconstrução de estereótipos de gênero com projetos em escolas, comunidades de bairro e ambientes de trabalho para serem mais inclusivos.
À medida que a sociedade reconhece a importância da diversidade na construção de tecnologias, a limitação imposta às mulheres no campo da inteligência artificial tende a desaparecer. E qual futuro para a IA seria mais promissor que esse?
Fonte: TechMundo