Depois de muitos meses de letargia programática, concentrados em denunciar o assédio bolsonarista, os atores envolvidos com esta política estão despertando para apresentar suas demandas para a coalizão que irá ocupar o Executivo federal.
Depreende-se dos seminários e documentos que surgem uma categórica afirmação consensual: para que o país se desenvolva, é necessário aumentar o gasto público em pesquisa. Não obstante, a elite da comunidade de pesquisa parece desejar seguir elaborando a Política de Ciência, Tecnologia e Inovação (PCTI) como se fosse uma política-fim sem considerar seu alegado compromisso com o desenvolvimento. E os tecnoburocratas que acriticamente a tem operado sem considerar que, como política-meio, deveria viabilizar políticas-fim que promovam o desenvolvimento, também não parecem dispostos a alterar sua trajetória.
Esperando simplesmente poder recuperar sua capacidade de ação, eles não parecem estar avaliando as demandas cognitivas que decorrem das estratégias econômico-produtivas em discussão pelos que estão formulando as políticas-fim dessa coalizão. Estes, por sua vez, a exemplo do que se observa em outras áreas onde vem ocorrendo um notório rebaixamento das agendas das políticas, e por estarem mais interessados em cooptar aqueles dois atores do que envolvê-los nessa discussão, consideram que a orientação da PCTI pode “ficar para depois” …
A julgar pelo que vem sendo proposto, é provável que a PCTI volte a ser o que era no governo FHC. Se isso acontecer, o país estará mais uma vez desperdiçando seu potencial de transformação.
Buscando impedir que isso aconteça, este texto, depois de analisar como tem sido elaborada a PCTI, provoca quem o lê a refletir como ela deveria responder às demandas tecnocientíficas da estratégia da reindustrialização solidária.
- Qual o modelo da Política de CTI?
A ausência de novas ideias obriga a que se tome aquela afirmação como pista para refletir acerca de como deveria ser a “outra PCTI” a que alude. A afirmação se baseia numa modelização acerca do modo como funcionam os países de capitalismo avançado (ou centrais) os fenômenos relacionados ao conhecimento que deriva da pesquisa tecnocientífica. Lá, o conhecimento – sobretudo o incorporado nos profissionais que aprenderam a fazer pesquisa na universidade e são contratados pela empresa – é causa do crescimento econômico e, mesmo, do desenvolvimento.
Os requisitos estruturantes desse desenvolvimento – propriedade privada dos meios de produção (e do conhecimento), contratação de força de trabalho pela classe proprietária, regulação socioeconômica e política exercida pelo “seu” Estado – ensejam um círculo capitalista virtuoso. A empresa usa o conhecimento resultante da pesquisa realizada em organizações públicas e por ela mesma para o aumento da produtividade do trabalho; autoriza-se a apropriação do excedente dele derivado como lucro; e, sequencial e complementarmente, que a distribuição de parte desse lucro pelo Estado, gere desenvolvimento e aumente o bem-estar de todos.
À forma intrinsecamente capitalista de obtenção de lucro associada a esse círculo virtuoso, baseada na introdução de conhecimento novo no processo de trabalho, Marx chamou extração de mais-valia relativa. Assim ele a diferenciava da mais-valia absoluta (quase um resquício violento do feudalismo) baseada na diminuição do salário ou no aumento da jornada de trabalho.
- O modelo funciona na periferia?
Embora a conquista do território periférico em que vivemos tenha ocorrido sob a égide de um capitalismo em que já se generalizava a extração da mais-valia relativa, a maneira como ele aqui passou a funcionar foi distinta. Ele se iniciou associado à expropriação da terra dos indígenas e de sua escravização; o que possibilitou à classe proprietária local produzir a um custo muito inferior ao preço que estavam dispostos a pagar seus parentes da metrópole pelos bens agrícolas e minerais.
Nossa classe proprietária cedo aprendeu que, combinando o conhecimento que de lá provinha com o saber dos povos que submetia (como ocorreu no início, quando o fez operando sobre uma fértil terra expropriada com mão-de-obra escravizada), podia lucrar de modo mais cômodo e menos dispendioso do que faziam seus parentes que exploravam a mais-valia relativa.
À exploração de outros seres humanos, também de segunda classe – os africanos escravizados e, depois, os expulsos da Europa pelo desemprego “tecnológico” e a fome – seguiu-se um processo de industrialização via substituição de importações.
Embora mais “capitalístico” do que o primário-exportador, já que defendia os interesses dos descendentes da oligarquia rural que tinham pretensões a constituírem-se como uma burguesia industrial disposta a estabelecer pactos nacional-desenvolvimentistas com o operariado e os militares, ele não alterou o modo de obtenção de lucro. Nossa classe proprietária seguiu apoiando-se na extração de mais-valia absoluta.
Atuando de maneira menos violenta do que fazia até então, ela foi capaz de, no nível micro como empresa, ou no macro como classe através de “seu” Estado, concentrar a enorme riqueza que se gerava num dos mais pujantes territórios do mundo. Privatizando ganhos e socializando prejuízos ela não precisou alterar seu modo de obtenção de lucro. O poder que exercia possibilitou-lhe, como mostra a evidência empírica, deprimir o salário pago à classe trabalhadora sem que fosse necessário introduzir conhecimento novo no processo de trabalho. O outro componente da mais-valia absoluta também se fez presente: o apetite imobiliário, ao obrigar o operariado a transportar-se, levou a um aumento da jornada de trabalho.
Resumindo: razões associadas do comportamento “atípico” das empresas locais em relação àquelas dos países centrais, impedem que aquele modelo, em que a pesquisa provoca desenvolvimento, funcione no Brasil periférico.
- Que resultou da emulação do modelo?
A dependência cultural inerente à condição periférica agravou o escasso interesse da empresa pela pesquisa: os bens e serviços industriais que o mercado imitativo demanda já têm o conhecimento necessário para produzi-los desenvolvido no centro.
Apesar do vigor da “política de Estado” nacional-desenvolvimentista (que entre outras coisas chegou a implantar nossa indústria pesada) que poderia ter materializado a demanda cognitiva propugnada pelo modelo, pouco se avançou. Salvo nos casos em que o projeto político de alguma elite econômica (por exemplo, a Embrapa) ou política (por exemplo, a Embraer) demandou conhecimento novo, manteve-se uma – economicamente racional – baixa propensão à introdução de resultados da pesquisa local na produção.
Vale ressaltar que nossa comunidade de pesquisa tem sido bem-sucedida quando avaliada com os indicadores concebidos pelos seus pares dos países centrais em conformidade com as agendas – de ensino, pesquisa e extensão – que ela emula. O mesmo se pode dizer em relação à sua competência para elaboração de política pública. Uma consistente e longeva “política de Estado” controlada pela elite científica emulando aquele modelo logrou, pelo lado da oferta, instalar uma considerável (e “laudável”) estrutura de pesquisa e formação de pessoal. Pelo lado da demanda, ela foi aperfeiçoando ao longo de mais de cinco décadas engenhosos e generosos arranjos institucionais que, embora não engendrem o aproveitamento dessa oferta pela empresa, servem igualmente para legitimá-la como cumpridora do papel que o modelo lhe atribui.
A intenção sincera de muitos dos integrantes da comunidade de pesquisa de promover o desenvolvimento do país se viu frustrada pela insistência da elite científica em emular esse modelo. Nossa condição periférica, que tem como manifestação da dependência cultural que ela engendra o comportamento atípico da empresa local em relação àquele que se observa nos países centrais, inviabiliza seu funcionamento.
Por terem mantido a universidade como um enclave num território em que a classe proprietária não necessita incorporar conhecimento novo à produção, e por explorarem agendas afastadas dos interesses e valores da classe trabalhadora, aqueles professores e pesquisadores não foram capazes de concentrar-se naquilo que aqui promoveria o verdadeiro desenvolvimento – justo e igualitário – que desejavam. Não souberam decodificar como demanda cognitiva (tecnocientífica) embutida nas necessidades materiais da parcela da sociedade que os mantêm.
Assim, ao não lograrem seduzir a empresa para que aproveitasse o resultado de seu trabalho, nem prospectarem essa original e complexa demanda que permanece latente, eles se têm tornado cada vez mais disfuncionais e frágeis. De fato, embora a PCTI tenha logrado indicadores de qualidade semelhantes aos dos países centrais se esteve longe de obter a relevância que, por possuir a pesquisa que lá se realiza, os torna funcionais.
- E o que fizeram os governos?
As pessoas de esquerda que à época formularam a PCTI da coalizão que foi vitoriosa em 2003 não viram a necessidade de reorientá-la. Elas consentiam com a concepção hegemônica da neutralidade da tecnociência (que abriga até mesmo o marxismo ortodoxo) que não questiona aquele modelo. Como segundo essa concepção, ele é capaz de engendrar uma capacidade cognitiva que serve a qualquer projeto político (inclusive, como se tentou, o socialismo “real”) a PCTI deveria manter-se alinhada com o modelo. Mesmo porque sua promessa de autonomia tecnocientífica era funcional ao projeto neodesenvolvimentista.
Foi então mantido um compromisso: o velho “ofertismo” cognitivo, do cientista básico tradicional que promete os desenvolvimentos tecnológico, econômico e social, conviveu com um “inovacionismo” turbinado, do pesquisador-empreendedor que se arvora produtor de patentes e do tecnoburocrata que o neoliberalismo empodera, mas que tampouco alavanca desenvolvimento.
Cresceu o subsídio à empresa para que utilizasse o conhecimento – desincorporado e incorporado em pessoas – ofertado pelas instituições de ensino e pesquisa; alterou-se o marco legal para estimular a relação delas com as empresas; viabilizou-se a cessão de pós-graduados para laboratórios empresariais; aumentou o apoio às startups de alunos e professores; tentou-se replicar no âmbito industrial o papel da Embrapa que provê conhecimento para o agronegócio…
Enquanto essas iniciativas, que a evidência empírica atesta como ineficazes, foram implementadas, ocorria um fenômeno que, embora independente, precisa ser considerado para refletir a “outra PCTI”. Estava ocorrendo uma acelerada desindustrialização que, embora esteja sendo “vendida” como causado pela inépcia dos governantes, originou-se no surgimento de opções mais rentáveis para a classe proprietária.
Os golpistas de 2016, aproveitando-se da fragilidade e disfuncionalidade das instituições de ensino e pesquisa, cortaram drasticamente o recurso para pesquisa e formação de pessoal. O que pode restringir, pelo lado da oferta, a probabilidade que elas venham a se dedicar a satisfazer as demandas cognitivas que a segunda das estratégias a seguir apresentadas privilegia.
- E as estratégias econômico-produtivas que temos agora, mudarão a PCTI?
As decisões tomadas pela classe proprietária potencializaram sua vocação primário-exportadora. Sua habilidade de adaptação subordinada ao contexto internacional e sua capacidade de descobrir a forma mais lucrativa de utilizar os fatores de produção disponíveis conferiram à desindustrialização um momentum que nem a redução do preço da força de trabalho provocada pela desestabilização política consegue reverter.
Consciente da ameaça da opção desindustrializante, primário-exportadora e financeirizada para a classe trabalhadora, a esquerda hoje propõe duas estratégias alternativas, não excludentes, que devem buscar convergência.
A estratégia da reindustrialização empresarial
Tendo como ator-chave as empresas, seu objetivo é provocar o crescimento do emprego e do salário e desencadear um ciclo de desenvolvimento semelhante ao que foi obtido vinte anos atrás. Baseada no aumento do número das carteiras assinadas na indústria manufatureira (que hoje é de apenas 6 milhões), esta estratégia supõe, entre um conjunto amigável de medidas, a alocação na empresa do gasto público para a “reconstrução”.
É possível que, como ocorreu com a estratégia de industrialização via substituição de importações (uma “política de Estado” a serviço da classe proprietária), a reindustrialização empresarial venha a ser eixo das políticas públicas do próximo governo. O resultado, ainda que se logre seu improvável objetivo, tenderá a reproduzir os dias amargos que estamos vivendo.
De qualquer forma, como seus stakeholders acreditam que aquela cadeia econômico-produtiva sequencial e complementar que promete o modelo até agora adotado, a PCTI manterá seu disfuncional status de uma “política de Estado” a serviço dos interesses da elite científica.
A estratégia da reindustrialização solidária
Tendo como ator-chave as redes de Economia Solidária, seu objetivo é gerar oportunidades de trabalho e renda para que os 80 milhões de pessoas (das 160 em idade de trabalhar) que nunca tiveram nem terão emprego possam inserir-se em circuitos alternativos de produção e consumo. Ela se baseia, em termos ideológicos, nos valores feministas, de solidariedade, de autogestão, da propriedade coletiva dos meios de produção e do respeito à natureza. Em termos das relações sociais de produção, em arranjos de produção, consumo e financiamento de novo tipo. E, na sua relação com o Estado, na disputa por subsídio proporcional à importância econômica, social e política que ela possui para a esquerda.
Políticas para viabilizar o apoio organizativo e cognitivo e a alocação do poder de compra do Estado a redes solidárias distribuídas no campo e na cidade gerarão espaços de realização cidadã para nossa juventude do asfalto e da favela e para os excluídos por sua raça, etnia, gênero, condições físicas ou mentais. Irá retroalimentá-las uma situação em que bens e serviços de natureza crescentemente industrial, que aos empreendimentos solidários caberá seus processos de produção e circulação como oferentes e demandantes, que a rede de bancos solidários viabilizará pela via creditícia (direta e canalizada pelo Estado) e que as moedas sociais beneficiarão também os pequenos proprietários do território. Essa “utopia em construção” passará a disputar a demanda das famílias e a compra pública (estimada em até 18% do PIB) que hoje, por excluí-la, a inviabiliza. Empresas falimentares cujo número poderá aumentar serão recuperadas pelos trabalhadores e apoiadas conferindo ainda mais sustentabilidade a algo que passará de utopia a cenário desejável em construção e a uma onda expansiva com potências econômicas, sociais, políticas, ideológicas que, por estarem baseadas no trabalho autogestionário, são em vários sentidos revolucionárias.
Os stakeholders da reindustrialização solidária duvidam da existência entre nós dos elos daquela cadeia econômico-produtiva que promete o modelo até agora adotado pela PCTI. Por isto irão fazer cumprir iniciativas como a que propõe a modalidade solidária curricularização da extensão universitária e a defender em seus espaços de atuação, como professores, pesquisadores e tecnocratas, uma significativa alteração das agendas de ensino, pesquisa e extensão que a PCTI condiciona.
- Afinal, como vai ficar a PCTI?
Fica para quem veio até aqui a tarefa de responder como vai ficar esta política-meio que analiticamente deveria derivar das políticas-fim associadas a cada uma dessas duas estratégias. E que, na prática, deveria alavancá-las.
Fonte: outraspalavras.net