A pele artificial produzida por bioengenharia tem se tornado uma plataforma cada vez mais relevante e confiável para avaliar a segurança e a eficácia de medicamentos e cosméticos, uma vez que, além de substituir o uso de animais, pode ser obtida em larga escala.
Entre as tecnologias mais promissoras para a produção de modelos in vitro, em ambiente de laboratório, está a bioimpressão 3D. No entanto, por ser muito recente, faltavam testes para comparar seu desempenho com o do modelo tradicional, produzido manualmente.
Esse foi o principal objetivo de um estudo conduzido por pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP). Os resultados, divulgados na revista Bioprinting, confirmam a similaridade de desempenho.
Os pesquisadores compararam o modelo mimético criado com a metodologia tradicional por pipetagem (feita com pipeta) com aquele produzido em bioimpressoras pelo mecanismo de extrusão, que é o mais utilizado e permite uma reconstrução mais representativa da pele humana.
“O fato de chamarmos o modelo de ‘pele artificial’ pode dar a ideia de que seja algo sintético, quando na verdade é um tecido humano, extremamente semelhante à pele natural. Por isso se presta tão bem a testes de segurança e eficácia de compostos bioativos”, explica Silvya Stuchi Maria-Engler, professora titular do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.
Padrões de controle de qualidade e desempenho estabelecidos por instituições internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), foram utilizados como critérios de validação.
“O primeiro foi a morfologia tecidual, que deve ser representativa à da pele humana in vivo, ou seja, deve conter, na epiderme, toda a estrutura estratificada em quatro camadas: basal, espinhosa, granulosa e córnea”, explica Denisse Esther Mallaupoma Camarena, primeira autora do artigo e pós-doutoranda na USP.
“Isso indica que a pele reconstruída in vitro apresentará as mesmas funções da nossa, que conta com uma barreira seletiva contra o meio externo, protegendo de estressores químicos [poluição, produtos tópicos aplicados] e físicos [radiação solar], exercendo também a sua função de retenção hídrica”.
O passo seguinte foi avaliar como a pele bioimpressa desempenhava a função de barreira. Assim como a pele humana, a artificial deve ter a capacidade de suportar a permeação de detergentes que causam irritação. Para isso, expuseram os modelos ao detergente irritante dodecil sulfato de sódio (SDS) em diferentes concentrações por 18 horas.
O último teste de validação foi, então, aplicar topicamente substâncias químicas de referência classificadas como irritantes (ácidos, por exemplo) ou não irritantes (soluções fisiológicas).
Os resultados mostraram que ambos os modelos de pele reconstruída em laboratório exibiram histologia e citoarquitetura consistentes com os modelos epidérmicos validados, sendo que o bioimpresso demonstrou tão boa qualidade quanto o manual. Além disso, suportaram igualmente a permeação de detergentes irritantes e foram capazes de distinguir essas substâncias das não irritantes.
“Essa conclusão permite substituir os testes de Draize empregados antigamente, que usavam pele de coelhos raspadas para tal classificação”, diz Julia de Toledo Bagatin, primeira autora do estudo e doutoranda na USP. “Também proporciona menor erro humano e menor variabilidade na resposta obtida na indústria cosmética”.
“A disseminação de parte dos métodos desenvolvidos favorece no setor de cosméticos o uso de testes alternativos, que não envolvam animais, o que amplia ainda mais o nosso compromisso com a causa”, pontua Juliana Lago, gerente científica da Natura, que apoiou o estudo. A empresa idealizou o uso da bioimpressora para fabricação de pele e financiou parte de seu desenvolvimento.
“A academia traz o conhecimento de ciência básica, que é investido para adquirir conhecimento científico, e nossa parceria fomenta a possibilidade de acelerar a aplicação desse conhecimento em uma pesquisa mais aplicada para a empresa, no caso o conhecimento em reconstrução tecidual e adaptação para ferramentas de automação, como a bioimpressão”.
O estudo contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Impressoras mais confiáveis
Embora os principais resultados do estudo mostrem que as peles bioimpressas podem ser utilizadas como plataforma para o teste de irritação in vitro, os pesquisadores destacam que é preciso ter cautela na utilização das bioimpressoras.
“As máquinas produzem os tecidos miméticos por dispersão celular, com o uso de agulhas ou ponteiras cônicas, e, dependendo do sistema escolhido, pode haver alteração da resposta celular frente ao teste de irritação in vitro”, explica a professora Maria-Engler.
“Como a tecnologia de bioimpressão está sendo amplamente utilizada em diversas áreas, é de extrema importância reconhecer que o sistema de dispersão escolhido pode prejudicar a confiabilidade desses testes ao gerar respostas alteradas, como maior inflamação”.
A expectativa agora é que a bioimpressão seja utilizada para confeccionar modelos mais complexos, inclusive com as três camadas (epiderme, derme e hipoderme) e células representativas da pele humana. Isso aproximaria ainda mais o modelo da realidade e traria respostas biológicas mais relevantes em testes de segurança e eficácia de produtos de uso tópico.
Por: Julia Moióli da Agência Fapesp