Restos de indivíduos mortos em Cambridge durante a peste mostram que, na verdade, as piores ameaças à vida dos adultos e crianças da época eram a pobreza e a tuberculose
Arqueólogos analisaram quase 500 restos esqueléticos escavados na década de 1970 em cemitérios por toda a cidade de Cambridge, na Inglaterra, datando entre os séculos 11 e 15. Com isso, eles revelaram como foram as vidas cotidianas das pessoas que viveram na época da peste bubônica.
A pesquisa do projeto After The Plague (“Depois da Praga”) foi disponibilizada em um website por pesquisadores da Universidade de Cambridge. O trabalho foi registrado ao lado de um novo estudo publicado em 1º de dezembro na revista Antiquity, que investiga a pobreza medieval examinando restos mortais do cemitério de um antigo hospital.
Com base nas técnicas mais recentes, os pesquisadores investigaram as dietas, DNA, atividades e traumas corporais de habitantes de Cambridge, incluindo estudiosos, frades e comerciantes. O foco do projeto foram 16 restos mortais que representam vários “tipos sociais” para constituir as “osteobiografias” dos residentes.
“Uma osteobiografia usa todas as evidências disponíveis para reconstruir a vida de uma pessoa antiga”, explica o pesquisador principal, John Robb, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Cambridge. “Nossa equipe usou técnicas familiares de estudos como o esqueleto de Ricardo III, mas desta vez para revelar detalhes de vidas desconhecidas, pessoas que nunca conheceríamos de outra forma”.
O projeto usou uma análise estatística de nomes prováveis retirados de registros escritos da época para dar pseudônimos às pessoas estudadas. Um deles é um homem apelidado de Wat, que sobreviveu à peste bubônica, mas morreu mais velho, de câncer, no hospital de caridade da cidade.
Outro caso é o de Anne, uma mulher cuja vida foi marcada por lesões repetidas, deixando-a mancando com uma perna direita encurtada. Já Edmund foi um homem que sofreu de hanseníase; mas, ao contrário dos estereótipos, viveu entre pessoas comuns e foi enterrado em um caixão de madeira raro.
Por fim, os pesquisadores relataram ainda a história de Eudes, um menino pobre que se tornou um frade que seguia uma dieta saudável. No entanto, ele sofria de gota, uma forma dolorosa de artrite.
“Fábrica” medieval de orações
No estudo na revista Antiquity, os cientistas investigaram os habitantes do hospital de São João Evangelista, fundado em 1195 para ajudar pobres e enfermos. A instituição durou cerca de 300 anos antes de ser substituída pelo St. John’s College, em 1511. O local foi escavado em 2010.
Além do hospital, uma reforma do New Museums Site da Universidade em 2015 rendeu restos mortais de um antigo Convento Agostiniano. A pesquisa também usou esqueletos escavados na década de 1970 nos terrenos de uma igreja paroquial medieval.
“Como todas as cidades medievais, Cambridge era um mar de necessidades”, disse Robb. “Alguns dos pobres mais sortudos conseguiam cama e comida no hospital para toda a vida. Os critérios de seleção incluiriam uma mistura de carência material, política local e mérito espiritual”.
Segundo o pesquisador, funcionava no hospital um “sistema de benefícios medievais” que excluía pessoas com hanseníase, mulheres grávidas e indivíduos considerados insanos. Os internos eram obrigados a rezar pelas almas dos benfeitores da instituição hospitalar para acelerar sua passagem pelo purgatório. “Um hospital era uma fábrica de orações”, ele afirma.
Dados moleculares, ósseos e de DNA de mais de 400 restos mortais no cemitério principal do hospital mostram que os internos tinham menor estatura do que os demais habitantes da cidade, além de maiores chances de morrer mais jovens e sinais de tuberculose.
Os hospitalizados também tinham mais probabilidade de ter vestígios em seus ossos de infâncias prejudicadas pela fome e doenças. Por outro lado, tinham taxas mais baixas de traumas corporais, sugerindo que a vida no hospital reduzia as dificuldades físicas ou os riscos.
As crianças enterradas eram pequenas para a idade delas, com até cinco anos de crescimento a menos. Elas “eram provavelmente órfãs”, segundo Robb. E tinham comumente sinais de anemia e lesões, sendo cerca de um terço delas lesionadas nas costelas — indício de doenças respiratórias como a tuberculose.
Isótopos de até oito residentes do hospital indicaram uma dieta de menor qualidade na velhice. Esses eram considerados “pobres envergonhados”, pois caíram na miséria após ficarem incapazes de trabalhar. “Doutrinas teológicas incentivavam a ajuda aos pobres envergonhados, que ameaçavam a ordem moral ao mostrar que era possível viver virtuosamente e de forma próspera, mas ainda assim se tornar vítima das reviravoltas do destino”, analisa Robb.
Os cientistas também identificaram esqueletos de prováveis estudiosos universitários, que não traziam sinais de trabalho físico nos braços. “Esses homens não faziam trabalho manual ou artesanato habitualmente e viviam com boa saúde e nutrição decente, geralmente até uma idade mais avançada”, afirma o pesquisador.
Enquanto a maioria dos estudiosos era sustentada por dinheiro da família, ganhos com o ensino ou patrocínio caritativo, aqueles menos afortunados corriam o risco de cair na pobreza ao adoecerem. “À medida que a universidade crescia, mais estudiosos provavelmente teriam acabado nos cemitérios hospitalares”, explica Robb.
Em 1348 a 1349, a peste bubônica atingiu Cambridge, matando entre 40-60% da população. A maioria dos mortos foi enterrada em cemitérios urbanos ou fossas comuns, como a de Bene’t Street, ao lado do antigo convento.
“As doenças do dia a dia, como sarampo, coqueluche e infecções gastrointestinais, acabaram causando um prejuízo muito maior às populações medievais”, disse Robb. “Sim, a peste bubônica matou metade da população em um ano, mas não estava presente na Inglaterra antes disso ou na maioria dos anos depois disso. As maiores ameaças à vida na Inglaterra medieval e na Europa Ocidental como um todo eram doenças infecciosas crônicas como tuberculose”, ele conclui.
Texto: Redação Galileu