sexta-feira,22 novembro, 2024

O desafio de reciclar baterias de lítio

Grupos de pesquisa no Brasil procuram desenvolver técnicas para separar e reaproveitar metais contidos nesses módulos de armazenamento de energia

Essenciais para promover a mobilidade elétrica, as baterias de íons-lítio conseguem concentrar muita energia em um espaço reduzido e pesam bem menos do que modelos que utilizam outros materiais. Essas duas características – alta densidade energética e leveza – fazem com que sejam as mais utilizadas não apenas em veículos elétricos, mas também em smartphones e notebooks.

Ao chegarem ao fim da vida útil e serem descartadas, contudo, as baterias de lítio transformam-se em um problema ambiental. Para contornar essa situação, grupos de pesquisa em todo o mundo estudam formas de reciclar e reaproveitar os metais que compõem esses módulos, como cobalto, lítio, cobre, grafite e alumínio. No Brasil, um dos trabalhos mais avançados é conduzido no Center for Advanced and Sustainable Technologies (Cast), da Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São João da Boa Vista (SP).

“Nossas técnicas possibilitam a recuperação e o reaproveitamento de materiais com potencial tóxico e estimulam a economia circular. Com isso, é possível reduzir o impacto ambiental que seria gerado por novas atividades minerais”, destaca o engenheiro ambiental José Augusto de Oliveira, coordenador do Cast. As metodologias em desenvolvimento recorrem a processos de hidrometalurgia, que preveem a lixiviação, ou seja, a separação dos metais contidos nas baterias por sua contínua dissolução em meio aquoso.

Uma bateria de íons-lítio é composta por várias pequenas pilhas, chamadas de células, que formam um pacote maior, ou pack, no jargão dos engenheiros (ver Pesquisa FAPESP no 261). A primeira etapa de qualquer processo de reciclagem ou reaproveitamento de baterias é o desmembramento do pack. O procedimento mais tradicional prevê a detecção das células que ainda estão aptas a formar um novo pacote, dando origem a uma bateria de segunda vida. As células que chegaram ao fim de sua vida útil são encaminhadas para o descarte. São essas células o foco do trabalho dos pesquisadores do Cast.

Campo de mineração de lítio no deserto do Atacama, no Chile — Foto: LFREEDOM_WANTED / Alamy / Fotoarena
Campo de mineração de lítio no deserto do Atacama, no Chile — Foto: LFREEDOM_WANTED / Alamy / Fotoarena

A sequência do processo desenvolvido na Unesp, conforme descrição de Oliveira, envolve a separação de todos os componentes das células, como os plásticos contidos no invólucro e usados como isolante entre a estrutura metálica e o material interno. Esse último é constituído pelo cátodo (polo positivo da bateria), uma lâmina de alumínio onde estão os óxidos de lítio e de cobalto, pelo ânodo (polo negativo), uma lâmina de cobre envolvida em grafite, e por uma membrana plástica que faz a separação entre os dois polos. Por estar em contato com ambos, essa membrana pode conter grafite e óxidos metálicos.

O desmanche da célula é feito manualmente, com o auxílio de máquinas para cortar. As folhas metálicas obtidas são submetidas a um banho com uma solução química aquosa criada para remover o cobre e o alumínio, que já saem do processo prontos para a reutilização. Já o grafite e os óxidos de lítio e de cobalto com alto grau de pureza são obtidos após a filtração das respectivas soluções. O processamento da membrana exige, igualmente, uma filtração e uma etapa posterior de separação para a purificação dos óxidos metálicos presentes nela.

“Os reagentes químicos utilizados são de fontes orgânicas. Foram escolhidos para minimizar impactos ambientais e maximizar o benefício econômico e a segurança laboral”, explica a química Mirian Paula dos Santos, pesquisadora responsável pelo processo de extração dos óxidos metálicos. “A tecnologia está sendo aprimorada. Só no final do processo, vamos conseguir calcular os impactos ambientais e a viabilidade econômica”, ressalta. Por ora, diz ela, a técnica está validada em escala laboratorial.

O potencial econômico da metodologia, de acordo com Oliveira, é favorável. “Estudos iniciais indicam que a venda do óxido de lítio gera recursos suficientes para cobrir os gastos da reciclagem”, diz. A etapa atual de desenvolvimento da técnica, que gerou um depósito de patente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) em 2020, proporciona uma taxa de recuperação de 90% do óxido de lítio com 98% de pureza; quando contaminado com grafite, a taxa é de 50% de pureza. Os componentes restantes da bateria são totalmente recuperáveis, de acordo com artigo publicado em 2021 na revista científica Resources, Conservation and Recycling.

Esses resultados permitiram à Unesp fechar um acordo de desenvolvimento tecnológico e de licenciamento de uma versão de seu processo de reciclagem, com novos reagentes, com uma empresa brasileira com atuação global. Em um primeiro momento, o objetivo é utilizar a tecnologia para reciclar as baterias dos veículos que ela produz. Posteriormente, antecipa Oliveira, a companhia, cujo nome não pode ser revelado por questões contratuais, avalia com a Unesp uma estratégia comercial para viabilizar a oferta do serviço de reciclagem de forma abrangente a terceiros. A cooperação entre a universidade e a multinacional conta com apoio da FAPESP por meio do programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite).

Outra técnica para reciclagem das baterias de íons-lítio em desenvolvimento no Cast segue uma rota não convencional, que utiliza água em condição supercrítica como solvente para recuperar os óxidos metálicos. “Para isso, a água deve ser submetida a uma temperatura superior a 374 graus Celsius [oC] e a uma pressão de 240 atmosferas [atm]. Sob essas condições, já não há mais diferença entre seu estado líquido e gasoso”, descreve o engenheiro químico Lúcio Cardozo Filho, responsável pelo projeto de pesquisa. “A água supercrítica, submetida a temperatura e pressão extremas, tem uma reatividade adequada para processar, tratar e extrair compostos inorgânicos, como os óxidos metálicos encontrados nas baterias de lítio.”

Embora levar a água à condição supercrítica não seja trivial, o fluido utilizado, segundo Cardozo, não precisa ser de boa qualidade, podendo ser água de reúso, e o processo não emprega nenhum reagente químico adicional para a extração dos óxidos metálicos. “O sucesso na separação dos metais supera 98%”, informa o engenheiro. O resultado alcançado é uma mistura de óxidos metálicos, conhecido como black mass, que ainda precisará passar por um processo de separação e purificação comumente usado na hidrometalurgia convencional. “Nosso próximo desafio é conseguir recursos adicionais para escalar o processo”, antecipa Cardozo Filho.

A reciclagem de baterias de íons-lítio é um processo mais sustentável e econômico do que a retirada dos minerais da natureza. No caso do lítio, são necessários 100 quilos (kg) do mineral bruto para produzir 1,6 kg de lítio. Já um processo de reciclagem é capaz de recuperar 7 kg de óxido de lítio em cada 100 kg de bateria. A extração do minério tem alto impacto ambiental pelo uso intensivo de água, além de o refino ser eletrointensivo, com os materiais rochosos aquecidos a temperaturas acima de 1.000 ºC, o que consome muita energia.

A demanda global por armazenamento em baterias de lítio deve crescer de 700 gigawatts-hora (GWh) em 2022 para 4,7 mil GWh em 2030, de acordo com estudo da consultoria McKinsey. O aumento da demanda, dizem especialistas, faz com que a recuperação e o reaproveitamento dos materiais metálicos que formam essas baterias se imponham.

O setor automotivo é o principal destino das baterias de lítio, com cerca de 80% da produção sendo direcionada às montadoras. Uma bateria veicular típica para veículos elétricos pesa mais de 200 kg e tem vida útil entre 8 e 10 anos. A Agência Internacional de Energia (AIE) estima que a produção de lítio precisará crescer quase dez vezes até 2050 para atender ao aumento da demanda mundial do produto.

“A produção de insumos corre o risco de não acompanhar a crescente demanda global. O resultado é que poderemos ter escassez de baterias até 2030”, alerta o físico Hudson Zanin, da Faculdade de Engenharia Elétrica e Computação da Universidade Estadual de Campinas (Feec-Unicamp), coordenador de uma pesquisa que visa desenvolver uma bateria à base de sódio (ver Pesquisa FAPESP no 329). “A reciclagem e a integração progressiva dos materiais recuperados nas novas baterias oferecem vantagens tanto do ponto de vista ambiental quanto econômico, garantindo o suprimento de insumos”, afirma.

Zanin explica que os principais processos de reciclagem empregados no mundo são os pirometalúrgicos e os hidrometalúrgicos, que, segundo o pesquisador, alcançam uma eficiência superior a 80%. Na pirometalurgia, a incineração do material pode liberar gases tóxicos, o que é indesejável.

Já os processos de hidrometalurgia, apesar de consumirem água, poluem menos e demandam menos energia. “O gasto de água é bem menor do que o da mineração do lítio. Nos processos de reciclagem por hidrometalurgia, utiliza-se em torno de 5 litros [L] de água para a obtenção de 100 gramas [g] de sal de lítio. Na mineração, o consumo de água pode variar de 50 a 90 L para se obter 100 g de carbonato de lítio”, informa Oliveira.

A remanufatura de baterias de lítio em novos packs com o aproveitamento das células que perderam rendimento, mas ainda não chegaram ao fim de seu ciclo de vida, é foco de um projeto que o centro de inovação CPQD desenvolve em Campinas (SP) em parceria com a CPFL Energia e a BYD, fabricante chinesa de baterias e veículos elétricos.

Como explica o engenheiro Aristides Ferreira, gerente de soluções de sistemas de energia do CPQD, as baterias utilizadas pelos veículos elétricos são tracionárias, ou seja, são usadas para a tração do veículo e, para isso, são submetidas a condições operacionais intensas. Após um período que varia de 8 a 10 anos, dependendo do uso, perdem capacidade de armazenar energia e gerar a tração necessária para movimentar um veículo. Mas ainda podem ser úteis em aplicações menos exigentes, como baterias estacionárias, sistemas de backup e módulos de armazenamento de energia de fontes de geração solar e eólica, que são intermitentes. Permitem, por exemplo, acumular a energia gerada durante o dia em um painel solar fotovoltaico para o aproveitamento noturno ou a energia de fonte eólica quando não há vento.

O projeto do CPQD envolveu a criação de algoritmos capazes de verificar a qualidade das células retiradas de uma bateria veicular de íons-lítio e determinar sua longevidade, sem a necessidade de longos ensaios laboratoriais, facilitando a seleção das melhores células em uma segunda vida em baterias estacionárias. O CPQD já desenvolveu um protótipo de bateria de segunda vida, que se encontra em fase de testes em um laboratório que possui planta de geração de energia fotovoltaica na Unicamp.

Texto: Léo Ramos Chaves, Revista Pesquisa Fapesp

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