Gastos globais em inteligência artificial atingirão US$ 154 bilhões ainda neste ano, um aumento de 26,9% sobre o valor gasto em 2022, segundo projeções da consultoria global IDC; a tecnologia também ficou na mira de investidores e deve seguir em expansão no próximo ano, avaliam analistas do mercado
A inteligência artificial (IA) dominou o mundo em 2023. Não só foi protagonista das discussões no setor de tecnologia — a ONU, por exemplo, realizou um evento totalmente dedicado ao tema –, como também atraiu boa parte dos investimentos e engrossou gastos corporativos. Embora a tecnologia esteja em desenvolvimento há décadas, a “corrida da IA” ganhou celeridade em janeiro, quando o ChatGPT, chatbot de IA generativa da OpenAI, atingiu 100 milhões de usuários ativos dois meses após seu lançamento.
O marco alcançado pelo chatbot parece ter reorganizado o mercado todo em torno da IA. Não houve uma empresa grande que não tenha feito algum movimento nesse sentido: a Microsoft, que já era uma investidora da OpenAI, atualizou seu mecanismo de busca Bing para incluir o GPT-4; o Google, por sua vez, lançou o Bard para rivalizar com o ChatGPT; a Amazon lançou o “Q”, chatbot de IA para empresas, e há relatos de que esteja investindo milhões de dólares no treinamento de um “ambicioso” projeto de IA generativa. A Apple, que tem se mantido mais discreta, aumentou seus investimentos em P&D em pelo menos US$ 3 bilhões, impulsionados pelos trabalhos também em IA generativa.
“De fato, o ano é marcado pela IA, não tem como dizer outra coisa. Se você for ver a performance do [índice da Bolsa dos EUA] S&P 500 e tirar as sete maiores empresas de tecnologia, você vai ver que [a performance] não foi tão boa este ano. Isto é, mais de 50% do rali do S&P 500 está relacionado à IA este ano. É um tema que realmente vem muito forte, especialmente no mercado norte-americano”, aponta Thomas Monteiro, analista da Investing.com.
“A verdade é que hoje estamos diante de uma revolução, e não vai ter volta”, acrescenta Monteiro. “A gente pode chamar de buzz? Na minha visão, não. É exagerado considerar a IA simplesmente um hype. Por outro lado, ainda que de fato a gente espere um potencial muito grande de lucros corporativos, não só no segmento de tecnologia, mas em todo o espectro produtivo — incluindo bancos, serviços e outros setores –, existem ainda muitas empresas que não geram lucros em relação à IA. Outras estão em fase inicial, outras diversas ainda não chegaram ao patamar de inovação de fato. As duas coisas coexistem. Então, o investidor tem a tarefa de separar o joio de trigo”, observa.
Para Bruno Batavia, diretor de Tecnologias Emergentes do Valor Capital Group, o cenário prova que a IA deixou de ser uma promessa futurista para se tornar “uma realidade prática”. “O mercado de IA experimentou um salto no volume de investimentos em 2023, uma tendência que provavelmente persistirá no próximo ano. Esse salto é evidência clara de um mercado em expansão, apesar de dois terços desse crescimento serem atribuídos a poucas, mas significativas, transações, como a parceria entre a Microsoft e a OpenAI”, diz.
Brasil, mais consumidor que desenvolvedor
Uma projeção da consultoria global International Data Corporation (IDC) mostra que os gastos globais com inteligência artificial, incluindo software, hardware e serviços para sistemas centrados em IA, atingirão US$ 154 bilhões ainda neste ano, um aumento de 26,9% ante o valor gasto em 2022. O valor engloba não apenas o segmento de tecnologia — os dois setores com maiores investimentos em IA no ano, segundo o IDC, são financeiro e varejo.
Olhando ainda mais a longo prazo, o mercado de IA generativa pode crescer para US$ 1,3 trilhão nos próximos 10 anos, de acordo com um relatório da Bloomberg Intelligence (BI). Além disso, a crescente procura de produtos de IA generativa poderá incluir cerca de US$ 280 bilhões em novas receitas de software, impulsionadas por assistentes especializados e novos produtos de infraestrutura. Empresas como Amazon WebServices, Microsoft, Google e Nvidia poderão ser as maiores beneficiárias, de acordo com a BI.
“Acredito que os próximos anos vão seguir sendo de investimentos e aperfeiçoamento. Sem dúvidas as grandes empresas devem seguir investindo pesado na área”, observa Pedro Henrique Accorsi, analista e consultor de investimentos na Benndorf Research.
Sobre o mercado brasileiro, ele acredita que ainda há uma certa defasagem. “O Brasil sempre reage de forma um pouco atrasada aos grandes eventos globais quando eles demandam mão de obra altamente especializada. Em geral, os maiores interessados da IA em nosso país são os próprios consumidores, e não as empresas desenvolvedoras — até porque elas quase não existem em solo nacional. É claro, existem exceções, mas nosso mercado é muito mais consumidor do que desenvolvedor”, observa.
Um estudo divulgado recentemente pelo IDC aponta que as plataformas de IA devem crescer 38% na América Latina em 2024, ao mesmo tempo em que as empresas vão sofrer uma maior pressão nos custos relacionados a gastos com infraestrutura de rede. A consultoria estima que, até 2028, 35% dos serviços de empresas da região incluirão entregas já habilitadas para IA generativa.
Startups de IA em alta
Outro sinal que demonstra a força da IA na atração de investimentos vem do ecossistema de inovação — em meio ao “inverno das startups”, aqueles negócios que de alguma forma estão pautados por IA têm animado os investidores. No Web Summit Lisboa, um dos maiores eventos de inovação do mundo, uma sondagem feita com 111 investidores de capital de risco mostrou que, para 62,2%, a IA e o aprendizado de máquina têm o maior potencial de inovação entre as tecnologias emergentes. No ano anterior, essa fatia era de 29%.
As gigantes de tecnologia também fizeram aportes em startups do segmento. A AWS (braço de serviços de nuvem da Amazon) decidiu injetar US$ 300 milhões em startups de IA generativa; o Google investirá US$ 2 bilhões (cerca de R$ 10 bilhões) na Anthropic, segundo anúncio feito em outubro. A empresa já havia investido US$ 500 milhões anteriormente e concordou em adicionar mais US$ 1,5 bilhão ao longo do tempo.
“Soluções que utilizam IA têm uma demanda crescente. Por isso, apesar de todos os problemas macroeconômicos que atingiram os aportes nas startups nos últimos anos, como a alta dos juros, por exemplo, as empresas disruptivas que ofertem esse tipo de solução continuarão a chamar a atenção dos investidores”, acredita Igor Marinelli, Co-CEO da Tractian, startup brasileira que fornece tecnologia de IA e Internet das Coisas (IoT) para indústrias. A própria Tractian recebeu investimento de R$ 230 milhões em rodada série B, liderada pelo fundo General Catalyst.
Um relatório do PitchBook divulgado em maio sobre avaliação de negócios em estágio inicial apontou que a mediana das avaliações de startups de IA generativa, em rodadas iniciais, aumentou 16% em 2023 na comparação com o ano passado. Enquanto isso, os preços de avaliação de todos os outros segmentos de startups em estágio Série A ou Série B caíram quase 24%.
Na América Latina, o cenário é semelhante. As startups da região captaram durante o mês de novembro US$ 287 milhões, o menor volume mensal registrado desde julho de 2020, segundo relatório da Sling Hub. A maior captação do mês foi feita pela logitech brasileira Logcomex, que auxilia empresas com dados em tempo real sobre importações e exportações, utilizando — justamente — inteligência artificial. Ela levantou US$ 32,5 milhões em uma rodada série B liderada pela Riverwood Capital.
O que esperar para 2024
Em relação ao cenário de investimentos, Thomas Monteiro faz um alerta: “A gente está entrando num momento em que parece haver uma divergência muito grande entre a precificação do mercado e os indicadores macroeconômicos, e isso pode ser um problema. Se você está colocando Venture Capital de maneira desenfreada em empresas que ainda não dão lucros, contando que ano que vem você terá um ambiente de juros mais favorável, caso isso não se materialize poderemos ver a morte de muitas empresas pequenas”, avalia.
As big techs também podem enfrentar problemas, acrescenta o analista. “A Microsoft parece estar bem à frente, pois já tem um portfólio de produtos robusto que monetiza IA de maneira interessante, mas a Amazon, por exemplo, ainda está numa fase um pouco atrás. Vai ter capital, vai ter possibilidade de investir? Vai. Mas a verdade é que nos próximos balanços essa conta vai ser cobrada. Se o ambiente de juros não se materializar da maneira que o mercado espera, os investidores vão ser muito mais meticulosos ao olhar os balanços dessas empresas, principalmente no que diz respeito aos retornos de investimento de IA”, analisa.
Em relação à indústria como um todo, Bruno Batavia acredita em uma ampliação ainda maior do uso de interfaces de usuário baseadas em linguagem, tornando o acesso a produtos e serviços digitais mais inclusivo, especialmente em mercados emergentes como o Brasil. “Uma das tendências para o próximo ano na IA é a redução do custo de criação de conteúdo. As ferramentas de aumento de produtividade baseadas em IA, que lidam com tarefas monótonas usando dados desestruturados, também vão se destacar, transformando o trabalho”, acredita.
Fonte: Época Negócios