A juíza Beryl A. Howell, do Tribunal Distrital dos Estados Unidos, decidiu na sexta-feira (18) que uma obra de arte gerada por Inteligência Artificial (IA) não pode ter copyright ou o registro de direitos autorais, conforme reportado pelo site The Verge.
No caso em questão, Stephen Thaler, criador do algoritmo Creativity Machine, abriu um processo contra o Escritório de Direitos Autorais dos EUA depois que reiterados pedidos para o registro da imagem “Uma entrada recente no paraíso”, totalmente gerada por sua IA, foram recusados.
A magistrada alegou que os direitos autorais nunca foram concedidos a trabalhos “ausentes de qualquer mão humana orientadora”, acrescentando que “a autoria humana é um requisito fundamental dos direitos autorais”.
A decisão é a primeira no país a estabelecer limites para a proteção legal de obras de arte geradas por IA, após a explosão de popularidade de aplicações geradoras de imagens como o Midjourney e Stable Diffusion.
Mas essa não será a última vez que casos envolvendo IA e os direitos autorais são levados à corte e que tocam em um tema que há séculos é discutido no mundo das artes: a interação entre o homem e as tecnologias para geração de obras artísticas.
Carolina Loch, diretora do Museu de Arte Contemporânea do Paraná, afirma que os artistas sempre estiveram alinhados com as tecnologias de seus tempos. “A discussão calorosa que temos hoje sobre Inteligência Artificial e arte já teve precedentes com o surgimento da fotografia, por exemplo. Também se questionava o papel da pessoa que clica o botão da máquina. Fotógrafo/artista ou apenas um operário dela?”
Macaco e IA podem ser detentores de direitos autorais?
Uma controvérsia parecida teve lugar em 2011, quando o fotógrafo britânico David Slater viajou para a Indonésia para fotografar a flora e fauna do país. Seguido por uma trupe de macacos, ele posicionou o tripé e ajustou a câmera, que foi acionada diversas vezes por alguns dos membros do bando.
Em uma das imagens, um macaco, que posteriormente seria chamado de Naruto, “tirou uma selfie” na qual parece sorrir e que viralizou após ser divulgada pelo jornal britânico Daily Mail.
Mas a saga de Slater, Naruto e dos copyrights estava apenas começando. Em 2014, a Wikipedia publicou a foto como sendo de domínio público. A enciclopédia online, que ainda mantém o status da imagem, se justificou dizendo que macacos não podem possuir direitos autorais.
No ano seguinte, Slater foi processado pela PETA, uma entidade para a proteção dos animais, sob a alegação de que a selfie “resultou de uma série de ações intencionais e voluntárias de Naruto, sem a ajuda do Sr. Slater, resultando em obras originais de autoria não do Sr. Slater, mas de Naruto”.
A corte da Califórnia indeferiu a ação, afirmando que o processo não poderia continuar, mesmo que o macaco tivesse tirado as fotos por “ação independente e autônoma”, já que os animais não têm legitimidade em um tribunal e, portanto, não podem levar adiante processos por violação de direitos autorais.
Essa decisão foi utilizada pela juíza Howell para fundamentar a sua sentença no caso de Thaler. Contudo, ambas as teses estão longe de colocar um ponto final na discussão sobre os direitos autorais ou a capacidade da IA de criar ou não trabalhos originais ou artísticos.
A juíza reconhece que o tema suscita “questões desafiadoras sobre quanta contribuição humana é necessária” para uma obra de arte. A humanidade está “se aproximando de novas fronteiras em direitos autorais”, onde os artistas usarão a IA como uma ferramenta para criar novos trabalhos, relatou.
Gerard Vilar Roca, PhD em filosofia e professor da Universidade Autônoma de Barcelona, com pesquisas no campo da estética e arte, acredita que, do ponto de vista artístico, a sentença da juíza está equivocada.
“É verdade que atualmente não há consenso sobre as criações de IA generativa e tudo é discutível. Mas minha posição no momento é que a autoria final não desaparece nas ferramentas que usamos, mas que existe um ser humano que, em última análise, programou o algoritmo de tal e tal maneira”, afirma
Ainda que não se possa confundir macacos com IA, a posição de Vilar não deixa de ter elementos comuns e até chega a coincidir com a do fotógrafo britânico. Slater defende que seus direitos autorais não se devem ao clique que o macaco fez para registrar a imagem.
Pelo contrário, seus direitos sobre a fotografia se devem aos arranjos anteriores que ele mesmo produziu: enquadramento, foco, regulagem da luz e de outras funções da câmera – ou seja, na sua expertise em manejar as tecnologias disponíveis para realizar uma captura única da realidade.
Imagens geradas por IA: ineditismo ou criatividade?
Indo mais a fundo na discussão sobre a imagem de Thaler, Carolina ressalta que há uma confusão entre a criação de uma obra de arte e a geração de uma imagem. Mesmo que tenham características similares àquelas que encontramos em uma peça artística, uma imagem nem sempre será uma obra de arte.
“O ato de criar arte vem do poder simbólico do ser humano e de suas necessidades de se expressar perante o mundo, coisa que máquina alguma consegue fazer. O caso da imagem gerada pela máquina criada por Stephen Thaler, para mim, não está no campo das artes, mas no campo do poder sobre a tecnologia, que é um fetiche tecnológico humano recente”, concluiu.
Mas, ciente de seu poder criativo e inventivo, o que leva o homem a criar tecnologias que parecem poder substituí-lo? De acordo com Carolina, a própria falta de habilidade para lidar com alguns dos principais questionamentos que o instigam a criar.
“O ser humano, não contente com suas habilidades e limitações, cria máquinas com a intenção de que elas façam o mesmo que ele, para assim poder aliviar a pressão que é existir. Muitos artistas usam tecnologias vigentes de seus tempos para criar obras contemporâneas e fazem isso com sucesso. Mas, apenas gerar uma imagem a partir de códigos, sem nenhum motivo maior, é só colocar mais uma imagem no mundo e testar as possibilidades da máquina”, explica.
IA e o plágio: novas fronteiras para os direitos autorais
Diretamente ligada à jurisdição dos direitos autorais, também está a discussão sobre as informações a partir das quais as soluções de IA geram seus textos e imagens. Para treinar suas invenções, as empresas utilizam bases de dados gigantescas, que contém pinturas, ilustrações, gravuras e fotos, todas elas produzidas por seres humanos.
A questão tem gerado diversos processos nos EUA, como, por exemplo, o que Sarah Silverman e dois outros autores abriram contra OpenAI, dona do ChatGPT, e a Meta, a controladora do Facebook e Instagram. Eles alegam que as ferramentas de extração de dados para treinar as aplicações de IA dessas empresas violaram seus direitos autorais.
Da mesma forma, é possível afirmar que as imagens geradas por IAs violam os direitos autorais de artistas visuais, pintores, escultores? Ou, até mesmo, alegar que os produtos gerados sejam versões originais e não plágios?
Do ponto de vista da criação artística, Carolina ressalta que o uso desses bancos de dados e as combinações feitas pelos códigos, que buscam imitar as conexões realizadas pela mente humana, geram imagens apenas inéditas, mas não autênticas, o que as descaracteriza como obras artísticas.
“Pode observar, se você está em um museu e se depara com uma colagem feita por um artista, você navega sobre ela tentando completá-la com seu repertório, lembranças, conhecimento prévio… Já se você se depara com uma “colagem”, cuja ficha técnica diz que foi feita por uma máquina, você automaticamente deixa de analisar as questões mais sensíveis e parte para o deslumbramento ou indignação pela obra não ter sido feita por um humano. E a questão passa a ser a máquina e não as camadas que uma obra de arte por si só pode trazer”, comenta a diretora.
Vilar está de acordo com essa visão, mesmo ao reiterar que a criação de obras de arte seja um assunto altamente variável na história e especialmente na arte contemporânea. “Depende muito de que tipo de arte de que estamos falando, de quais materiais, etc. Mas nunca vi uma obra de arte que não partisse pelo menos de uma ação humana. Há sempre alguém que cria a ocasião para que uma obra de arte apareça”, completa.
O professor, no entanto, não descarta que possa haver um momento, mesmo que esteja distante, em que a IA seja capaz de criar suas próprias obras de forma autônoma – a hipótese de uma IA senciente, não só defendida, como também temida por várias autoridades em tecnologia.
“Não vejo, de momento, e apesar de algumas informações de pessoas exaltadas, que a IA seja mais do que uma ferramenta complexa, mas que não tenha autoconsciência. Isso pode não ser o caso no futuro, e podemos precisar mudar nossa compreensão do assunto, mas, por enquanto, a IA é menos inteligente do que muitas pessoas estão dispostas a acreditar”, considera o professor.
Carolina não é tão otimista a esse respeito e acredita que máquina alguma conseguirá o poder de expressão do ser humano. “É claro que ferramentas de IA, sendo uma das tecnologias de nossos tempos, vão aparecer na arte. E devem! É possível explorá-las com consciência e responsabilidade, usando-as para colaborar com o artista e suas questões, não para terceirizar o trabalho dele. Existem trabalhos fantásticos com o tema e ainda vão surgir muitos. O que não podemos deixar acontecer é transferir à máquina aquela única tarefa que nos torna nós mesmos”, conclui.
Caminho jurídico segue incerto
Mesmo diante da decisão da juíza Howell, Stephen Thaler planeja apelar novamente. Seu advogado disse discordar da “interpretação do tribunal sobre a Lei de Direitos Autorais”, segundo reportado pela Bloomberg Law.
Já o Escritório de Direitos Autorais dos EUA declarou que a decisão do tribunal foi acertada. Mas casos como esse estão longe de chegar a uma regulação clara e concisa. Recentemente, o próprio Escritório emitiu orientações sobre a possibilidade de direitos autorais de obras criadas com a ajuda da IA, trazendo mais combustível para o debate.
Em outra ação controversa, o Escritório concedeu um registro limitado de direitos autorais para uma história em quadrinhos feita com assistência de IA. A decisão, de fevereiro deste ano, pode configurar uma jurisprudência que abre a porta para proteger tais obras.
Fonte: Gazeta do Povo