De 2008 a 2019, eventos relacionados ao clima provocaram uma média de 21,5 milhões de novos deslocamentos a cada ano. Criar e consolidar legislações nacionais para acolher é urgente

O empresário e professor Fedo Bacourt dava aula de inglês no segundo andar de uma escola quando foi avisado sobre o terremoto. Eram 16h53 do dia 12 de janeiro de 2010, uma terça-feira. Fedo saiu correndo do prédio com seus alunos em Porto Príncipe, no Haiti. Do lado de fora, o horror era visível no céu cinza, empoeirado, pessoas correndo, choro, hospitais lotados, gente sem poder sair de estabelecimentos porque as portas não abriam.

Nos dias seguintes, o cheiro de morte pairava no ar: muitos corpos ainda esperavam ser retirados dos escombros. O terremoto de 7.3 graus que atingiu a capital haitiana matou cerca de 230 mil pessoas e deixou mais de um milhão de desabrigados. O evento fez com que o número de migrantes haitianos subisse mais de 50% entre 2010 e 2020, totalizando 1,7 milhão de pessoas, o equivalente a 15% da população nacional.

Fedo foi um dos que deixaram o país. Diretor pedagógico de duas instituições, ele lecionava em outras cinco, tinha a própria escola de inglês e uma boa condição financeira. Saiu ileso do desastre, mas o trauma permaneceu. “O terremoto ficou se repetindo. Às vezes, a terra nem tremia, mas eu sentia o terremoto. Psicologicamente, deixou a lembrança”, diz ele, que, na época, acordava no meio da noite sentindo a terra tremer e corria para fora de casa.

“O medo ficou. Eu precisava sair para me recuperar”, conta. Naquele mesmo ano, Fedo trocou o Haiti pela República Dominicana, país vizinho onde dois de seus irmãos já viviam. Falante de oito línguas, ele passou três anos trabalhando com turismo em Punta Cana, quando decidiu morar no Brasil, onde alguns amigos estavam vivendo.

Fedo Bacourt: — Foto: Acervo pessoal
Fedo Bacourt: — Foto: Acervo pessoal

“Passei pelo Equador, onde peguei o visto humanitário brasileiro. Em setembro de 2013, cheguei em São Paulo”, diz. “Desde então, estou aqui lutando, sobrevivendo.” Na cidade, Fedo construiu uma família: tem três filhos e administra, com a esposa, um mercado, além de prestar serviços de marketing. Vendo a difícil situação dos compatriotas que chegavam aqui, criou, naquele mesmo ano, a União Social dos Imigrantes Haitianos. A instituição ajuda os imigrantes a regularizarem seus documentos e a conseguirem emprego e moradia. Em dez anos de existência, mais de 3 mil haitianos foram atendidos.

Apesar de muitos haitianos deixarem o país devido a desastres ambientais, eles não são considerados refugiados ambientais nem climáticos. Em 1985, o conceito foi citado pela primeira vez em uma conferência internacional, mas nunca foi efetivado na forma de uma lei. Apesar da falta de reconhecimento legal, esses refugiados existem, são muitos e seguem aumentando.

Criado em 1951 pela Convenção da Organização das Nações Unidas, o Estatuto do Refugiado visava proteger as pessoas perseguidas durante a Segunda Guerra Mundial na Europa. São considerados refugiados pessoas que migram por fundado temor de perseguição e que perdem a segurança em seu país por questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a determinado grupo social ou opiniões políticas. Em 1967, o acordo foi ampliado para o resto do mundo, mas as definições sobre quem é considerado refugiado seguia sem abarcar causas ambientais e climáticas.

O Banco Mundial estimou, em 2021, que 216 milhões de pessoas no mundo poderão ser forçadas a migrar de seus países até 2050 fugindo de eventos climáticos adversos. Segundo a entidade, além dos eventos climáticos extremos, as principais causas ambientais e climáticas que levam as pessoas a se deslocarem são escassez de água, diminuição da produtividade no campo, temperaturas excessivamente elevadas, aumento do nível do mar e a consequente perda de terras.

A região mais afetada deverá ser a África Subsaarinana, com quase 40% dos migrantes climáticos (86 milhões) até 2050, seguida do Leste Asiático e Pacífico, com 22,6% (49 milhões). Da América Latina, deverão sair 17 milhões de migrantes climáticos nos próximos 27 anos, mais de 7% do total. Outras populações afetadas estão no Sul da Ásia, Ásia Central, África do Norte e Europa Oriental.

Deslocados internos

Migrantes:  a maioria das pessoas deslocadas por desastres permanece em seus países de origem. — Foto: Valeria Ferraro/Anadolu Agency via Getty Images
Migrantes: a maioria das pessoas deslocadas por desastres permanece em seus países de origem. — Foto: Valeria Ferraro/Anadolu Agency via Getty Images

Segundo dados do Global Report on Internal Displacement (Grid), do Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (Idmc), de 2023, foram registrados 60,9 milhões de deslocamentos internos em 2022, com um recorde de 32,6 milhões associados a desastres ambientais, 10 milhões a mais do que os provocados por conflitos e violência (28,3 milhões).

O aumento de deslocados ambientais em comparação à última década foi substancial. De 2008 a 2019, eventos relacionados ao clima provocaram uma média de 21,5 milhões de novos deslocamentos a cada ano. A expectativa é que esses números continuem crescendo à medida que a frequência, duração e intensidade dos desastres naturais se agravam no contexto da emergência climática.

A maioria das pessoas deslocadas por desastres permanece em seus países de origem. É o caso da gestora ambiental Naira Zarco, de 25 anos. Natural de Petrópolis (RJ), ela vivenciou na cidade o evento extremo de 15 de fevereiro de 2022, que deixou mais de 150 pessoas mortas e centenas desabrigadas. A enchente chegou ao segundo andar do prédio do BNH (Banco Nacional de Habitação) onde ela vivia, forçando-a a se deslocar a Juiz de Fora (MG). “O prédio voltou a alagar nas enchentes seguintes e houve o capitalismo de desastre: quando a imobiliária infla o valor do aluguel porque sabe que muita gente perdeu suas casas e quer lucrar com o desastre”, explica.

Naira Zarco: natural de Petrópolis (RJ), ela vivenciou na cidade o evento extremo de 15 de fevereiro de 2022. — Foto: Divulgação
Naira Zarco: natural de Petrópolis (RJ), ela vivenciou na cidade o evento extremo de 15 de fevereiro de 2022. — Foto: Divulgação

Naira diz não ter recebido nenhuma ajuda do poder público, como aluguel social, e hoje sofre de ansiedade climática. “Quando chove, eu e minha mãe ficamos completamente desesperadas. A gente revive tudo o que aconteceu”, afirma. Hoje, Naira é fundadora do Instituto DuClima, que atua no combate ao racismo ambiental através de ações efetivas nos territórios nacionais, educomunicação e litígio climático. Ela defende a criação de políticas públicas que atendam aos deslocados climáticos.

“O meu filho vivenciou uma crise do clima aos dois anos de idade. Fala-se muito de pensar nas gerações futuras sendo que a atual já está muito ameaçada. Isso me influenciou a atuar nesse tema, principalmente na busca de soluções.”

— Naira Zarco, afetada por enchentes fundadora do Instituto DuClima.

Legislação internacional

Pesquisadora da Resama (Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais), a advogada Leilane Reis explica que qualquer migrante busca ficar no próprio país porque deixá-lo exige um esforço muito maior, pela diferença cultural, de idioma e distância da família, se tornando a última opção. Quem não tem alternativa a não ser ir para outros países, como cidadãos de Estados que estão desaparecendo pelo aumento do nível do mar, não encontram proteção jurídica necessária.

Segundo especialistas, a existência de uma legislação internacional sobre refúgio climático garantiria uma maior segurança a essas pessoas e é urgente com o aumento das consequências da mudança climática. Mas, de acordo com eles, é improvável que o Estatuto do Refugiado seja modificado pela dificuldade política de intervir na soberania dos Estados, exigindo que acolham refugiados climáticos sob pena de sanções.

Para o imigrante ambiental Fedo Bacourt, o reconhecimento como refugiado climático garantiria mais direitos e segurança aos deslocados de seu país de origem. Segundo ele, de 2010 a 2017, as migrações no Haiti tinham causas majoritariamente ambientais e, a partir de então, elas foram acrescidas à crise política. “É muito difícil passar um ano sem que aconteça um evento ambiental sério no Haiti”, observa.

No Brasil, o visto humanitário, recebido por Fedo e pelos demais haitianos que chegam ao país, é válido por dois anos. Para renová-lo, é preciso ter trabalho no país. “Se o imigrante não consegue comprovar isso, vai ter que ir embora. Já no refúgio clássico não existe esse prazo nem a necessidade de comprovação de subsistência para renovação”, explica Diana Quintas, sócia no Brasil da Fragomen, empresa de migração fundada em 1951, e vice-presidente da Associação Brasileira dos Especialistas em Migração e Mobilidade Internacional (Abemmi).

Segundo ela, devido à insegurança no prazo do visto humanitário e o maior desconhecimento sobre esse mecanismo, as empresas no Brasil acabam preferindo contratar pessoas reconhecidas como refugiadas, gerando desigualdade no acesso a oportunidades de emprego.

Sem o reconhecimento legal, os refugiados climáticos acabam não sendo contabilizados por organizações internacionais e ficam de fora do desenvolvimento de estruturas de acolhida, abrigos, atendimento médico e empregabilidade, gerando defasagem nos serviços prestados e na verba prevista, aponta Diana.

A especialista reforça o desenvolvimento econômico mundial trazido pelos imigrantes como incentivo para que os refugiados climáticos sejam legalmente reconhecidos. “Se essas pessoas continuarem na seca, sem água, sem alimento ou convivendo com enchentes, não terão como gerar riqueza. Já ao sair e tentar a vida em outro país, passam a gerar riqueza. É claro que isso demanda um investimento do país na acolhida”, diz, acrescentando que o trabalho dos imigrantes representa 10% do PIB global, segundo estimativas.

Apesar de ainda não ter sido formalizado em documento internacional, o tema tem sido considerado em posicionamentos públicos de órgãos mundiais e nacionais, como a Organização Internacional para as Migrações (IOM). Carolina Claro, professora de direito internacional no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, cita ainda o caso da Convenção de Kampala, de 2009, da União Africana, que reconhece pessoas deslocadas internamente por questões ambientais.

Já as legislações de Cuba, Bolívia e Chile incluem o reconhecimento da existência de pessoas refugiadas por motivos climáticos e ambientais. “Nas legislações argentina e brasileira, vemos que essas pessoas não têm uma categoria definida, mas podem ser protegidas sob a perspectiva de proteção humanitária”, afirma.

Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) nas Américas, admite uma resistência em alterar o Estatuto, de forma a preservar os direitos que ele já trás, mas argumenta que a falta de definição legal de refugiados climáticos não tem eximido as organizações humanitárias ao redor do mundo de atender essas pessoas.

Sobre os deslocados pelo terremoto no Haiti, Luiz lembra que o Acnur dialogou com os Estados para que recebessem essas pessoas seguindo o conceito de não retorno previsto no Estatuto do Refugiado, de forma a garantir a permanência dos haitianos nesses locais. “No caso do Brasil, quase 100% dos haitianos conseguiram residência no país por razões humanitárias.”

Soma de fatores

Segundo o Idmc, a soma de fatores que motivam as pessoas a se deslocarem têm gerado crises multidimensionais que imperam na atual mobilidade humana. Os impactos climáticos somam-se aos efeitos prolongados da pandemia, a crise econômica, a alta no preço dos alimentos e a insegurança alimentar que chegou a níveis recordes em várias partes do mundo pela guerra na Ucrânia.

“A mudança climática não só gera eventos extremos, como um furacão ou secas muito prolongadas, que obrigam as pessoas a saírem dos locais onde elas estão em busca de proteção, como também reduze o acesso a recursos naturais, o que pode gerar uma situação de conflito”, observa o porta-voz do Acnur. “É adicionada uma camada de vulnerabilidade a pessoas que já estão numa situação bastante vulnerável.”

É o caso da Somália, onde a guerra e a seca crescente se somam. Em Darfur, a disputa pela água, um recurso natural escasso, também impulsiona conflitos que forçam pessoas a se deslocarem. No Norte de Moçambique, os furacões que acontecem anualmente, intensificam os deslocamentos forçados provocados pelo crescente movimento de grupos armados não-estatais.

“Em campos de refugiados no Quênia, por exemplo, é muito difícil diferenciar se aquela pessoa fugiu da seca ou do conflito. Há uma interconexão grande entre as causas de refúgio e existe atendimento por parte das organizações humanitárias independente desse status”, defende Luiz.

Para Diana, a existência de uma legislação internacional reconhecendo os refugiados climáticos poderia evitar que causas climáticas evoluam para conflitos mais graves. “O desenrolar desse conflito pode até chegar a uma guerra civil e representar a abertura do reconhecimento do caso como refúgio, mas não precisamos esperar chegar a tanto para garantir esse reconhecimento”, afirma.

“É preciso viabilizar que as pessoas afetadas por causas climáticas e ambientais saiam do seu país e sejam bem recebidas, evitando tensões que podem levá-las até a integrar grupos terroristas por falta de alternativas em seu local de origem.”

— Diana Quintas, vice-presidente da Associação Brasileira dos Especialistas em Migração e Mobilidade Internacional (Abemmi).

Possíveis soluções

A continuidade no aumento das emissões de carbono faz com que a mudança climática siga contribuindo para elevar as crises humanitárias e os ciclos de deslocamentos pelo planeta. Segundo o Acnur, cerca de 90% dos refugiados vêm de nações vulneráveis e menos preparadas para se adaptar aos impactos da mudança no clima. Cerca de 70% das pessoas deslocadas internamente por conflito ou violência também viriam desses países.

De acordo com o Banco Mundial, se todos os países adotarem medidas imediatas de redução das emissões globais de gases de efeito estufa, restaurar ecossistemas e apoiar o desenvolvimento sustentável, os fatores que impulsionam a migração climática podem ser reduzidos em até 80%. Assim, a estimativa de 216 milhões de pessoas forçadas a migrar de seus países até 2050 seria reduzida para 44 milhões.

Os especialistas concordam que o primeiro passo é ir na raiz do problema, ou seja, diminuir as emissões de carbono. Em seguida, é preciso que as nações criem políticas públicas para a prevenção e adaptação a desastres naturais. O apoio internacional e nacional aos países mais vulneráveis, especialmente os mais pobres, aumentando sua resiliência a um clima em mudança e suas consequências também é importante e deveria integrar ações de justiça climática, segundo eles.

No caso de um deslocamento limitado a causas climáticas e ambientais, a ausência de legislação pode levar o imigrante a não ser acolhido pelo país onde virá a solicitar acolhimento. Segundo os especialistas, é preciso criar um novo mecanismo internacional que reconheça os refugiados climáticos, mas a perspectiva é de que isso demore para acontecer pela falta de interesse político das nações em se comprometerem com a causa.

Enquanto isso, é importante criar e consolidar legislações nacionais que reconheçam os migrantes climáticos e consolidar a necessidade de proteção dessas pessoas para além da existência de um mecanismo jurídico. “Um tratado internacional é extremamente importante, mas é preciso também que os Estados se comprometam com ele, ratifiquem e criem políticas públicas para garantir a inclusão e reconhecimento de categorias migratórias na prática”, defende Carolina.

Segundo os especialistas, é preciso que diversos atores, incluindo o setor privado e a sociedade civil organizada, se envolvam no debate, desde a mudança de padrão de consumo e produção industrial para reduzir emissões, até o acolhimento de refugiados climáticos e o seu reconhecimento jurídico. Escutar as pessoas afetadas por eventos climáticos e ambientais extremos, principalmente através de coletivos que as reúnem, é outro fator essencial para a criação de soluções mais eficazes e justas.

Texto: Martina Medina, para Um Só Planeta