Os recifes de corais oferecem abrigo e alimentos para cerca de 25% das espécies marinhas, protegem cidades e geram renda para comunidades costeiras, mas sofrem com aquecimento global, poluição, expansão imobiliária e turismo predatório
“Queria que cada um aqui pensasse na sua relação com o oceano. Como você acha que suas ações impactam o mar? Já ouviu falar de recifes de corais?”. Janaína Bumbeer, doutora em Ecologia e Ciências Marinhas e integrante da Liga das Mulheres pelo Oceano, dirigia as perguntas para uma plateia formada por um grupo seleto de jornalistas, influenciadores e cientistas reunidos em uma sala do CEPENE, um dos centros de pesquisa do ICMBio dedicados à conservação marinha, em Tamandaré, Pernambuco.
Na tarde daquela terça-feira, 24 de outubro, a gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário iria apresentar em primeira-mão um estudo de valoração dos serviços prestados pelos corais na costa nordestina brasileira. A pesquisa derivou de uma inquietação. As perguntas de abertura já haviam sido feitas em um questionário de percepção pública realizado pela Fundação há alguns meses. Dos entrevistados, 40% disseram que nada do que fazem impacta o oceano e 30% afirmaram que nada do que ocorre no oceano influencia sua vida.
“Foi impactante para a gente ouvir isso. Vimos que as pessoas precisam ter acesso a um maior conhecimento para entender essa relação”, disse, celebrando que, pelo menos, 80% da população brasileira já tinha ouvido falar em recifes de corais. Apesar de ocuparem menos de 0,1% do fundo do oceano, os recifes de corais oferecem abrigo e alimentos para cerca de 25% das espécies marinhas, além de renda para comunidades costeiras. “Eles são o ecossistema mais biodiverso do mundo, um lugar lindo e inspirador que funciona como megacidades submarinas, berçário, áreas de desova, fazem a ciclagem de água e nutrientes, absorvem CO2 e são matéria prima pra medicamentos e cosméticos”, explicou empolgada a bióloga.
À lista de serviços ecossistêmicos prestados pelos corais, adicionou mais um essencial em tempos de aquecimento global e aumento o nível do mar: eles são uma barreira natural para a proteção costeira, podendo reduzir em até 96% a energia das ondas nas costas. Colocar um “preço” nos serviços que os corais ofertam sem cobrar a humanidade nada por isso é, segundo a cientista, uma forma de mostrar que pode ser mais vantajoso economicamente proteger o recife de coral, investindo em conservação e uso sustentável, do que deixar aquele espaço vulnerável a ação de especulação imobiliária, poluição urbana, turismo de massa entre outras ameaças associadas à falta de uma boa gestão pública.
Quanto valem os corais no Brasil?
De acordo com a pesquisa “Oceano sem mistérios – Desvendando os recifes de corais”, esses ecossistemas geram até R$ 167 bilhões ao Brasil em serviços de proteção costeira e turismo. A maior parte dessa contribuição vem de danos evitados pelo avanço do mar sobre o continente. Os recifes areníticos e rochosos geram o total de R$ 160 bilhões em proteção da costa. Para cada quilômetro quadrado de recifes, R$ 941 milhões são economizados em danos evitados a comunidades costeiras associados a erosões causadas pelas ondas, tempestades e ressacas, que podem gerar grandes perdas materiais e imateriais.
“Mapeamos as áreas vulneráveis mais ou menos até seis metros do nível do mar para dentro da costa e fizemos um levantamento de danos evitados. Hoje o recife de coral tá lá exercendo seu papel de proteção costeira e ele evita um custo que a gente teria caso eles não existissem. O quanto de fato eles protegem? Para isso, a gente considerou área residencial, industrial, de comércios e infraestrutura pública”, explicou Amanda Albana, oceanógrafa e sócia da Bloom Ocean, consultoria especializada em soluções e iniciativas ligadas à Conservação do Oceano, Economia Azul e Mudanças Climáticas, que conduziu a pesquisa.
Para a análise, a pesquisa selecionou quatro municípios que representam cidades com densidades populacionais típicas do litoral do nordeste brasileiro e que possuem uma área significativa de recifes de corais do tipo “franja” próximos à costa: Recife e Ipojuca, em Pernambuco, e Maragogi e São Miguel dos Milagres, em Alagoas. A área analisada somou aproximadamente 170 quilômetros quadrados de costa entre o sul da Bahia e o Maranhão. Após a apuração dos danos evitados nos quatro municípios, o estudo foi extrapolado para as demais cidades que contam com recifes de corais, considerando o tamanho, a infraestrutura urbana e a população de cada local.
Multifunções ameaçadas
À medida que os corais desaparecem ou se degradam, maior é a vulnerabilidade das regiões costeiras, principalmente em tempos de aquecimento global e eventos climáticos extremos. E o prognóstico preocupa: considerando a meta principal do Acordo de Paris, de limitar a alta do termômetro a 1.5C° até o final do século com relação a era pré-industrial, a Terra poderá perder entre 70-90% dos recifes de coral do mundo até 2050. Se a temperatura subir 2C°, o ecossistema pode desaparecer por inteiro. Desde a década de 1950, a cobertura de corais da Terra e sua capacidade de fornecer serviços ecossistêmicos já caiu pela metade.
Os pescadores de Recife, capital brasileira mais ameaçada pelo avanço do nível do mar e 16ª cidade do mundo sob maior risco, enfrentam essa dura realidade. Na cidade que recebeu esse nome pela muralha natural de rochedos que corre paralela à costa, os corais são praticamente esqueletos do que antes era um ecossistema abundante de vida. “Eu vivo da pesca, assim como meu pai. Mas caiu muito a pescaria. A Natureza está fragilizada”, diz Flávio, mais conhecido como “Ariocó”, pescador que nasceu e se criou na comunidade de Brasília Teimosa, ocupação que aconteceu no mesmo período em que o ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek trabalhava na criação de Brasília.
Na ocasião, Recife passava por profundas modificações urbanas, com o avanço da especulação imobiliária afetando áreas outrora ocupadas pelas comunidades pesqueiras. Brasília Teimosa, virou, como o nome sugere, um espaço de resistência das colônias de pescadores. Em suas saídas para o alto-mar, ele costuma pegar sardinha, pescada, serra e boca mole. Também se depara com a poluição, que não respeita fronteiras.
“Encontramos muito plástico no mar, poluindo e matando animais”, lamenta. A poluição não se restringe aos plásticos. A falta de coleta e tratamento adequado de esgoto é um dos gargalos do saneamento que leva Recife a figurar entre as 20 cidades brasileiras pior colocadas no Ranking do Saneamento 2022 do Instituto Trata Brasil, que avalia a cobertura sanitária dos 100 maiores municípios do País. Tanto a erosão causada pelo avanço de áreas construídas sobre o litoral quanto a poluição prejudicam os corais da região.
Beatrice Padovani, professora do departamento de oceanografia da UFPE e uma das maiores referências em corais no Brasil, classifica a crise dos corais como uma crise humanitária, dado os prejuízos que acarretam nos países tropicais em desenvolvimento. “Se você começa a ter degradação e perda desses recifes, e a perda de bens e serviços associados a eles, essas populações se tornarão refugiadas climáticas”, alerta. “A crise climática é uma crise do território das pessoas”, diz destacando que as micronações insulares sob risco no mundo têm uma íntima relação com os recifes de corais. O caminho para reverter isso, segundo ela, é fortalecer a saúde ambiental. “A resiliência começa pelo cuidado”, afirmou, elogiando o trabalho de valoração.
Muito além do que os olhos podem ver
Lar dos únicos ambientes de recifes de corais do Atlântico Sul, a região nordeste do Brasil costuma atrair turistas que desfrutam das águas mornas e tranquilas e que se concentram em piscinas naturais nas praias ou buscam explorar o universo submarino. Sem falar dos quitutes à mesa, uma profusão de opções de frutos do mar frescos e tenros. Essas características cênicas e gastronômicas movimentam recursos para a economia local e comunidades de pescadores. A pesquisa da Fundação Boticário fala em R$ 7 bilhões por ano em receitas, o que corresponde a cerca de 5% do PIB do turismo no Brasil. Cada quilômetro quadrado de recife de coral saudável é capaz de gerar R$ 62,7 milhões ao ano em receitas ligadas ao turismo de sol e praia, mergulho e snorkeling.
O cálculo leva em conta informações de mercado e análise das atividades de turismo nos cinco principais destinos turísticos ligados a recifes de corais no país: Fernando de Noronha e Ipojuca (Porto de Galinhas), em Pernambuco; Maragogi e São Miguel dos Milagres, em Alagoas; e Caravelas (Abrolhos), na Bahia. Os dados apurados também foram extrapolados nos demais municípios da região costeira do nordeste. No mundo todo, o turismo relacionado a esses ecossistemas movimenta cerca de US$ 36 bilhões por ano, o que representa quase 10% de toda a receita do turismo em áreas costeiras no mundo.
Buscando evidenciar essa relação e estimular os visitantes a se colocarem no lugar de “cientistas” do mar, a Fundação Boticário e a startup Biofábrica de Corais lançaram no ano passado um programa de turismo regenerativo voltado para corais, na badalada Porto de Galinhas, Pernambuco. É uma oportunidade dos turistas conhecerem de perto o trabalho inovador de restauração de corais da Biofábrica, que inclui uma saída a campo (ou melhor, ao mar) para ajudar no preparo de fragmentos de corais que desprenderam do recife e na montagem dos berçários que serão monitorados em laboratório até se fortificarem e, no futuro, transplantados para o ambiente natural.
De setembro de 2022 a julho de 2023, o Programa Turismo Regenerativo conseguiu a participação de mais de 150 pessoas, entre turistas e agentes turísticos, o que resultou no cultivo de 26 mesas de coral, ou 1.590 “nubbins” de coral foram cultivados pelo público participante destas experiências. A expectativa é que, com o crescimento da startup e dos participantes das experiências, o número de corais enfermos sendo resgatados, cultivados e recuperados seja muito mais significativo. Engana-se quem pensa que a ação é só para “turista ver”.
O projeto apresenta resultados positivos, com crescimento de 40% em 90 dias da espécie Millepora alcicornis (vulnerável na lista da IUCN) e crescimento de 200% em 150 dias da espécie endêmica Mussismilia harttii (ameaçada de extinção, segundo a IUCN), resgatando mais de 4.000 nubbins de corais e devolvendo mais de 700 mudas de corais a ambientes degradados que estão sendo recuperados. Por trás da empreitada, há um time dedicado liderado pelo engenheiro de pesca e fundador da Biofábrica de Corais, Rudã Fernandes. Uma das frentes de ação que mais têm mobilizado a ação da startup é o desenvolvimento de produtos e serviços destinados ao manejo de colônias de corais branqueados, incluído um dispositivo de alimentação que possa ajudar os corais.
Os sistemas recifais sofrem com a poluição, o aquecimento e a acidificação das águas provocada pelo acúmulo de CO2 no mar. Quando afetados, esse seres que nos hipnotizam com sua vida colorida e abundante sofrem um fenômeno chamado “branqueamento”: eles expulsam as zooxantelas — algas que habitam em simbiose os seus pólipos – e, com isso, acabam perdendo o aspecto vibrante e sucumbem por falta de alimento, já que a fotossíntese realizada pelas algas é sua fonte de energia. O que sobra é um esqueleto fraco que deixa de suportar toda a rica biodiversidade de antes. Por vezes, e com ajuda da restauração, eles podem se recuperar.
“Quando a gente olha o manejo dos recifes de corais e o que é feito na produção clássica de animais, há um gap muito grande. Técnicas que vinham sendo feitas em 2015 na zootecnia só agora sendo feita com alimentação de corais. É uma área que tem muita tecnologia para ser absorvida. Sendo que os corais são um animal”, afirma Rudã. Há esforços também para realocar recifes criados pela biofábrica antecipadamente à ocorrência de um fenômeno de branqueamento, com treinamento de voluntários.
Outro ponto de atenção é a interação com a comunidade, com esforço de que as pessoas que atuam na região adotem boas práticas. A bancada recifal tem aproximadamente 80 jangadeiros que costumam levar as pessoas para ver corais de perto em Porto de Galinhas, mas sem o cuidado necessário, a experiência pode se transformar num pisoteamento em massa desse ecossistema, como infelizmente é possível observar com frequência.
“Estamos entrando numa nova era de relação com a natureza. O recife de coral não pode mais ser concebido como algo que pode se manter sozinho. Ele vai precisar ter alguém salvaguardando ele, seja uma prefeitura, seja uma companhia de portos o outros agentes” defende o idealizador da startup, que busca mais apoio para as ações de restauração. A Biofábrica de Corais também oferece um sistema de adoção de corais aberto a qualquer pessoa interessada. Planos mais ambiciosos e de longo prazo incluem a geração de créditos de carbono a partir dos corais.
“Temos acreditado bastante na ciência e na tecnologia para encontrar soluções. Quando a gente consegue reunir recursos suficientes, com tecnologia, consciência e criatividade, a gente consegue soluções incríveis. E muitas delas ainda virão a partir de um movimento de co-construção, juntando pesquisadores, com a comunidade local, com tomador de decisão, para construir algo em conjunto que seja efetivo”, crava a bióloga Janaína. É hora de repensar nossa relação com o oceano.
Texto: Vanessa Oliveira, do Um Só Planeta