sexta-feira,22 novembro, 2024

Megacidades submarinas, escudos litorâneos e atrativo turístico: pesquisa inédita estima valor dos corais no Brasil, ecossistemas que estão entre a vida e a morte

Os recifes de corais oferecem abrigo e alimentos para cerca de 25% das espécies marinhas, protegem cidades e geram renda para comunidades costeiras, mas sofrem com aquecimento global, poluição, expansão imobiliária e turismo predatório

“Queria que cada um aqui pensasse na sua relação com o oceano. Como você acha que suas ações impactam o mar? Já ouviu falar de recifes de corais?”. Janaína Bumbeer, doutora em Ecologia e Ciências Marinhas e integrante da Liga das Mulheres pelo Oceano, dirigia as perguntas para uma plateia formada por um grupo seleto de jornalistas, influenciadores e cientistas reunidos em uma sala do CEPENE, um dos centros de pesquisa do ICMBio dedicados à conservação marinha, em Tamandaré, Pernambuco.

Na tarde daquela terça-feira, 24 de outubro, a gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário iria apresentar em primeira-mão um estudo de valoração dos serviços prestados pelos corais na costa nordestina brasileira. A pesquisa derivou de uma inquietação. As perguntas de abertura já haviam sido feitas em um questionário de percepção pública realizado pela Fundação há alguns meses. Dos entrevistados, 40% disseram que nada do que fazem impacta o oceano e 30% afirmaram que nada do que ocorre no oceano influencia sua vida.

“Foi impactante para a gente ouvir isso. Vimos que as pessoas precisam ter acesso a um maior conhecimento para entender essa relação”, disse, celebrando que, pelo menos, 80% da população brasileira já tinha ouvido falar em recifes de corais. Apesar de ocuparem menos de 0,1% do fundo do oceano, os recifes de corais oferecem abrigo e alimentos para cerca de 25% das espécies marinhas, além de renda para comunidades costeiras. “Eles são o ecossistema mais biodiverso do mundo, um lugar lindo e inspirador que funciona como megacidades submarinas, berçário, áreas de desova, fazem a ciclagem de água e nutrientes, absorvem CO2 e são matéria prima pra medicamentos e cosméticos”, explicou empolgada a bióloga.

Janaína Bumbeer, doutora em Ecologia e Ciências Marinhas, integrante da Liga das Mulheres pelo Oceano e gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário
Janaína Bumbeer, doutora em Ecologia e Ciências Marinhas, integrante da Liga das Mulheres pelo Oceano e gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário

À lista de serviços ecossistêmicos prestados pelos corais, adicionou mais um essencial em tempos de aquecimento global e aumento o nível do mar: eles são uma barreira natural para a proteção costeira, podendo reduzir em até 96% a energia das ondas nas costas. Colocar um “preço” nos serviços que os corais ofertam sem cobrar a humanidade nada por isso é, segundo a cientista, uma forma de mostrar que pode ser mais vantajoso economicamente proteger o recife de coral, investindo em conservação e uso sustentável, do que deixar aquele espaço vulnerável a ação de especulação imobiliária, poluição urbana, turismo de massa entre outras ameaças associadas à falta de uma boa gestão pública.

Quanto valem os corais no Brasil?

Recifes de corais em Porto de Galinhas; ao fundo, construções avançam sobre a praia. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta
Recifes de corais em Porto de Galinhas; ao fundo, construções avançam sobre a praia. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta

De acordo com a pesquisa “Oceano sem mistérios – Desvendando os recifes de corais”, esses ecossistemas geram até R$ 167 bilhões ao Brasil em serviços de proteção costeira e turismo. A maior parte dessa contribuição vem de danos evitados pelo avanço do mar sobre o continente. Os recifes areníticos e rochosos geram o total de R$ 160 bilhões em proteção da costa. Para cada quilômetro quadrado de recifes, R$ 941 milhões são economizados em danos evitados a comunidades costeiras associados a erosões causadas pelas ondas, tempestades e ressacas, que podem gerar grandes perdas materiais e imateriais.

“Mapeamos as áreas vulneráveis mais ou menos até seis metros do nível do mar para dentro da costa e fizemos um levantamento de danos evitados. Hoje o recife de coral tá lá exercendo seu papel de proteção costeira e ele evita um custo que a gente teria caso eles não existissem. O quanto de fato eles protegem? Para isso, a gente considerou área residencial, industrial, de comércios e infraestrutura pública”, explicou Amanda Albana, oceanógrafa e sócia da Bloom Ocean, consultoria especializada em soluções e iniciativas ligadas à Conservação do Oceano, Economia Azul e Mudanças Climáticas, que conduziu a pesquisa.

Para a análise, a pesquisa selecionou quatro municípios que representam cidades com densidades populacionais típicas do litoral do nordeste brasileiro e que possuem uma área significativa de recifes de corais do tipo “franja” próximos à costa: Recife e Ipojuca, em Pernambuco, e Maragogi e São Miguel dos Milagres, em Alagoas. A área analisada somou aproximadamente 170 quilômetros quadrados de costa entre o sul da Bahia e o Maranhão. Após a apuração dos danos evitados nos quatro municípios, o estudo foi extrapolado para as demais cidades que contam com recifes de corais, considerando o tamanho, a infraestrutura urbana e a população de cada local.

Corais e peixes. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário
Corais e peixes. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário

Multifunções ameaçadas

À medida que os corais desaparecem ou se degradam, maior é a vulnerabilidade das regiões costeiras, principalmente em tempos de aquecimento global e eventos climáticos extremos. E o prognóstico preocupa: considerando a meta principal do Acordo de Paris, de limitar a alta do termômetro a 1.5C° até o final do século com relação a era pré-industrial, a Terra poderá perder entre 70-90% dos recifes de coral do mundo até 2050. Se a temperatura subir 2C°, o ecossistema pode desaparecer por inteiro. Desde a década de 1950, a cobertura de corais da Terra e sua capacidade de fornecer serviços ecossistêmicos já caiu pela metade.

Os pescadores de Recife, capital brasileira mais ameaçada pelo avanço do nível do mar e 16ª cidade do mundo sob maior risco, enfrentam essa dura realidade. Na cidade que recebeu esse nome pela muralha natural de rochedos que corre paralela à costa, os corais são praticamente esqueletos do que antes era um ecossistema abundante de vida. “Eu vivo da pesca, assim como meu pai. Mas caiu muito a pescaria. A Natureza está fragilizada”, diz Flávio, mais conhecido como “Ariocó”, pescador que nasceu e se criou na comunidade de Brasília Teimosa, ocupação que aconteceu no mesmo período em que o ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek trabalhava na criação de Brasília.

Pecador Flávio, mais conhecido como "Aricó" — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário
Pecador Flávio, mais conhecido como “Aricó” — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário

Na ocasião, Recife passava por profundas modificações urbanas, com o avanço da especulação imobiliária afetando áreas outrora ocupadas pelas comunidades pesqueiras. Brasília Teimosa, virou, como o nome sugere, um espaço de resistência das colônias de pescadores. Em suas saídas para o alto-mar, ele costuma pegar sardinha, pescada, serra e boca mole. Também se depara com a poluição, que não respeita fronteiras.

“Encontramos muito plástico no mar, poluindo e matando animais”, lamenta. A poluição não se restringe aos plásticos. A falta de coleta e tratamento adequado de esgoto é um dos gargalos do saneamento que leva Recife a figurar entre as 20 cidades brasileiras pior colocadas no Ranking do Saneamento 2022 do Instituto Trata Brasil, que avalia a cobertura sanitária dos 100 maiores municípios do País. Tanto a erosão causada pelo avanço de áreas construídas sobre o litoral quanto a poluição prejudicam os corais da região.

Pescadores da comunidade Brasília Teimosa. — Foto: Filipe Cadena/Fundação Grupo Boticário
Pescadores da comunidade Brasília Teimosa. — Foto: Filipe Cadena/Fundação Grupo Boticário

Beatrice Padovani, professora do departamento de oceanografia da UFPE e uma das maiores referências em corais no Brasil, classifica a crise dos corais como uma crise humanitária, dado os prejuízos que acarretam nos países tropicais em desenvolvimento. “Se você começa a ter degradação e perda desses recifes, e a perda de bens e serviços associados a eles, essas populações se tornarão refugiadas climáticas”, alerta. “A crise climática é uma crise do território das pessoas”, diz destacando que as micronações insulares sob risco no mundo têm uma íntima relação com os recifes de corais. O caminho para reverter isso, segundo ela, é fortalecer a saúde ambiental. “A resiliência começa pelo cuidado”, afirmou, elogiando o trabalho de valoração.

Beatrice Padovani, professora do departamento de oceanografia da UFPE. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário
Beatrice Padovani, professora do departamento de oceanografia da UFPE. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário

Muito além do que os olhos podem ver

Lar dos únicos ambientes de recifes de corais do Atlântico Sul, a região nordeste do Brasil costuma atrair turistas que desfrutam das águas mornas e tranquilas e que se concentram em piscinas naturais nas praias ou buscam explorar o universo submarino. Sem falar dos quitutes à mesa, uma profusão de opções de frutos do mar frescos e tenros. Essas características cênicas e gastronômicas movimentam recursos para a economia local e comunidades de pescadores. A pesquisa da Fundação Boticário fala em R$ 7 bilhões por ano em receitas, o que corresponde a cerca de 5% do PIB do turismo no Brasil. Cada quilômetro quadrado de recife de coral saudável é capaz de gerar R$ 62,7 milhões ao ano em receitas ligadas ao turismo de sol e praia, mergulho e snorkeling.

Bióloga Janaína mergulhando. — Foto: Filipe Cadena/Fundação Grupo Boticário
Bióloga Janaína mergulhando. — Foto: Filipe Cadena/Fundação Grupo Boticário

O cálculo leva em conta informações de mercado e análise das atividades de turismo nos cinco principais destinos turísticos ligados a recifes de corais no país: Fernando de Noronha e Ipojuca (Porto de Galinhas), em Pernambuco; Maragogi e São Miguel dos Milagres, em Alagoas; e Caravelas (Abrolhos), na Bahia. Os dados apurados também foram extrapolados nos demais municípios da região costeira do nordeste. No mundo todo, o turismo relacionado a esses ecossistemas movimenta cerca de US$ 36 bilhões por ano, o que representa quase 10% de toda a receita do turismo em áreas costeiras no mundo.

Buscando evidenciar essa relação e estimular os visitantes a se colocarem no lugar de “cientistas” do mar, a Fundação Boticário e a startup Biofábrica de Corais lançaram no ano passado um programa de turismo regenerativo voltado para corais, na badalada Porto de Galinhas, Pernambuco. É uma oportunidade dos turistas conhecerem de perto o trabalho inovador de restauração de corais da Biofábrica, que inclui uma saída a campo (ou melhor, ao mar) para ajudar no preparo de fragmentos de corais que desprenderam do recife e na montagem dos berçários que serão monitorados em laboratório até se fortificarem e, no futuro, transplantados para o ambiente natural.

Experiência de turismo regenerativo da Biofábrica de Corais. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário
Experiência de turismo regenerativo da Biofábrica de Corais. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário

De setembro de 2022 a julho de 2023, o Programa Turismo Regenerativo conseguiu a participação de mais de 150 pessoas, entre turistas e agentes turísticos, o que resultou no cultivo de 26 mesas de coral, ou 1.590 “nubbins” de coral foram cultivados pelo público participante destas experiências. A expectativa é que, com o crescimento da startup e dos participantes das experiências, o número de corais enfermos sendo resgatados, cultivados e recuperados seja muito mais significativo. Engana-se quem pensa que a ação é só para “turista ver”.

O projeto apresenta resultados positivos, com crescimento de 40% em 90 dias da espécie Millepora alcicornis (vulnerável na lista da IUCN) e crescimento de 200% em 150 dias da espécie endêmica Mussismilia harttii (ameaçada de extinção, segundo a IUCN), resgatando mais de 4.000 nubbins de corais e devolvendo mais de 700 mudas de corais a ambientes degradados que estão sendo recuperados. Por trás da empreitada, há um time dedicado liderado pelo engenheiro de pesca e fundador da Biofábrica de Corais, Rudã Fernandes. Uma das frentes de ação que mais têm mobilizado a ação da startup é o desenvolvimento de produtos e serviços destinados ao manejo de colônias de corais branqueados, incluído um dispositivo de alimentação que possa ajudar os corais.

Camas de corais instaladas no fundo do mar pela Biofábrica de Corais. — Foto: Filipe Cadena/Fundação Grupo Boticário
Camas de corais instaladas no fundo do mar pela Biofábrica de Corais. — Foto: Filipe Cadena/Fundação Grupo Boticário

Os sistemas recifais sofrem com a poluição, o aquecimento e a acidificação das águas provocada pelo acúmulo de CO2 no mar. Quando afetados, esse seres que nos hipnotizam com sua vida colorida e abundante sofrem um fenômeno chamado “branqueamento”: eles expulsam as zooxantelas — algas que habitam em simbiose os seus pólipos – e, com isso, acabam perdendo o aspecto vibrante e sucumbem por falta de alimento, já que a fotossíntese realizada pelas algas é sua fonte de energia. O que sobra é um esqueleto fraco que deixa de suportar toda a rica biodiversidade de antes. Por vezes, e com ajuda da restauração, eles podem se recuperar.

Fenômeno de branqueamento de corais, antes e depois. — Foto: The Ocean Agency
Fenômeno de branqueamento de corais, antes e depois. — Foto: The Ocean Agency

“Quando a gente olha o manejo dos recifes de corais e o que é feito na produção clássica de animais, há um gap muito grande. Técnicas que vinham sendo feitas em 2015 na zootecnia só agora sendo feita com alimentação de corais. É uma área que tem muita tecnologia para ser absorvida. Sendo que os corais são um animal”, afirma Rudã. Há esforços também para realocar recifes criados pela biofábrica antecipadamente à ocorrência de um fenômeno de branqueamento, com treinamento de voluntários.

Outro ponto de atenção é a interação com a comunidade, com esforço de que as pessoas que atuam na região adotem boas práticas. A bancada recifal tem aproximadamente 80 jangadeiros que costumam levar as pessoas para ver corais de perto em Porto de Galinhas, mas sem o cuidado necessário, a experiência pode se transformar num pisoteamento em massa desse ecossistema, como infelizmente é possível observar com frequência.

Bioturismo: mergulho com snorkel para ver de perto o trabalho de restauração. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário
Bioturismo: mergulho com snorkel para ver de perto o trabalho de restauração. — Foto: Filipe Cadena/ Fundação Grupo Boticário

“Estamos entrando numa nova era de relação com a natureza. O recife de coral não pode mais ser concebido como algo que pode se manter sozinho. Ele vai precisar ter alguém salvaguardando ele, seja uma prefeitura, seja uma companhia de portos o outros agentes” defende o idealizador da startup, que busca mais apoio para as ações de restauração. A Biofábrica de Corais também oferece um sistema de adoção de corais aberto a qualquer pessoa interessada. Planos mais ambiciosos e de longo prazo incluem a geração de créditos de carbono a partir dos corais.

“Temos acreditado bastante na ciência e na tecnologia para encontrar soluções. Quando a gente consegue reunir recursos suficientes, com tecnologia, consciência e criatividade, a gente consegue soluções incríveis. E muitas delas ainda virão a partir de um movimento de co-construção, juntando pesquisadores, com a comunidade local, com tomador de decisão, para construir algo em conjunto que seja efetivo”, crava a bióloga Janaína. É hora de repensar nossa relação com o oceano.

Texto:  Vanessa Oliveira, do Um Só Planeta

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