Há séculos incorporamos em nosso dia a dia o dito popular, cuja autoria é atribuída ao papa Bonifácio VIII, “quem cala consente”, ou em sua versão original, quid tacit venire.
A máxima foi inclusive acolhida pelo direito posto, mais especificamente na regulação de vários negócios jurídicos, como se observa em alguns artigos do nosso Código Civil. Ou seja, o silêncio, em algumas circunstâncias, pode ser entendido como consentimento.
Já é tempo, entretanto, de se ressignificar, ou pelo menos marcar os limites da aplicação deste dito popular, que acabou adentrando na esfera jurídica.
O primeiro deles, é exatamente o fato de que o silêncio, como manifestação de vontade, aplica-se apenas em situações muito específicas, para facilitar a celebração de negócios jurídicos entre partes capazes.
A transposição deste conceito para casos envolvendo a imagem, o corpo, a honra, o nome, a vida, dentre outros direitos fundamentais, não foi e não deve ser acolhida. O entendimento consolidado nos tribunais é de que os negócios envolvendo essa categoria de direitos devem ser interpretados restritivamente, vale dizer, deve-se considerar que a intenção do titular ao se despojar de parte deles (e somente de parte) é sempre a mais restrita, não permitindo interpretações expansionistas ou análogas.
Recentemente, adicionamos ao nosso ordenamento jurídico a Lei Geral de Proteção de Dados, lei específica que já é conhecida pela sigla LGPD, para regular o tratamento de dados pessoais, entendidos como aqueles “relacionados a uma pessoa identificada ou identificável”. O conceito de dados pessoais é, portanto, bastante amplo, abrangendo nome, imagem, opções religiosa e política, apenas para exemplificar. Esse direito à proteção de dados pessoais também foi recentemente incluído em nossa Constituição Federal no rol de direitos fundamentais (Emenda Constitucional 115/2022).A LGPD tem como fundamento principal a autodeterminação informativa do indivíduo, o que de forma simples se traduz no controle que o indivíduo deve ter sobre os seus dados pessoais. Para tanto, a lei determina, de forma taxativa, as hipóteses (“bases legais”) em que o tratamento (conceito muito amplo, que inclui desde o armazenamento até qualquer tipo de uso) destes dados pode ser realizado por terceiros.
Dentre essas bases legais, está incluído o consentimento que, segundo a LGPD, deve ser uma “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (Art. 7º, XII).
A LGPD também determina que:
- o consentimento deverá ser fornecido por escrito ou por outro meio que demonstre a manifestação de vontade do titular e que sendo fornecido por escrito, esse deverá constar de cláusula destacada das demais cláusulas contratuais (§ 1º);
- (ii) cabe ao terceiro que tratar os dados pessoais o ônus da prova de que o consentimento foi obtido em conformidade com o disposto nesta Lei (§ 2º);
- (iii) é vedado o tratamento de dados pessoais mediante vício de consentimento (§ 3º);
- (iv) o consentimento deverá se referir a finalidades determinadas, e as autorizações genéricas serão nulas (§ 4º); e(v) o consentimento pode ser revogado a qualquer momento pelo titular (indivíduo que deu o consentimento) (§ 5º).A proximidade com o Dia Internacional da Mulher me fez refletir sobre como o Judiciário vem interpretando e aplicando de forma equivocada e, em alguns casos, machista e misógina, o conceito de consentimento.
São inúmeras as sentenças, os acórdãos e até as falas em sessões de julgamento de casos de estupro de mulheres, que afirmam que o crime não resta configurado por ter a mulher, de alguma forma consentido. Esse “de alguma forma consentido”, inclui: “ela usava roupas sensuais”; “ela estava alcoolizada”; “ela concordou em iniciar o ato sexual”; “ela não disse ‘não’”, dentre outras ilações.
Essas manifestações, entretanto, não deveriam ser entendidas como consentimento, pois usar roupas sensuais é um direito de qualquer indivíduo; estar alcoolizada é um estado que, por si só, vicia o consentimento; dar início ao ato sexual não anula o direito de não o querer mais e, por fim, não dizer “não” não quer dizer “sim”.É curioso observar que os tribunais superiores, ao julgarem casos envolvendo as regras do Código Civil que tratam o silêncio como manifestação de vontade nos negócios jurídicos, já reconheceram que “a regra quem cala consente tem aplicação restritíssima” (REsp 555.803/MS) e que “o silêncio opera como manifestação de vontade quando a parte tiver o dever de falar, e não o fizer, não aproveitando no direito das obrigações o adágio popular “quem cala consente” (TJSP-APL 0122451-38.2011.8.26.0100).Se para os negócios jurídicos, cujo objeto sequer configuram direitos fundamentais, o adágio popular já é aplicado de modo bastante restritivo, tanto mais deveria sê-lo nos casos envolvendo o nosso corpo. Ademais, com a publicação da LGPD, em 2018, os contornos do consentimento foram finalmente definidos e regulados de modo inequívoco, assim, nada mais justo que sejam observados quando do julgamento de crimes contra as mulheres.
Por fim, de muita importância, é a recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), com voto exemplar do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch no caso Brisa vs. Bolívia. Esta corte, da qual o Brasil faz parte, determinou que a Bolívia altere a sua legislação de modo a prever que o consentimento – e não parâmetros como violência e resistência – seja o elemento determinante para a análise de casos de violência sexual. Sobre este julgamento, vale ler reportagem publicada neste JOTA com informações detalhadas sobre a decisão.