Pedimos a um comediante profissional que contasse no palco algumas piadas escritas por inteligência artificial. O que aconteceu revela muito sobre o quanto as máquinas entendem o senso de humor humano.
Karen Hobbs estava mais nervosa naquele show do que de costume.
A conhecida comediante britânica está acostumada com o cenário de stand-up do Reino Unido – que pode ser cruel, eclético e imprevisível. E o público é famoso por só rir do que realmente acha graça.
Hobbs já enfrentou algumas das plateias britânicas mais implacáveis, das pequenas salas dos bares da zona rural até os principais teatros de Londres. Ela chegou a ter sucesso no temido circuito de competições, com seu público impiedoso e seus acirrados concursos de popularidade, para escolher as piadas mais engraçadas.
Mas, naquela noite de quinta-feira no final de junho, no salão do Covent Garden Social Club, no centro de Londres, Hobbs iria tentar algo completamente novo.
Ela iria subir ao palco sem o seu material habitual, mas com um roteiro de stand-up escrito para ela pela plataforma de inteligência artificial ChatGPT. E o mais assustador: ela se apresentaria depois de três outros humoristas, que contaram com seres humanos reais na sua produção.
No espaço de dois anos, o ChatGPT, desenvolvido pela empresa OpenAI, deixou de ser uma curiosidade em um nicho tecnológico para ser a primeira ferramenta a realmente levar a IA para o público em geral.
Desde que a IA se tornou facilmente acessível, ela já aterrorizou professores e universidades, tirou o emprego de redatores freelancers e inundou as redes sociais com conteúdo de fácil produção e, às vezes, até perturbador.
Especialistas alertam sobre um possível apocalipse causado pela IA, à medida que as máquinas se aprimoram ao ponto de realmente superar o desempenho dos seres humanos, com uma tecnologia hipotética conhecida como “inteligência artificial geral” (IAG). Já outros duvidam que a IA chegue a este ponto algum dia.
Mas, quando o assunto é a arte, o debate é se a IA generativa, por natureza, conseguirá ser realmente criativa.
Os grandes modelos de linguagem (LLMs, na sigla em inglês), como o ChatGPT, trabalham processando bilhões de linhas de texto retiradas da internet e de outras fontes, aprendendo os padrões e as relações entre as palavras e as sentenças. Com estes dados, a IA gera respostas que, estatisticamente, são as mais prováveis para perguntas específicas.
Isso significa que as ferramentas de IA só podem reproduzir informações que já existem de alguma forma, embora possam resultar em combinações de ideias inéditas.
Mas isso conta como criatividade? Bem, esta é uma questão filosófica e, no momento, não há uma resposta satisfatória.
Um robô pode ser engraçado?
Para entender se as ferramentas de IA podem realmente transmitir humor, a professora de comunicação Alison Powell, da London School of Economics, defende que precisamos primeiro nos fazer uma pergunta: “Como funcionam as piadas?”
Powell estuda a influência da IA sobre os meios de comunicação. Ela adquiriu experiência no humor de improviso – um cenário, sem dúvida, ainda mais feroz do que o mundo do stand-up.
No improviso, não há lugar para planejamento. O humorista conta apenas com seu instinto para reagir às expectativas da plateia.
É fácil imaginar que os comediantes não precisam se preocupar muito com a IA, já que sua produção é fundamentalmente derivada de materiais já existentes. Mas existem outros riscos importantes para as pessoas criativas.
“Os humoristas precisam se preocupar com o roubo e reprodução de dados, pois muitas ferramentas de IA generativa, especialmente o ChatGPT, são treinadas com base em conteúdo da internet”, explica Powell. “Ou seja, a criatividade e os textos das pessoas são retirados da internet sem sua permissão.”
Mas o roubo de piadas, isoladamente, não é a única preocupação. À medida que a IA progride, também aumenta sua capacidade de concorrer com os humoristas humanos.
“Esta seria uma preocupação para os jovens humoristas, pois, se eles criarem piadas melhores, os modelos também melhoram”, ela conta.
A OpenAI já enfrentou controvérsias pelo suposto uso de conteúdo com direitos autorais, retirado de websites pagos, para treinar os algoritmos do ChatGPT.
Em abril, oito jornais de circulação nacional dos Estados Unidos se reuniram para processar a empresa. Liderados pelo The New York Times, eles acusaram a OpenAI de “se apropriar de milhões” de dólares em propriedade intelectual.
A OpenAI não respondeu ao pedido de comentários enviado pela BBC, mas defende que o processamento de material sujeito a direitos autorais constitui uso razoável.
“Uma forma em que a IA consegue contar piadas é fazer o mesmo que qualquer criança com cinco anos de idade: repetir uma piada bem aceita que ela tenha ouvido ou tentar criar uma variação óbvia”, explica o professor de ciências da web Les Carr, da Universidade de Southampton, no Reino Unido. Carr também é comediante start-up nas horas vagas.
“Por isso, os humoristas – que passaram os últimos cinco anos colocando cada vez mais conteúdo no TikTok, Instagram e YouTube para ganhar seguidores – devem se preocupar com a OpenAI, Google e Facebook roubando seu trabalho, da mesma forma que fazem escritores e artistas.”
Para Carr, uma das principais preocupações é o fato de que a IA se beneficia da forma em que costumamos usar a internet.
“As pessoas adoram compartilhar piadas na internet ou nas redes sociais”, explica ele. “Por isso, é muito difícil dizer de onde veio a piada de um chatbot. Será que ele realmente a criou ou simplesmente repetiu do [fórum de humorismo] /r/Jokes (piadas) na plataforma Reddit?”
Piadas do futuro
Quando Hobbs pediu à inteligência artificial que gerasse o roteiro do seu show, ela enfrentou um estranho problema.
O ChatGPT, por padrão, escreveu o texto como se ela fosse um comediante homem, brincando com a sua impaciência com a namorada, aparentemente obcecada por compras. E, quando ela pediu à IA que reescrevesse as piadas em voz feminina, ela simplesmente colocou a namorada em primeira pessoa.
As anedotas produzidas para Hobbs pelo ChatGPT envolviam estereótipos descuidados e grosseiros sobre mulheres da geração millennial.
“Minha vida social está florescendo. Isso se ‘florescer’, para você, significar que meu melhor amigo é uma planta em um vaso chamada Wilson”, escreveu a IA.
A piada é um clichê curto, com a IA combinando a vaga noção de que mulheres jovens gostam de plantas em vasos com uma estranha referência ao filme Náufrago (2000), com Tom Hanks e sua bola de voleibol chamada “Wilson”.
Não surpreende que esses modelos tenham dificuldades para fornecer construções e conclusões satisfatórias para as piadas, segundo o estudante de mestrado Michael Ryan, especialista em IA da Universidade de Stanford, na Califórnia (Estados Unidos). Ele pesquisa o impacto da inteligência artificial sobre o humor.
“Um texto de stand-up bem escrito pode conduzir o público ao longo de uma história engraçada, até chegar a uma conclusão hilariante”, explica ele. “Todo o tempo, o humorista sabia exatamente para onde estava indo com a piada e levou o público até lá.”
Mas o ChatGPT e as ferramentas similares não detêm a capacidade de processar este tipo de informação. Ao contrário de um humorista humano, a inteligência artificial não se adapta em tempo real – pelo menos, não as ferramentas de IA atualmente disponíveis ao público.
“Não é assim que funcionam os LLMs modernos”, afirma Ryan.
Mas isso pode mudar em breve. Já existem pesquisas em andamento para dar à inteligência artificial maior compreensão sobre o mundo à sua volta.
“Os pesquisadores já estão trabalhando para aperfeiçoar as capacidades de áudio dos modelos de IA, o que irá ajudar na compreensão de fatores sociais e na capacidade de adaptação ao público, além de manter o ritmo do humor”, afirma Ryan.
Ryan foi um dos líderes de um grande projeto analítico para testar os limites das piadas geradas por inteligência artificial.
Sua pesquisa destacou as limitações, mas ele acredita que o crescimento explosivo da tecnologia irá produzir LLMs com excepcional capacidade de gerar humor em um futuro próximo.
“Acredito que iremos ver cenários de humor realmente engraçados gerados por IA nos próximos anos”, prevê Ryan.
Pode ser necessário algum tempo até que a IA consiga reproduzir no palco as mesmas atividades que os humoristas do mundo real dominam há séculos. Mas, para escrever pequenas piadas engraçadas, os pesquisadores já fizeram progressos.
Em 2023, o roteirista americano Simon Rich escreveu um artigo para a revista Time sobre sua experiência com um modelo não publicado da OpenAI, chamado code-davinci-002. Ele foi desenvolvido especificamente para desempenhar tarefas criativas.
Rich colaborou com dois outros escritores para criar um livro de poesia escrito por IA, que foi lido e gravado pelo cineasta alemão Werner Herzog.
Antes de trabalhar no livro, ele pediu à máquina que criasse algumas piadas. Rich conta que o resultado foi tão bom que ele chegou a ter pesadelos.
Rich forneceu ao code-davinci-002 uma série de manchetes do seu website de humor The Onion (“A Cebola”) e pediu que ele próprio gerasse alguns títulos de textos humorísticos.
Um dos melhores exemplos produzidos pela IA foi: “Orçamento do novo filme de Batman sobe para US$ 200 milhões porque o diretor insiste em usar o verdadeiro Batman”. Outro título criado pela IA foi “História da mulher que resgatou cão de abrigo com pelo totalmente embaraçado inspira as pessoas a abrir uma nova aba e visitar outro site.”
O humor é subjetivo, mas as piadas do robô foram muito além dos padrões de Rich para conseguir uma risada.
Entendeu a piada?
Os pesquisadores investigam atualmente como criar consciência de contexto para a inteligência artificial.
Enquanto isso, de volta a Londres, Karen Hobbs começou a ficar muito consciente do seu próprio contexto.
Enquanto o apresentador começava a preparar o público, ela descobriu, horrorizada, que uma parte significativa do público no lado direito do salão nunca havia assistido a um show humorístico antes. Ou seja, o que quer que a IA tivesse produzido seria uma das primeiras experiências daquelas pessoas como público de humor.
Será que eles iriam gostar do que estavam por ouvir?
O estudante de PhD Drew Gorenz, da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, é especialista em estudar a psicologia que faz com que algo seja especificamente engraçado. Ou seja, seu trabalho, literalmente, é explicar a graça das piadas.
Ele se dedicou a comparar piadas criadas por seres humanos com seus concorrentes digitais. E concluiu que, de forma geral, as piadas geradas por IA venceram, quando foram apresentadas a mais de 200 leitores.
O método de Gorenz foi parecido com o jogo online Quiplash. Nele, os participantes recebem uma sentença com uma lacuna ou sigla e concorrem para oferecer a resposta mais engraçada.
“Ela não escreve piadas do nível [do humorista americano] John Mulaney”, explica ele. “Mas, em comparação com as pessoas comuns, suas piadas foram avaliadas entre as 63 a 87% melhores, dependendo das instruções que fornecêssemos [à IA].”
Gorenz acredita que a capacidade dos LLMs de escrever humor é “menosprezada” e que a qualidade das piadas geradas por IA depende das instruções que fornecemos ao modelo.
“A maioria das pessoas, incluindo os humoristas, não tem bom desempenho quando um estranho pede a eles ‘diga algo engraçado'”, explica ele. “Quanto mais específico o pedido, melhor será a resposta.”
E alguns modelos podem se sair melhor do que outros. O ChatGPT e o Gemini, da Google, foram criados para aplicações gerais. Uma IA específica para o humor provavelmente terá resultados muito melhores na criação de piadas do que os modelos genéricos, embora fiquem para trás em outras aplicações.
Mas Gorenz faz uma distinção importante entre as piadas e os próprios humoristas. O público de stand-up “espera autenticidade e vulnerabilidade dos seus humoristas”, o que pode ter menos importância em outros setores.
E, para os LLMs que estão apenas começando a lidar com o mimetismo da linguagem, esta pode ser uma tarefa muito difícil para o ghost writer da inteligência artificial.
Aplausos para o algoritmo
Para Powell, a busca pela digitalização do humor é inútil, impraticável e antiética.
O desenvolvimento de modelos de IA generativa exige “enormes quantidades de energia e gastos” e “provavelmente será mais barato, mais interessante e produzirá muito mais surpresas investir em jovens comediantes e produções culturais, em vez de tentar aplicar os recursos necessários para fazer o trabalho por computador”.
“Acho que, provavelmente, poderíamos ter mais benefícios no investimento em humoristas humanos, com muitos tipos diferentes de ideias – que serão estatisticamente distintas das já existentes – e que sejam engraçados para todos os tipos de culturas humanas e diferentes contextos linguísticos”, afirma Powell.
Enquanto subia ao palco para sua apresentação escrita por IA, Hobbs avisou honestamente ao público que a reação deles poderia ser decisiva para os humoristas, agora à mercê dos seus novos senhores digitais.
“Se vocês rirem durante toda a apresentação, ficaremos sem emprego!”, disse ela.
Por sorte, houve apenas surtos irregulares de risos e expressões levemente horrorizadas, principalmente quando Hobbs olhava de relance para o público.
“Uma vez, eu dei à minha esposa um bastão de cola em vez de batom. Ela está sem falar comigo até hoje”, leu Hobbs para um público perplexo, que esperava pacientemente por uma piada melhor.
“Namorar é como fazer compras”, escreveu a IA em outro momento particularmente marcado por questões de gênero. “Você sai procurando o que quer e volta com algo de que não precisa.”
Poucos instantes depois, Hobbs exclamou: “literalmente, nunca me senti tão idiota em toda a minha vida”. E o seu desabafo traz à tona uma verdade mais profunda.
Um modelo de IA pode lidar com o mecanismo de criação de piadas. Às vezes, ele pode até chegar perto de um bom resultado. Mas só os humoristas humanos conseguem enfrentar o desconforto de serem bombardeados frente ao seu público.
A inteligência artificial ainda não descobriu este segredo. Por isso, os humoristas podem suspirar aliviados – eles não precisarão sair procurando emprego, pelo menos por enquanto.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.