A 77ª Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou algumas alterações no texto do Regulamento Sanitário Internacional (RSI) de 2005 para incluir dispositivos que dotarão a organização de novos instrumentos para preparação e resposta às futuras pandemias.
Estas alterações foram a solução intermediária encontrada pelo colegiado máximo da OMS para contornar o fracasso das negociações que estavam em andamento para a aprovação de um Acordo Internacional para Pandemias específico, muito mais robusto e com instrumentos mais apropriados aos desafios que se avizinham.
Para que se possa compreender com profundidade as alterações realizadas no RSI convém explorar os principais dispositivos alterados e inseridos.
Definições
Foram incluídas algumas novas definições no artigo 1º do RSI, notadamente os conceitos de “Autoridade Nacional do RSI”, “Emergência Pandêmica” e “Produtos de Saúde Relevantes”.
De acordo com o novo texto, “Autoridade Nacional do RSI” significa a entidade designada ou estabelecida pelo Estado-Parte em nível nacional para coordenar a implementação do Regulamento em cada país.
Foi também criada a definição de “Emergência pandêmica”, que passa ser entendida como a emergência de saúde pública de interesse internacional causada por uma doença transmissível que reúna, cumulativamente, as seguintes características:
- tenha, ou esteja em alto risco de ter, ampla distribuição geográfica para e dentro de múltiplos Estados; e
- exceda, ou esteja em alto risco de exceder, a capacidade dos sistemas de saúde para responder nesses Estados; e
- esteja causando, ou esteja em alto risco de causar, perturbações sociais e/ou econômicas substanciais, incluindo perturbações no tráfego e comércio internacionais; e
- requer uma ação internacional coordenada rápida, equitativa e reforçada, com
- abordagens do governo e de toda a sociedade.
Por fim, foi criado o conceito de “produtos relevantes de saúde”, entendidos como os produtos de saúde necessários para responder às questões emergências de saúde pública de interesse internacional, incluindo emergências pandêmicas, que podem incluir medicamentos, vacinas, diagnósticos, dispositivos médicos, produtos de controle de vetores, proteção individual equipamentos, produtos de descontaminação, produtos assistivos, antídotos, produtos baseados em células e genes terapias e outras tecnologias de saúde.
Princípios
O artigo 3º foi alterado para a inclusão da equidade e solidariedade entre os princípios do RSI. De acordo com o novo texto, a implementação do Regulamento será feita no pleno respeito pela dignidade, pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais das pessoas e promoverá a equidade e a solidariedade.
Autoridades responsáveis
O artigo 4º também foi alterado para melhorar o entendimento de quem são as autoridades responsáveis pela implementação do RSI em cada Estado-Parte. Conforme o novo texto, cada país deve designar, de acordo com a sua legislação e contexto nacionais, uma ou duas entidades para servir como Autoridade Nacional do RSI e Ponto Focal Nacional do RSI, que serão responsáveis pela implementação de medidas de saúde nos termos do Regulamento.
Este novo dispositivo busca deixar claro quem serão as autoridades em cada país responsáveis pelo preparo e resposta às futuras pandemias, sendo tal previsão fundamental para evitar que autoridades nacionais possam ignorar ou fingir que não receberam as diretrizes da OMS fixadas para orientar o combate global às futuras pandemias.
Notificação
O artigo 6 também foi emendado para aperfeiçoar os instrumentos de notificação previstos no RSI, passo inicial fundamental para a detecção precoce das futuras emergências sanitárias e seu combate eficaz.
Cada Estado-Parte deverá avaliar os eventos de saúde ocorridos no seu território utilizando o instrumento de decisão do RSI e deverá notificar a OMS sobre todos os eventos que possam constituir uma emergência de saúde pública de importância internacional no seu território, bem como qualquer medida de saúde implementada em resposta a esses eventos. Essa notificação deverá ser feita no prazo de 24 horas e por meio do Ponto Focal Nacional do RSI.
Determinação de uma emergência de saúde pública de importância internacional, incluindo emergências pandêmicas
O artigo 12 do RSI foi alterado para incluir importantes inovações acerca da determinação de emergência internacional de saúde pública pela OMS. De acordo com o novo texto, o diretor-geral determinará, com base nas informações recebidas, se um evento constitui um emergência de saúde pública de importância internacional, incluindo, quando apropriado, emergências pandêmicas.
Ao determinar se um evento constitui uma emergência de saúde pública de importância internacional, incluindo, quando apropriado, uma emergência pandémica, o Diretor-Geral considerará os seguintes elementos:
- informações fornecidas pelo(s) Estado(s)-Parte(s);
- o instrumento de decisão constante do Anexo 2 do RSI;
- o parecer do Comité de Emergência;
- Princípios científicos, bem como as provas científicas disponíveis e outras informações relevantes
- Uma avaliação do risco para a saúde humana, do risco de propagação internacional de doenças e do risco de interferência no tráfego internacional.
Se o diretor-geral determinar que um evento constitui uma emergência de saúde pública de interesse internacional, o diretor-geral determinará ainda, se a emergência de saúde pública de interesse internacional também constitui uma emergência pandêmica.
Também competirá ao diretor-geral da OMS, após consultas com o(s) Estado(s)-Parte(s) em cujo(s) território(s) se verifica uma emergência de saúde pública de importância internacional, incluindo emergência pandêmica, avaliar se as condições que deram ensejo à determinação de emergência já terminaram e, se assim entender, determinar o fim das emergências.
Resposta de saúde pública, incluindo acesso equitativo a produtos relevantes de saúde
A reforma do RSI também cuidou de ampliar as responsabilidades de cada Estado-Parte para que desenvolvam as principais capacidades para prevenir, preparar e responder pronta e eficazmente aos riscos de saúde pública e às emergências de saúde pública de interesse internacional, incluindo emergências pandêmicas.
O novo texto do artigo 13 do RSI dispõe que a OMS apoiará os Estados-Partes, mediante solicitação destes ou após oferta da OMS, e coordenará atividades de resposta internacional durante emergências de saúde pública de interesse internacional, incluindo emergências pandêmicas.
Caberá à OMS remover barreiras ao acesso oportuno e equitativo aos produtos de saúde relevantes após a determinação de emergências de saúde pública de interesse internacional, incluindo emergências pandêmicas, com base em critérios de saúde pública riscos e necessidades. Para esse efeito, o Diretor-Geral deverá realizar, revisar e atualizar periodicamente avaliações de necessidades de saúde pública, bem como da disponibilidade e acessibilidade de produtos e serviços de saúde relevantes para respostas de saúde pública.
O novo texto do RSI prevê que a OMS poderá utilizar mecanismos que garantam o acesso oportuno e equitativo a produtos de saúde relevantes com base nas necessidades de saúde pública identificadas.
A OMS também deverá apoiar os Estados-Partes, a seu pedido, na expansão geográfica e diversificação da produção de produtos relevantes de saúde, através de redes e mecanismos coordenados pela OMS de acordo com o direito internacional vigente. Nesse sentido, a OMS poderá compartilhar com um Estado-Parte, mediante solicitação deste, o dossiê do produto relacionado a um determinado produto relevante de saúde relevante, conforme fornecido à OMS pelo fabricante para aprovação e onde o fabricante tiver consentido, no prazo de 30 dias após o recebimento de tal solicitação, para efeito de facilitar a avaliação regulatória e autorização pelo Estado-Parte.
Também compete à OMS apoiar os Estados-Partes, mediante solicitação destes e, conforme apropriado, por meio de redes e mecanismos coordenados pela OMS e outros, promover a investigação e o desenvolvimento e reforçar a produção local de produtos relevantes de saúde de qualidade, seguros e eficazes.
Outra importante inovação trazida na reforma do RSI foi a inclusão, da obrigação aos Estados-Partes de se comprometerem a colaborar e ajudar uns aos outros e para apoiar atividades de resposta coordenadas pela OMS, nomeadamente através das seguintes ações:
- (a) apoiar a OMS na implementação das ações descritas neste artigo;
- (b) envolver e incentivar as partes interessadas relevantes que operam em seus respectivos jurisdições para facilitar o acesso equitativo a produtos de saúde relevantes para responder a uma emergência de saúde pública de importância internacional, incluindo uma emergência pandémica; e
- (c) disponibilizar, conforme apropriado, termos relevantes de suas atividades de pesquisa e desenvolvimento acordos para produtos de saúde relevantes relacionados com a promoção do acesso equitativo a tais produtos durante uma emergência de saúde pública de interesse internacional, incluindo uma pandemia emergência.
Agenda em aberto
Como se pode ver, as inovações trazidas foram bastante tímidas face aos desafios que ficaram explícitos com a pandemia da Covid-19. A OMS demonstrou fragilidades institucionais e instrumentais enormes, seja para compreender a origem da pandemia (até hoje incerta), seja para coordenar ações globais solidárias e equitativas no seu combate. A criação de instrumentos mais sólidos para a OMS, que conferissem à entidade internacional um poder de intervenção mais eficaz não foi contemplada na alterações promovidas.
A falta de consenso para aprovar um Acordo de Pandemias mantém a população global em risco face às futuras pandemias e espera-se que os debates para este novo instrumento internacional não sejam travados face aos tímidos avanços apresentados na reforma do RSI ou face aos novos cenários políticos nacionais, onde ideologias de extrema direita que militam contra a governança global dos problemas de saúde pela OMS ou por outros organismos internacionais vicejam perigosamente.
FERNANDO AITH – Professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP