Pandemia trouxe urgência para transformação digital de times e confederações, que começam a aprender como lidar com startups; falta de profissionalismo e visão de longo prazo são ‘pedreiras’ no caminho dos clubes, apontam especialistas
No futebol brasileiro, uma das fórmulas mais conhecidas para o sucesso dentro de campo é investir na base: apostar em quem está começando, com pouca experiência, mas está cheio de ideias e apetite para mostrar seu potencial. Nos últimos tempos, essa receita não tem valido apenas para jogadores, mas também para startups, com clubes e confederações apostando na criação de hubs de inovação do esporte. O objetivo? Além de descobrir tecnologias que possam melhorar a performance de atletas, essas iniciativas buscam melhorar a gestão, o engajamento com torcedor, a oferta de conteúdos e, até mesmo, a experiência de quem assiste a uma partida, seja dentro ou fora do estádio.
É um movimento que já havia começado de maneira tímida antes da pandemia, mas se intensificou após a covid-19. “Era um momento em que os clubes não podiam ir para o estádio, mas estavam desesperados para se conectar com os torcedores”, avalia Marcelo Nicolau, head de Venture Building da Sportheca – a empresa é, desde o começo do ano, parceira do São Paulo Futebol Clube no hub Inova.São, que, após meses atuando virtualmente, vai abrir suas portas neste mês de novembro, com uma sede física no estádio do Morumbi, na zona oeste da capital paulista.
“Ter um espaço físico ajuda a gente a poder levar investidores, pesquisadores e formadores de opinião para interagir com o clube ou a startup”, ressalta Nicolau. “Mas a grande fortaleza do projeto é mesmo poder identificar as dores e oportunidades do clube, sabendo priorizá-las, porque em inovação não se morre de fome, mas sim de congestão.” Por enquanto, a Sportheca está desenvolvendo apenas um projeto junto com o São Paulo, estudando como a tecnologia pode impactar a performance dos atletas das categorias de base do time, que ficam alojados num centro de treinamento em Cotia (SP). “É um espaço importantíssimo para startups poderem trocar”, complementa o executivo.
Na parceria, o São Paulo não entra com investimento direto, apenas abrindo as portas para que a Sportheca crie soluções a partir de suas dores – a empresa atua no modelo de venture builder, fundando empresas dedicadas a resolver projetos específicos. “A remuneração do projeto não vem do clube, mas, sim, do faturamento de startups e soluções que a gente venha a construir em conjunto”, afirma o executivo, que, assim como muitos dirigentes, aposta na venda das “crias” do clube para gerar receita. “O que serve de inovação para o São Paulo também pode servir para outros clubes, dentro ou fora do Brasil.”
Além da parceria com o clube, a Sportheca também desenvolve projetos para marcas: é o caso do OneFan, plataforma de engajamento e gestão de torcedores já usada por times como Corinthians, Palmeiras e Flamengo, além do próprio torcedor paulista. “Na plataforma, o clube tem um super aplicativo na mão, concentrando venda de merchandising, fantasy, conteúdos, venda de tíquete para o jogos e muitas outras funcionalidades”, diz Nicolau.
Grêmio aposta em inovação aberta
Enquanto o hub do São Paulo atua no modelo de venture builder, outros clubes preferem atuar no esquema tático da inovação aberta – isto é, abrindo suas portas para que diferentes empresas, marcas e organizações interajam conjuntamente. É o que acontece no Grêmio, por exemplo, que tem o Grêmio i9 (lê-se “inove”, um trocadilho comum nesse tipo de iniciativa) sediado desde maio no Instituto Caldeira, hub de inovação criado em Porto Alegre com a participação de grandes empresas da região, incluindo Renner, Panvel, RBS, Gerdau e Grendene.
Pouco tempo após sua abertura, o Grêmio i9 já realizou seu primeiro pitch reverso: em vez de as startups mostrarem suas soluções para o clube, foi o time que apresentou problemas para uma comunidade de empresas, que puderam se candidatar para ajudar na criação de experiências para os dias de partidas. “Hoje, nosso estádio tem espaço para 57 mil torcedores, mas o clube tem 115 mil sócios, de maneira que não dá para ficar só pensando no que acontece na Arena do Grêmio”, diz Thiago Baisch, membro do comitê de Marketing do clube gaúcho e cofundador da consultoria BizMindset, parceira do projeto.
Segundo Jennifer Forell, head de inovação do Grêmio, foram escolhidas três empresas para participar do primeiro ciclo de inovação do clube – neste momento, o time está decidindo se vai investir nas companhias ou se as apresenta para outros investidores parceiros. Além disso, o segundo ciclo de pitch reverso do tricolor gaúcho já está marcado para o primeiro trimestre do ano que vem e será focado na criação de jogos, a fim de aproximar a equipe dos torcedores mais jovens. “Além de criar projetos, nosso foco é mostrar que o Grêmio está de portas abertas para a comunidade e para o mercado”, afirma a executiva.
Da Pompeia para o mundo
Criado antes da pandemia e implementado de maneira remota durante o período de isolamento social, o Arena Hub talvez seja o melhor exemplo de hub capaz de agregar diferentes times e confederações – ainda que guarde em sua estrutura uma pequena contradição: sua sede é o Allianz Parque, mas o Palmeiras não faz parte da lista de associados. Por outro lado, o rol de parceiros é extenso: vai de times como América-MG, Ponte Preta, Botafogo, Atlético Mineiro e Vasco da Gama a clubes como o Pinheiros, passando por entidades como o Comitê Olímpico Brasileiro, a Federação Paulista de Futebol e até a National Basket Association, a NBA.
Além de startups e agremiações, o Arena Hub tem entre seus membros uma série de empresas e marcas que buscam associar suas imagens ao esporte. Com isso, o hub é capaz de conectar um tripé de inovação aberta, levemente inspirado no Cubo, do Itaú. “Os clubes nos trazem suas dores, e nós ajudamos no processo de transformação digital, enquanto as startups precisam de atenção para validar seus modelos de negócios e provas de conceito. As marcas, por sua vez, trazem desafios, hackatons e outros problemas para fomentar esse ecossistema, se beneficiando quando o transporte fica mais profissional”, diz Fernando Patara, cofundador e chefe de Inovação do Arena Hub. “Mas, mais do que startups de esporte, buscamos startups que façam soluções para o esporte.”
Para funcionar, o Arena Hub cobra das startups uma associação mensal de R$ 199. Já as entidades esportivas não pagam nada de partida, mas o hub tem modelos de remuneração caso projetos sejam criados; da mesma forma acontece com as marcas. Entre os destaques, o Arena Hub acaba de começar seu segundo ciclo de aceleração de empresas, o Podium.
Na primeira turma, um dos destaques foi a Fanbase, startup de engajamento de torcedores que serve como uma espécie de CRM (customer relationship manager) para times e confederações – entre os clientes, estão Atlético Mineiro, Fortaleza, Botafogo e o Allianz Parque, que tem usado a solução em jogos e shows. O estádio também lançou um desafio de inovação, o Cidade Allianz Parque, buscando soluções que ajudem a deixá-lo mais inteligente. Além disso, o Arena Hub acaba de lançar um fundo de venture capital, o Sports Angels, dedicados a fazer investimentos em startups de estágio inicial.
Rivalidade
Ao longo das entrevistas para esta reportagem, clubes e hubs de inovação citaram dois cases como inspiração: um é o Barça Innovation Hub, do time de futebol espanhol Barcelona, que existe há dez anos e começa a colher frutos de seus primeiros investimentos. Outro são os programas de inovação das ligas de esporte americanas, nas quais os times investem juntos em inúmeros projetos. Entre os casos de sucesso, dá para citar o NBA Top Shot, projeto de transformação de lances icônicos do basquete em NFTs colecionáveis pelos torcedores, ou a BAMTech, empresa de streaming criada pela liga de beisebol MLB que foi comprada pela Disney – em 2022, a companhia do Mickey pagou US$ 900 milhões pela fatia final de 15% do negócio.
Aqui no Brasil, porém, é difícil ainda imaginar os clubes atuando coletivamente. É culpa da rivalidade e da falta de percepção de que atuar em bloco pode mudar a situação, indo muito além da inovação – nos últimos tempos, conversas para a criação de ligas que funcionem de maneira independente têm sido travadas justamente pela demanda de um ou outro time por mais orçamento nas cotas de direitos de transmissão de TV.
Mas há progressos, ao menos na consciência. “Nosso rival hoje não é o Internacional, mas sim a Netflix ou o cinema. Na carteira do gremista, não tem espaço pro Inter, mas tem para quando ele sai de casa”, diz Thiago Baisch, do Grêmio i9 – e ele jura que tem até empreendedor colorado nas startups que prestam serviços para o tricolor gaúcho. “Se o colorado ajuda a melhorar a experiência do gremista, ele é um bom colorado.”
Para ir além do marketing
Ainda assim, o modelo predominante é o de clubes que lançam seus próprios hubs de inovação – e os exemplos também incluem casos como o Santos Innovation Hub, o 1918Labs (do Fortaleza), o Vozão Conecta (do Ceará) e o HubFiel (do Corinthians). Mas, da mesma forma como aconteceu com muitos casos de inovação corporativa ao longo da última década, é preciso tomar cuidado para que as iniciativas não sejam apenas marketing. “Se você não tiver a visão correta do que a inovação precisa ser, o hub vira apenas um coworking, um espaço sem vida e sem valor sendo criado para os clubes”, diz Pedro Oliveira, sócio do Outfield Capital, fundo de venture capital dedicado a investir em sportstech.
Entre as dificuldades, está a de entender qual será o melhor modelo para que os clubes se aproximem das startups – entre o investimento direto, a criação de programas de aceleração ou a simples prestação de serviços. É um dilema parecido com o que viveu o ecossistema de inovação nos anos 2010, quando muitas empresas criaram iniciativas para se aproximar de startups e houve muita frustração de todos os lados.
Além disso, dizem especialistas, falta cultura de inovação nos clubes. “A gente está falando de um mercado que tem jogador que usa a mesma cueca todo jogo, se não acha que vai perder. Tem muita cultura e superstição enraizada no futebol, e muitos clubes só agora começam a profissionalizar a gestão”, avalia Luiz Fernando Durão, professor do Insper e pesquisador de inovação no esporte.
Outro empecilho, dizem os entrevistados, é a falta de visão de longo prazo dentro dos clubes e confederações. “O torcedor não vai cobrar a diretoria se ela tá investindo em startups, mas vai ficar desesperado se o time for rebaixado. Falta a chamada ambidestria, que é conseguir fazer a gestão da operação e da inovação ao mesmo tempo”, diz Durão, do Insper. Para analistas do mercado, esse modelo é ainda mais grave em clubes de modelo associativo, em que a gestão muda a cada dois, três ou quatro anos – e o esforço de um presidente pode ir por água abaixo se ele perder uma eleição.
“É um modelo cujo incentivo para o dirigente se reeleger é ganhar campeonato, não pensar na melhor gestão de uma arena. Da mesma forma, nos esportes olímpicos, está todo mundo pensando em Paris 2024, não na formação do atleta de 2040”, comenta Oliveira. Para ele, a transformação dos clubes em sociedades anônimas do futebol (SAF), com um dono específico, ajudará no trabalho de inovação. “Um clube com dono consegue ter uma visão mais longoprazista”, ressalta o sócio da Outfield Capital.
Durão, por sua vez, discorda: “o que falta mesmo é profissionalização. Palmeiras e Flamengo não são SAFs, mas já colhem resultados de uma gestão profissional dentro do campo”, afirma o professor do Insper.
Em meio a isso, ideias boas não faltam – durante as entrevistas para essa matéria, termos como inteligência artificial, análise de dados e blockchain foram bastante mencionadas pelos clubes como forças motrizes de inovação. Há até quem sonhe, tal como os jogadores da base, em ajudar na criação de startups que atraiam investimento de fora. Por enquanto, ainda é um sonho distante, mas nada impede que, no futuro, revelar uma empresa de tecnologia possa ser tão importante quanto revelar um Neymar ou Endrick na base.
Fonte: Época Negócios