sexta-feira,22 novembro, 2024

Gigante francesa famosa por projetos de aeronaves agora aposta na criação de remédios com inteligência artificial

Bernard Charlès, CEO da Dassault Systèmes, explica o novo foco da empresa e diz que o avanço da tecnologia exige mudanças

Em geral, planos de industrialização não geram os retornos esperados porque os países costumam negligenciar dois aspectos importantes: a perenidade do plano e o efeito da modernização na mão de obra. A avaliação é de Bernard Charlès, CEO global da Dassault Systèmes, que lembra que o avanço da tecnologia exige também mudanças em processos e métodos adotados pelas empresas.

Gigante francesa de tecnologia industrial, com receita de € 6 bilhões (R$ 32,2 bilhões) no mundo, a Dassault se destacou no mercado com seus softwares 3D para projeção de aeronaves, serviço que acabou replicado em diversos outros setores e hoje ajuda na fabricação de carros, submarinos, até frascos de xampu e celulares.

Em visita ao Brasil, Charlès falou com exclusividade ao GLOBO sobre o foco atual da companhia no setor de saúde, o uso de inteligência artificial (IA) para desenvolver novos remédios e a criação de réplicas virtuais do corpo humano. Ele também explica por que acredita que o metaverso já existe há 30 anos e deixa um recado para os brasileiros: o Brasil precisa modernizar equipamentos, máquinas de precisão e ferramentas caso queira criar oportunidades na indústria.

Qual é o principal negócio da Dassault Systèmes atualmente?

Se você olhar para o resultado final, oferecemos soluções de software em três setores da economia: saúde, infraestrutura e produção de bens físicos, o que inclui de aviões e satélites a frascos de xampu. Um exemplo concreto para ilustrar: todos os aviões produzidos hoje no planeta são projetados com nosso software 3D. E não é só uma reprodução gráfica, porque realmente medimos se aquele avião com aquelas características vai decolar. É o que chamamos de modelação e simulação de objetos complexos.

Mais recentemente, também entramos na área de saúde e de simulações de moléculas. Em termos de indústria, o nosso principal setor hoje é o de saúde, principalmente porque todas as grandes farmacêuticas estão usando o nosso serviço. Hoje, 70% dos novos medicamentos em estudos clínicos usam a nossa plataforma. Mas tudo está abarcado no que chamamos de gêmeos virtuais — e que eu prefiro chamar de virtual mesmo, não de digital.

Qual a diferença entre virtual e digital?

Você pode ter um avatar bacana, mas sem saber como ele funciona internamente. Nós conseguimos saber quais são as camadas físicas e os comportamentos do material envolvido. É uma virtualização da realidade com física e ciência embutidas nas simulações.

Essa é uma tecnologia que lembra muito o metaverso, que recebeu muita atenção anos atrás. Como viu todo aquele barulho em torno de uma tecnologia tão parecida com algo que vocês desenvolvem há décadas?

Se você for na Embraer ou na Boeing e ver a forma como eles produzem aeronaves, verá que tudo o que eles criam, antes do físico, é puramente virtual. Nessa perspectiva, nós já fazemos o metaverso. O que eu vi foi uma bolha, com a Meta mudando de nome. Mas estou convencido de que o metaverso é a forma como a Humanidade pode avaliar o impacto do que produz antes mesmo de aquilo vir ao mundo. É uma grande oportunidade também para reduzir a pegada de carbono e criar um equilíbrio em medir o custo de produção de algo. Nossa prioridade é realmente continuar essa jornada.

O que mudou na tecnologia desde as primeiras modelagens para aviões?

Começamos com simulações de produtos. Depois, passamos a fazer virtualização das próprias plantas industriais. Ou seja, além de focarmos no que é produzido, começamos a trabalhar em como é produzido, com softwares especializados em operar plantas. Agora estamos indo além: conseguimos rastrear todo o ciclo de vida dos produtos, com a virtualização de ponta a ponta. Isso se tornou ainda mais importante porque permite medir o impacto ambiental de um produto. Nós estamos criando softwares para ajudar a rastrear os processos e medir, por exemplo, os desperdícios das indústrias.

O software que rastreia toda a cadeia é o PLM. Acha que a indústria está tão preocupada com o impacto ambiental que gera como deveria estar?

É uma pergunta difícil, mas vou te dar minhas perspectivas sobre isso. Primeiro, acho que devemos admitir que há um problema enorme de desperdício. A economia de consumo talvez tenha ido longe demais. Olho para minha família e vejo que continuamos a reduzir e diminuir o número de objetos ao nosso redor. Mas é muito difícil fazer isso porque coisas novas continuam vindo ao mundo. O consumo criou coisas boas, é claro, mas também nos mostrou o limite do nosso planeta. Nós absolutamente precisamos transformar os materiais que usamos e encontrar alternativas.

“Percebi que a ciência da vida não tem o modelo matemático que temos para o setor aeroespacial. Se você me der as medidas de um avião, posso apontar em que condições ele consegue voar bem ou não. Isso não existe para a vida humana”

Acha então que é mais uma questão de como produzimos do que do quanto produzimos?

É sobre os dois.

Mas as empresas precisam lucrar e, para isso, produzir e vender, não?

Sim. E elas nos incentivam a comprar dois quando na verdade só precisamos de um. Tem muito disso. Mas é preciso haver a construção de uma consciência coletiva, algo que eu acho que já começou a acontecer.

Como enxerga o momento atual da indústria brasileira?

O que eu vejo é que o Brasil precisa considerar modernizar seus equipamentos, máquinas de precisão e ferramentas. Os chineses fizeram isso e hoje têm sistemas de produção de altíssima qualidade e precisão. A modernização na indústria seria uma oportunidade grandiosa para o Brasil, que já tem bons engenheiros e uma boa força de trabalho. De maneira geral, estou animado com o potencial do Brasil e com as mudanças que a educação poderia gerar. As pessoas frequentemente acham que a transformação custa muito caro e é difícil de ser feita. Sempre digo que é melhor tentar.

O governo brasileiro lançou há algumas semanas um plano de incentivos para a indústria. Como enxerga essa estratégia de financiamento público para impulsionar a competitividade do setor?

Tirando a China, todos os países em que o governo criou incentivos para negócios privados terem boas condições de investir não foram tão bem-sucedidos a ponto de os investimentos serem justificados. Um dos parâmetros que deveriam ser fundamentais é a força de trabalho, e todos os países subestimam esse ponto. Com o avanço da tecnologia, a forma como as pessoas vão trabalhar no futuro não é apenas uma extensão do que elas faziam no passado. As pessoas precisam ser treinadas de forma diferente. Não é só sobre saberem usar os sistemas, mas também sobre treiná-las para as novas gerações de processos e métodos.

Na China, foi diferente. Houve um longo plano que não era apenas um incentivo financeiro, mas algo muito mais estruturado. É claro que estamos falando de um país pouco democrático. Mas veja o que eles conseguiram fazer na indústria de baterias, de carros elétricos, celulares e chips. Eles foram capazes de se revelarem líderes em mercados conforme tiveram um plano consistente e estruturado de longo prazo.

O senhor citou que o maior setor para a Dassault hoje, em termos de receita, é o de saúde. Como funcionam as simulações nessa área?

Essa é uma pesquisa que comecei há 20 anos. A origem era uma questão: como nós podemos fazer modelos e simulações também de órgãos e células humanas? Nós começamos desenvolvendo um modelo do coração humano. O objetivo basicamente era conseguir entender como nosso corpo trabalha e como, em representações, poderíamos simular a complexidade de efeitos biológicos e físicos. Mas percebi que a ciência da vida não tem o modelo matemático que nós temos para o setor aeroespacial. Se você me der as medidas de um avião, eu posso te dar qual a aerodinâmica dele e apontar em que condições ele consegue voar bem ou não. Isso não existe para a vida humana.

Foi quando começamos as negociações para adquirir a Medidata (empresa de tecnologia para o setor de ciências da vida, com foco em ensaios clínicos), comprada em 2019. A Covid apareceu dois meses depois. O sistema da Medidata (Rave Clinical Cloud, que roda testes de moléculas de forma virtual) foi a plataforma usada em todo o mundo para desenvolver a vacina contra a Covid-19. Todas foram avaliadas por meio dela. Então nos tornamos o primeiro do setor em apenas algumas semanas. Tem um elemento da sorte, o que é bom, mas essa é uma pesquisa que comecei há 20 anos.

Em um avião é possível medir todos os dados atmosféricos e físicos. Como fazem isso no corpo? E como rodam esse sistema para criação de vacinas?

Quando você tem uma nova candidata a medicação, as farmacêuticas fazem uma série de testes clínicos em fase 1, fase 2 e fase 3. Eles tentam chegar a características dos pacientes que têm os melhores benefícios daquela molécula e com o menor prejuízo. Depois que você fez o ensaio clínico e avaliou os resultados positivos, você costuma realizar a avaliação em dois grupos de pacientes. Um que receberá o placebo e outro que receberá o tratamento. Os resultados são comparados e reportados para as autoridades que então avaliam a liberação daquele medicamento. Trata-se de uma observação empírica dos resultados a partir da reação no corpo humano.

Vocês criaram uma espécie de terceiro grupo de pacientes?

Sim. Nós inventamos um novo grupo com pacientes que são criados virtualmente com sistemas de inteligência artificial (IA). Os dois grupos continuam a existir, mas há um terceiro que chamamos de “grupo de controle sintético”. Esses pacientes são criados a partir de dados massivos que coletamos ao longo dos anos. Basicamente, o que estamos fazendo nesse momento é gerar, com IA, a caracterização dos pacientes que podem ganhar os melhores benefícios com aquela medicação, o que é um passo gigante para a medicina de precisão.

Fonte: Época Negócios

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