O anúncio de como será a operacionalização do fundo de perdas e danos no primeiro dia da COP 28 foi seguido de uma série de promessas financeiras. Mas ainda existem muitas incertezas sobre o funcionamento e o impacto concreto do novo fundo.

Quando o Sultão Al Jaber, vestido com sua tradicional Kandora branca, sentado diante do fundo verde-azulado contendo a logo da COP 28, oficializou a aprovação do Fundo de Perdas e Danos em 30 de novembro em um auditório ocupado por centenas de líderes mundiais, a sensação geral foi de uma grande vitória. Mesmo a dezenas de metros de distância, no auditório dedicado àqueles que não conseguiram entrar no salão principal, as reações à imagem transmitida no telão foram de celebração. E não tardou para que o anúncio virasse manchete ao redor do mundo.

Afinal de contas, este foi um marco histórico. Pela primeira vez, uma sessão de abertura da COP terminou com um resultado substancial. Foram mais de 30 anos desde 1991, quando o pequeno país-ilha de Vanuatu, no Pacífico Sul, fez o primeiro apelo para que os países desenvolvidos oferecessem apoio financeiro para que as nações mais vulneráveis pudessem lidar com as perdas e danos decorrentes dos impactos das mudanças climáticas.

Já no ano passado, na COP 27 em Sharm El-Sheik, no Egito, a determinação da criação do fundo, no último dia do evento, foi recebida como um grande passo. Ao longo dos doze meses que se seguiram, um comitê de transição se reuniu em cinco encontros para determinar as diretrizes para a operacionalização do fundo.

“Inicialmente, seriam quatro encontros ao longo do ano, mas isso não foi suficiente para chegar em um consenso em relação a questões fundamentais”, explica Gaia Hasse, advogada no Toledo Marchetti e integrante da rede LACLIMA. “Então foi marcado um quinto encontro [em Abu Dhabi, em novembro]. Nessa reunião foi que conseguiram estabelecer as diretrizes do texto que foi aprovado no primeiro dia da COP 28. Essa aprovação foi o resultado do longo trabalho do comitê”, acrescenta.

Imediatamente após sua aprovação, países como os Emirados Árabes Unidos, a Alemanha e o Japão fizeram suas primeiras promessas milionárias ao fundo. Até o fim da conferência do clima, as promessas já somavam US$ 800 milhões. Inicialmente, o fundo será administrado pelo Banco Mundial.

Embora esse seja um passo significativo, é preciso cautela na celebração. Já se passaram pouco mais de duas semanas desde que o anúncio foi feito, em um movimento que tem se tornado tradição nas últimas COPs de começar com um tom positivo – especialmente em um evento como o deste ano, cercado de ceticismo. Agora que a poeira baixou e a euforia perdeu força, é hora de entender o que o fundo de perdas e danos, como anunciado no primeiro dia da COP 28, realmente significa.

Primeiramente, é preciso entender a diferença entre mitigação, adaptação e perdas e danos. “Mitigação é aquilo que fazemos para cortar as emissões de gases do efeito estufa e, com isso, minimizar o impacto daquilo que nós seres humanos temos causado. Adaptação são as ações que podem ser tomadas para se preparar para lidar com os impactos das mudanças climáticas, sejam eles advindos de eventos extremos ou de eventos graduais, como o aumento dos níveis dos oceanos. Já as perdas e danos se referem àqueles impactos que não se podem mitigar ou para os quais é impossível se preparar”, explica Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima.

Ela explica que enquanto adaptação e mitigação são temas basilares quando se trata de financiamento climático no âmbito do Acordo de Paris, o tema de perdas e danos aparece de maneira muito sutil. “Os países desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos, sempre tiveram muita resistência ao tratar do tema, falar de perdas e danos significa reconhecer responsabilidade, algo que não querem fazer. Por isso, os textos referentes a perdas e danos sempre incluem uma ressalva de que não se trata de indenizações ou compensações”, diz Herschmann.

Além disso, segundo a especialista, enquanto mitigação e adaptação podem envolver atividades com investimento e retorno econômico, o mesmo não vale quando se trata de perdas e danos. Para Avinash Persaud, enviado especial para finanças da primeira-ministra de Barbados Mia Mottley e um dos criadores da Iniciativa Bridgetown, plano liderado pelo país para reformar o sistema financeiro global, deveria ser informado de onde sairá a verba daqui para frente para o fundo de perdas e danos, algo que ainda não está claro.

“O setor privado deveria ter uma participação maior no financiamento de adaptação e mitigação, já que são instâncias que podem gerar lucro. Dessa forma, os governos e setores públicos em geral poderiam focar em perdas e danos, já que não existem receitas relacionadas a eles”, defende Persaud. Ele diz que, atualmente, as perdas e danos causados globalmente pela crise climática custam cerca de US$150 bilhões ao ano, mas que esse número poderia chegar a 350 bilhões caso não se invista o suficiente em adaptação e mitigação.

“O fundo de perdas e danos é algo difícil de ser financiado, porque é uma conta que não fecha, e que só tende a aumentar com o tempo”, diz Herschmann. Atualmente, a estimativa é de que os valores prometidos para o fundo correspondem a menos de 0,2% das perdas irreversíveis, sejam elas econômicas ou de outra natureza, que os países em desenvolvimento sofrem anualmente em decorrência da crise do clima.

E essa realidade se torna ainda mais alarmante quando se toma em conta que todas as doações para o novo fundo são feitas de forma voluntária. “Esse é um processo de promessas. Elas geram expectativas, mas não existe no Acordo de Paris um mecanismo de obrigatoriedade ou policiamento. É tudo na base da confiança. E é essa confiança que faz os países se reunirem todos os anos para tratar da crise climática”, explica Hasse.

Quando se olha para outras promessas de financiamento climático, o cenário é pouco promissor. O objetivo assumido em 2009 de destinar US$ 100 bilhões ao ano até 2020 para o combate à crise climática, por exemplo, só foi alcançado pela primeira vez em 2022, com dois anos de atraso.

“Hoje em dia, o financiamento climático acontece de uma forma muito pouco transparente”, explica Herschmann. Ela afirma que o próprio entendimento do que é financiamento climático é algo ainda em disputa: “Cada país entende uma coisa”, diz. Assim como outros especialistas, ela acredita que a COP 29 será a COP do financiamento. “A expectativa é de que a próxima conferência do clima chegue a um consenso sobre a Nova Meta Quantificada Coletiva (NCQG na sigla em inglês), e que ela não seja uma meta única, mas sim um piso, com submetas para cada área, como mitigação, transição energética e perdas e danos”, diz. A antiga NCQG era justamente os US$ 100 bilhões prometidos em Paris.

Embora os detalhes de como vai funcionar o fundo tenham sido aprovados no primeiro dia da COP 28, ele só será operacionalizado a partir de 2024. “As questões mais difíceis relacionadas com o funcionamento deste novo Fundo serão determinadas no próximo ano pelo seu Conselho – que será composto por 26 membros – 14 de países em desenvolvimento e 12 de países desenvolvidos. As nomeações serão encerradas no final de dezembro de 2023, com a primeira reunião prevista para o final de janeiro de 2024”, explica Sasha Jattansingh, especialista em perdas e danos e adaptação na Climate Analytics Caribbean.

Muitos detalhes ainda precisam ser definidos. Mas, algo que já se sabe é que qualquer país em desenvolvimento terá direito a acessar o fundo, independente do seu tamanho ou da sua economia. Isso significa que países como China, Índia e Brasil também fazem parte desse grupo – embora a linguagem usada pelo fundo também “convide” esses países a contribuírem com o fundo. Ao mesmo tempo, o texto também deixa claro que os países mais vulneráveis terão prioridade no acesso.

“O Brasil é um país com enormes desigualdades e, segundo alguns estudos, é um dos mais vulneráveis às mudanças climáticas. Ao mesmo tempo, somos uma das maiores economias do mundo”, diz Herschmann. “Da forma como as regras foram definidas, o Brasil poderia tanto acessar o fundo como ser um contribuinte, o que poderia ser uma sinalização enquanto liderança climática. Mas acredito que ambas as ações sejam pouco prováveis”, afirma

Para a especialista, apesar do hype inicial que levou às doações feitas ao longo das duas semanas da COP 28, o futuro do fundo de perdas e danos segue incerto. “Não ficou claro se vai haver um mecanismo de reabastecimento desse financiamento. Por si só, as promessas feitas até agora ficam muito abaixo do necessário, e esse sistema totalmente dependente no voluntarismo de cada país não ajuda. À medida que o preço a se pagar pelas perdas e danos aumenta, vai ser um desafio manter o dinheiro fluindo.”

(*) Reportagem produzida com apoio do programa de Transições Energéticas Justas do Climate Tracker

Texto: Um só Planeta

“É difícil acompanhar e cobrar uma prestação de contas, porque a gente nunca sabe, por exemplo, se o dinheiro prometido era 100% novo, ou se será combinado com promessas feitas para endereçar outras questões, como pobreza e fome. Além disso, nunca fica claro, como agora no caso desse novo fundo, como e quando essa verba será repassada”, acrescenta a especialista do Observatório do Clima.