Ferrogrão, o projeto de ferrovia com mais de 900 quilômetros de extensão a ser construída em plena Amazônia, tem como objetivo conectar Sinop (MT), o maior produtor de grãos no país, ao porto de Miritituba (PA), consolidando o corredor de exportação do Brasil pelo Arco Norte. Com a promessa de reduzir custos e emissões de gases poluentes, a obra também eleva riscos ao meio ambiente e aos povos tradicionais. Um Só Planeta ouviu ambientalistas, indígenas e os setores público e privado para entender o estágio atual do projeto, quais seus benefícios e prejuízos em termos econômicos e socioambientais e se existem alternativas viáveis a ele.
Uma Medida Provisória (MP) autorizando a desafetação, ato pelo qual se desfaz um vínculo jurídico, de cerca de 800 hectares do Parque Nacional do Jamanxim (PA) — equivalente a 0,054% de sua área total — para a implantação da Ferrogrão foi considerada inconstitucional em 2020 pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão paralisou o projeto. Segundo autores do pedido, encabeçado pelo PSOL, a Constituição exige que a alteração de limites de parques de proteção ambiental integral seja feita por projeto de lei e não por MP.
Após a suspensão de mais de dois anos, em 31 de maio de 2023, Moraes autorizou a retomada da análise dos estudos e dos processos administrativos relacionados à construção da ferrovia. O ministro condicionou “qualquer execução à autorização judicial desta Corte, para nova análise de todas as condicionantes legais, em especial as sócio-ambientais”. Moraes não se posicionou sobre a redução do Parque do Jamanxim, questão que deve ser analisada pelo Centro de Soluções Alternativas de Litígios (Cesal), do STF, até o final de julho.
O que dizem os críticos ao projeto?
Os impactos em Terras Indígenas (TIs), parques de conservação e a aceleração da exploração econômica da região a partir da execução do projeto atual da ferrovia não compensariam seus benefícios, afirmam os críticos ao projeto. Para ambientalistas e indígenas, a decisão do STF pela retomada da análise é importante para que os povos afetados pelas obras sejam ouvidos, em cumprimento ao direito à consulta prévia, livre e informada, previsto na Convenção 169 da OIT, acordo internacional do qual o Brasil é signatário.
O estudo de impacto ambiental (EIA) da Ferrogrão apresentado durante o governo de Jair Bolsonaro, em novembro de 2020, considerou apenas 2 TIs dentro da área de influência do empreendimento: Praia do Mangue, a 5 km da linha férrea, e Praia do Índio, a 7 km, ambas habitadas pelos Munduruku e localizadas no município de Itaituba (PA), próximo à estação final da ferrovia. No entanto, levantamento divulgado em julho pela InfoAmazonia, com consultoria do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), considera uma área de influência de 50 km a partir do empreendimento. Dessa forma, a obra afetaria 6 TIs e 17 unidades de conservação.
“A ANTT [Agência Nacional de Transportes Terrestres] está usando um documento que diz que nós fomos consultados. Negativo”, contesta Mydjere Kayapó, vice-presidente do Instituto Kabu, organização indígena que atua nas TIs Baú e Menkragnoti, do povo Mẽbêngôkre-Kayapó, entre as mais impactadas pela Ferrogrão, de acordo com a pesquisa. “A consulta só pode acontecer se a empresa e o governo forem nas nossas aldeias. É isso que tem que acontecer.”
Além dos Kayapó, lideranças dos povos indígenas Boe-Bororo, Enawenê-Nawê, Guajajara, Ikpeng, Xavante, Kawaiwete, Kayapó, Munduruku, Nambikwara e Terena reivindicam o processo de consulta livre, prévia e informada em carta assinada em maio deste ano, junto a movimentos sociais e universidades públicas.
A decisão do STF é vista como importante também para que os impactos de um projeto que começou a ser pensado há uma década sejam atualizados. Mydjere aponta que a iniciativa vai afetar os indígenas, seus territórios e o bioma amazônico, incluindo rios, igarapés e florestas. “A criação da ferrovia vai trazer mais plantação de soja dentro e perto do nosso território, além de incentivar os garimpeiros, madeireiros, grileiros e fazendeiros a invadirem nosso território e pegarem as nossas riquezas, que são os rios e a mata.”
Mariel Nakane, analista do Instituto Socioambiental (ISA), concorda que um dos impactos será o aumento do desmatamento na região. Isso porque a redução do custo do frete pela ferrovia deve incentivar a ocupação de áreas no Mato Grosso e no Pará para plantações de soja. Municípios paraenses cortados pela BR-163, como Novo Progresso, já têm os piores índices de crimes ambientais da Amazônia, incluindo grilagem, garimpo e queimadas, o que deve se agravar com a instalação da ferrovia, segundo ela.
O incentivo à ampliação da produção agrícola no Mato Grosso pela Ferrogrão pode levar ao desmatamento de cerca de 2 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa em quase 40 municípios, de acordo com análise dos pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio), publicada em 2020. Segundo o estudo, o custo ambiental decorrente da perda de vegetação corresponderia a cerca de 60% do custo bilionário previsto para a implementação da ferrovia.
“Não tem poder público atuando nessa região, onde há conflitos de terras, invasão de unidades de conservação e de TIs para roubo de madeira e garimpo. Qualquer empreendimento feito ali vai aquecer essa dinâmica”, diz ela. Outra consequência, segundo Mariel, será a criação de mais estações de transbordo, podendo chegar a territórios Munduruku e afetar ainda mais a pesca desses povos ao longo do rio Tapajós. O curso d’água também poderá sofrer alterações para se adaptar às embarcações pesadas.
Segundo a especialista, a rota de escoamento pelo Tapajós é recente, existe há uma década, mas tem mudado drasticamente o escoamento da soja e a produção no Mato Grosso. A exportação de grãos por portos paraenses saltou de 5% em 2014 para cerca de 30% atualmente, de acordo com dados do IMEA (Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária). “A curva de produção subiu muito neste período. Estamos acabando com a possibilidade de resguardar o que ainda existe de vegetação nativa no Mato Grosso, porque a soja está ocupando tudo”, afirma ela, observando também que o governo Lula, eleito com a promessa de atingir o desmatamento zero na Amazônia, precisa alinhar suas diretrizes aos projetos que executa.
“Não é questão de colocar a Ferrogrão na cruz, mas de problematizar toda a questão, que é complexa e envolve a consolidação e aceleração de problemas já existentes na região”, diz Mariel. Ela defende que, caso o projeto seja feito, que isso aconteça respeitando as condicionantes socioambientais, em um equilíbrio entre os interesses das populações afetadas e dos produtores rurais, ainda que a construção demore mais por isso.
Sobre as condicionantes ambientais que deveriam ser aplicadas para discutir o projeto, além da escuta dos povos afetados, o ISA elenca o ordenamento territorial e a consolidação das áreas protegidas na região do Corredor Logístico, incluindo a homologação de TIs; melhoria nos serviços públicos, que são precários e passarão a atender mais gente a partir da obra; e prioridade aos municípios afetados no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).
O que diz quem é a favor da Ferrogrão?
O setor empresarial e parte do setor público temem que a demora na aprovação da Ferrogrão cause prejuízos ao agronegócio e ao meio ambiente. Segundo seus defensores, o traçado da ferrovia deve correr paralelo à BR-163, evitando que mais trechos sejam desmatados, além de reduzir acidentes e a emissão de CO2 na atmosfera com o transporte de carga por trilhos.
De acordo com o Ministério dos Transportes, o empreendimento deve gerar 373 mil empregos diretos e indiretos; uma economia de R$ 6,1 bilhões de externalidades negativas da rodovia, incluindo emissões de CO2, acidentes e congestionamentos; arrecadação tributária de R$ 625 milhões com o investimento e de R$ 5,3 bilhões com a operação; redução do custo do frete em R$ 19,2 bilhões em relação à rodovia BR-163; além de ampliação de ações de fiscalização contra expansão ilegal da fronteira agrícola.
“Segundo os estudos da ANTT, o frete rodoviário do Mato Grosso para o porto de Santos (SP) é de aproximadamente R$ 315/t. Do Mato Grosso para Itaituba (PA) por rodovia e, posteriormente, por hidrovia de Itaituba para Vila do Conde (PA), o frete é de aproximadamente R$ 221/t”, comparou a pasta.
O projeto, muito aguardado pelo setor do agronegócio, faz parte do Programa de Parceria de Investimentos (PPI), criado em 2016, no âmbito da Presidência da República, para ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada. Marcus Cavalcanti, secretário especial do PPI, definiu a decisão mais recente do STF como “extremamente positiva, pois diversas atividades que estavam paralisadas podem ser agora retomadas”, mas reclamou do atraso no início das obras. “Se o processo da Ferrogrão tivesse seguido seu curso normal, com o contrato de concessão assinado no segundo trimestre de 2021, conforme previsto, hoje teríamos a obra da ferrovia já bastante adiantada.”
Sobre o risco de uma maior exploração econômica na Amazônia, incluindo garimpo ilegal, o secretário argumenta que a implantação da ferrovia “acaba sendo um inibidor dessas atividades ilegais, pois, diferentemente de uma rodovia, ela não pode ser acessada em qualquer ponto, somente em terminais de carga que geralmente são instalados e operados pelos próprios clientes da ferrovia”. Com relação ao desmatamento, “a tendência é a de obtenção de uma maior produtividade no campo, com maior produção em termos de tonelada/hectare”, diz Marcus. “Muitas áreas novas de produção agrícola acabam sendo implantadas em antigas áreas de pecuária extensiva, já degradadas, visto que a pecuária moderna cada vez necessita de menores áreas para o seu desenvolvimento.”
O secretário argumenta ainda que as principais tradings de grãos para exportação já estão presentes com os seus armazéns e terminais de transbordo no Porto de Miritituba e em outras áreas próximas, e possuem planos de expansão. “O volume de exportação aumentará, com ou sem a ferrovia, em especial agora que a BR-163 foi totalmente asfaltada e encontra-se sob concessão para a sua manutenção”, diz.
Sobre a redução de emissão de CO2 com o tráfego concentrado na ferrovia, o PPI vê potencial de que o empreendimento atenda premissas da Climate Bonds Initiative (CBI), permitindo futuras emissões de títulos verdes via instrumentos de crédito. “Outras formas de compensação deverão ser estabelecidas na fase de licenciamento ambiental.”
Outra vantagem da ferrovia, segundo o PPI, seria a redução no preço de itens de consumo interno. Isso porque, no sentido de importação, a ferrovia deverá transportar combustíveis e fertilizantes a um custo mais baixo, que pode ser repassado pelo agronegócio ao mercado interno. Representante dos produtores de grãos no Mato Grosso e no Brasil, a Aprosoja (Associação dos Produtores de Soja e Milho) não atendeu aos pedidos de entrevista.
E o Parque do Jamanxim?
Segundo Marcus Cavalcanti, do PPI, a decisão do STF é uma oportunidade para rever a MP por meio da qual foi feita a desafetação da área alcançada pela ferrovia no Parque do Jamanxim. O setor do agronegócio critica a paralisação do projeto por essa questão, entendida como uma manobra jurídica, já que uma faixa muito pequena do parque seria atravessada, o que poderia ser resolvido por uma compensação ambiental.
Mariel Nakane, do ISA, admite que a área de 800 hectares que daria lugar à ferrovia é pequena e passível de compensação. O preocupante, segundo ela, é que a aprovação da perda da área por uma MP criaria um precedente jurídico perigoso, podendo levar à desafetação de outras unidades de conservação sem seguir o rito de aprovação legal no Congresso.
“A Constituição estabelece claramente que não se pode modificar qualquer unidade de conservação a não ser através de um projeto de lei. MP, do ponto de vista constitucional, não é um projeto de lei”, explica Melillo Dinis, advogado do Instituto Kabu e autor da ação na Justiça, junto ao PSOL. “Mais do que uma questão somente ambiental, há aí uma questão jurídica, social e cultural que não pode ser esquecida na elaboração de qualquer projeto pelo Brasil, mas, especialmente, na região amazônica. Não é permitido que se faça qualquer projeto diante da emergência climática que afete a Amazônia sem estabelecer todos os elementos condicionantes e abrir um amplo debate público.”
O que diz o governo?
Em nota à reportagem, o Ministério dos Transportes declarou que está trabalhando junto à Infra S.A., a antiga Empresa de Planejamento e Logística (EPL), responsável pela obtenção do licenciamento ambiental, e a ANTT em um “diagnóstico sobre as necessidades de atualização e de complementação dos estudos realizados, com priorização para as questões socioambientais.”
Segundo a pasta, por determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministério “atua para que todos os seus empreendimentos de transportes tenham sustentabilidade socioambiental, respeitem a legislação vigente e, ao mesmo tempo, atendam às demandas das comunidades locais”, diz a nota. “A pasta vai discutir as questões ambientais necessárias, que precisam ser enfrentadas por todas as áreas interessadas do Governo Federal, como os ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e o dos Povos Indígenas, e da sociedade brasileira.”
Em nota, o Ministério do Meio Ambiente se limitou a dizer que “os estudos de impacto ambiental apresentados pelo empreendedor foram devolvidos pelo Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] em março de 2021 e as adequações solicitadas pela equipe de licenciamento não foram apresentadas até o momento”. O Ministério dos Povos Indígenas não respondeu aos pedidos de entrevista.
Há alternativas à Ferrogrão?
Um ponto é consenso entre ambientalistas e os setores público e privado: a rota de exportação de grãos do Mato Grosso pelo Pará, estabelecida na última década pela construção de portos privados em Itaituba por grandes tradings internacionais, como Bunge, Cargill, Amaggi e Dreyfus, deve ser expandida com ou sem a implantação da ferrovia.
As vias alternativas de escoamento pelo Pará são vistas, portanto, como coexistentes com a rota e não necessariamente substitutas a ela. Para críticos do projeto, a questão é que sejam levantadas as condicionantes ambientais necessárias para saber se é possível ou não construir a ferrovia com menos impacto e maior compensação.
As principais opções alternativas à ferrogrão e à BR-163 são a Malha Norte, operada pela Rumo Logística, que pretende estender a ferrovia de Rondonópolis até Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, levando a carga até o Porto de Santos, em São Paulo; a construção da FICO (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste), saindo de Mara Rosa (GO) até Lucas do Rio Verde (MT), já foi iniciada, podendo levar a carga via Ferrovia Norte-Sul (FNS) até Santos ou Itaqui (MA), e futuramente até Ilhéus (BA), pela Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL), que deverá conectar-se à Ferrovia Norte-Sul em Figueirópolis (TO) ou diretamente em Mara Rosa, sem passar pela FNS. Há ainda escoamento de produção agrícola de Mato Grosso até Rondônia pelo rio Madeira.
Para o setor privado, a Ferrogrão continua sendo uma opção mais vantajosa economicamente. “Hoje, mais de 70% da safra mato-grossense é escoada pelos portos de Santos/SP e de Paranaguá/PR, a mais de dois mil quilômetros da origem”, argumenta o PPI. “Esse cenário mostra a relevância do projeto dentro do sistema logístico de cargas do país, sendo um diferencial para a sua atratividade junto a potenciais investidores.”
Claudio Frischtak, da Inter B Consultoria, defende que os outros projetos trariam maior retorno para a sociedade e com impacto logístico mais favorável, seja no âmbito do Arco Norte, seja por alternativas Oeste-Leste ou ainda ampliação dos corredores Norte-Sul. Em Análise de Sustentabilidade, publicada em junho deste ano, o especialista afirma que “nenhuma dessas alternativas traz danos socioambientais ao bioma mais sensível do país, com riscos reputacionais de primeira ordem.”
Segundo o documento, há soluções ferroviárias, rodoviárias, rodoferroviárias e rodo-hidroviárias que permitem o acesso aos portos do Arco Norte em bases competitivas. “É fundamental planejar soluções adequadas e priorizar projetos de melhor qualidade. A Ferrogrão não é um deles”. O especialista diz que o governo e o agronegócio subestimam não apenas os impactos socioambientais, como também custos e prazos de execução, superestimando as taxas de retorno.
Texto: Martina Medina