Nas últimas décadas, com o constante desenvolvimento tecnológico, cada vez mais dados pessoais são gerados e novas formas de relacioná-los são desenvolvidas. Consequentemente, não há como imaginar um cenário futuro em que se elimine o tratamento de dados pessoais ou em que os bens digitais não componham, em alguma medida, o patrimônio dos indivíduos. Pelo contrário, o tratamento de dados tende a aumentar cada vez mais para diversos âmbitos, cenários e aspectos, da mesma forma que diferentes modalidades de bens digitais surgem e passam a integrar a vida dos sujeitos.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) — Lei nº 13.709/2018 — foi desenvolvida com o objetivo primordial de proteger os direitos fundamentais de privacidade e liberdade dos titulares dos dados pessoais. No entanto, o falecimento do seu titular levanta questionamentos importantes sobre como se dá a transmissão e o acesso a essas informações, ao mesmo tempo em que impõe desafios sobre a transmissibilidade dos bens digitais.
Os bens digitais podem ser compreendidos, atualmente, como todos os bens incorpóreos presentes no mundo digital, os quais podem ou não possuir um conteúdo econômico. Nessa perspectiva, é possível classificá-los a partir da distinção entre bens digitais patrimoniais (que possuem conteúdo econômico, como é o caso das criptomoedas) e bens digitais existenciais (que não possuem tal conteúdo, como na hipótese dos perfis pessoais em redes sociais, utilizados sem finalidade econômica). Existem, ainda, os bens digitais de caráter híbrido, ou seja, nos quais são identificadas características simultaneamente patrimoniais e existenciais. Enquanto os bens digitais que possuem caráter patrimonial compõem a herança do seu titular, subsistem dificuldades importantes na avaliação sobre se e como os bens digitais existenciais e os bens digitais híbridos podem integrar o acervo hereditário, especialmente em virtude da proteção aos direitos de personalidade do falecido e de terceiros.
Tais questionamentos decorrem, em grande medida, da circunstância de que há uma lacuna na legislação em relação ao tratamento de dados pessoais de titulares falecidos — e, inclusive, se tais informações são consideradas dados pessoais pela conceituação da Lei. Para sanar este lapso, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) emitiu a Nota Técnica nº 3/2023/CGF/ANPD posicionando-se no sentido de que a incidência da LGPD se dá somente no âmbito do tratamento de dados pessoais de pessoas naturais, ou seja, vivas — já que, de acordo com o artigo 6º, do Código Civil, a existência da pessoa natural termina com a morte. Sendo assim, “a proteção post mortem dos direitos da personalidade dos titulares de dados pessoais não estaria abarcada pela LGPD, pois não há mais desenvolvimento de personalidade”.
Entende-se, pois, com base no posicionamento da ANPD, que os dados relativos a uma pessoa falecida não constituem dados pessoais para fins da Lei Geral de Proteção de Dados e, portanto, não estão sujeitos ao seu nível de proteção. Contudo, não se pode ignorar o fato de que tais dados, via de regra, continuarão existindo nas bases de dados e, apesar de não estarem submetidos aos princípios específicos elencados pela LGPD, ainda demandam de uma garantia de privacidade, sobretudo considerando possíveis repercussões que podem decorrer de seu tratamento por terceiros.
Apesar da ausência de proteção via LGPD, a tutela dos direitos vinculados aos dados pessoais pode ocorrer via disciplina relacionada aos direitos de personalidade, considerando o disposto no artigo 12, parágrafo único, de acordo com o qual, em se tratando de pessoa falecida, é atribuída a legitimação para exigir que cesse a ameaça ou a lesão a direito da personalidade, bem como para reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, ao cônjuge sobrevivente, ou a qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
A título ilustrativo, na União Europeia, apesar de o Regulamento Geral de Proteção de Dados — General Data Protection Regulation (GDPR) — prever que as suas disposições não se aplicam aos dados pessoais de pessoas falecidas, permite que os Estados Membros estabeleçam suas próprias regras a respeito do assunto. Na Itália, por exemplo, somente entidades com interesse adquirido ou que atuem para proteger o titular falecido dos dados podem exercer os direitos conferidos ao titular pelo GDPR. Da mesma forma, também é reconhecido aos herdeiros legais o direito de acessar os dados pessoais de seus parentes falecidos. Na França, qualquer pessoa pode definir, em testamento, diretrizes gerais ou específicas sobre o armazenamento, compartilhamento ou a eliminação de seus dados pessoais após a sua morte. Na ausência de qualquer disposição, os herdeiros da pessoa falecida podem exercer os direitos previstos em lei.
No Brasil, diante da ausência de uma regulação jurídica específica, subsiste a discussão quanto à transmissibilidade ou não dos bens digitais de caráter existencial e híbrido, existindo, apesar disso, caminhos para viabilizar maior previsibilidade quanto à futura transmissão do patrimônio digital. Uma primeira medida pode ser realizada pelo titular das contas em redes sociais diretamente nas plataformas, com a possibilidade, por exemplo, de indicação dos chamados “contatos herdeiros”, com a especificação de qual será a destinação dos perfis em caso de falecimento (como é possibilitado, por exemplo, pelo Facebook, quanto ao perfil na rede, e pela Apple, em relação ao compartilhamento dos dados dos dispositivos).
Além disso, tem-se a possibilidade de elaboração de planejamento sucessório, com a prévia especificação e organização da futura destinação do patrimônio digital, sendo possível a utilização de diferentes instrumentos jurídicos para a consecução dessa finalidade. A elaboração de testamento, pelo titular do patrimônio, regulando a forma de acesso e de transmissão aos bens digitais pode ser uma medida interessante uma vez que pode ser elaborado por meio de escritura pública, em um tabelionato de notas, ou via documento particular, desde que cumpridas, igualmente, determinadas formalidades previstas na legislação civil.
É possível, ainda, a utilização do chamado codicilo, que corresponde a um escrito particular, sem maiores formalidades, que deve ser datado e assinado por aquele que o elabora, voltado a disposições de última vontade e à transmissão de “esmolas de pouca monta”, conforme dispõe o próprio Código Civil. A depender da extensão do patrimônio digital e do seu conteúdo, o codicilo pode representar mais um instrumento, somado às medidas anteriormente indicadas, para a proteção almejada.
De qualquer modo, a análise jurídica completa sobre o acervo patrimonial — composto pelos bens digitais e não digitais — apresenta-se como necessária para uma adequada avaliação sobre os melhores instrumentos para proteção do patrimônio e para a garantia da maior segurança possível ao seu titular, especialmente porque existem outros desafios relacionados ao tema, como a administração de tais bens no âmbito de um procedimento de inventário e até mesmo a sua avaliação pecuniária para fins de partilha do correspondente financeiro entre os herdeiros.
Texto: Caroline Pomjé e Francesca Balestrin