Empresas apostam em usinas eólicas, placas solares flutuantes e na força das ondas para gerar energia renovável nos oceanos e planejar um futuro sem combustíveis fósseis
O show nem tem data marcada, mas a fila de gente interessada não para de crescer. Como se quisessem garantir o melhor lugar colado ao palco, empreendedores de todos os portes foram ao Ibama atrás de licenciamento ambiental para seus parques de energia eólica no mar. A última a se juntar ao grupo foi a Petrobras, interessada em dez áreas e decidida a se tornar a maior operadora do setor no país. A entrada da estatal elevou para 91 o número total de projetos previstos. Juntos, os parques eólicos marítimos planejados mais do que dobrariam a capacidade de geração elétrica no Brasil, um salto tão espetacular quanto utópico.
A eletricidade que os brasileiros usam hoje é gerada sobretudo por hidrelétricas, termelétricas e usinas eólicas terrestres. Nem um giga vem do vento no mar. A julgar pelo entusiasmo das geradoras e pelo que acontece mundo afora, tem tudo para vir de lá, mas não dessa forma. Os motivos são diversos: vários projetos miram áreas idênticas do mapa e outros são próximos de locais turísticos, como Jericoacoara, no Ceará, e provavelmente não passariam pelo crivo do Ibama. Além disso, não existe ainda uma lei para disciplinar como será essa exploração, se por licitação ou outorga. Para completar, a potência proposta no papel pelas usinas ultrapassa e muito o crescimento da economia brasileira: elevaria a 219 GW a capacidade instalada ante os atuais 190 GW, que já dão conta da demanda.
Mesmo assim, a história brasileira de geração eólica e outras fontes renováveis no mar já começou a ser escrita. Gigantes globais do setor e que não atuam no Brasil, como a Corio, com sede em Londres, a espanhola Blue Float e o fundo dinarmaquês Copenhagen Offshore Partners, estão entre as interessadas. “Temos tradição em operações marítimas que podem trazer sinergias relevantes aos projetos. Como detemos muito conhecimento nesse ambiente, vamos ser a offshore dos ventos”, declarou em outubro o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates. A indústria brasileira precisará construir, do zero, um novo mercado que já movimenta bilhões no mundo todo.
“Todos aguardam os leilões. E a Petrobras, que estava fora do jogo até pouco tempo, será a primeira do país em energia renovável”, diz Maurício Tolmasquim, diretor de Transição Energética e Sustentabilidade da estatal. Entrar no jogo é questão de sobrevivência. Como observou o diretor-executivo da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol, “nenhuma empresa de energia passará incólume pela transição energética para energia limpa. Todas precisam considerar como reagir. Não fazer nada simplesmente não é uma opção”.
Potencial offshore
Sem parques eólicos no mar, mas com ventos frequentes e fortes, o Brasil sempre impressionou investidores estrangeiros. “Lembro que os europeus vinham aqui em 2009, quando começou a energia eólica em terra, e não acreditavam nas nossas medições, que superavam as melhores referências mundiais”, diz Lucas Cardoso Sanchez, diretor de Energias Renováveis da CTG – subsidiária da chinesa Three Gorges Corporation. A CTG está construindo no Brasil o maior parque eólico fora da China, em terra. Tem quase 650 MW de potência instalada e fica pronto em dezembro de 2025, na Paraíba. Depois da Eletrobras, que ainda não tem planos para explorar o potencial da energia verde offshore, a CTG é a maior geradora de energia renovável no Brasil.
Ainda que os ventos no mar sejam melhores e que o traçado dos parques menos complexo, o custo em terra é menos da metade do offshore, segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética. “Temos 25 GW instalados e poderíamos dobrar com bons projetos. Na Europa, não sobrou muito território atraente para parques terrestres”, diz Sanchez. Então, por que tanta gente querendo ir para o mar no Brasil? A costa é enorme e o vento é melhor do que em terra. Além disso, na busca por eficiência, os aerogeradores estão cada vez maiores, e transportá-los por estrada está se tornando inviável.
“O mapa eólico da nossa costa revela áreas boas e outras nem tanto. E essas não tão boas são comparáveis às exploradas na Europa”, diz Arnaldo dos Santos Júnior, consultor técnico da Empresa de Pesquisa Energética. A EPE estima a geração de eletricidade com vento em áreas próximas ao litoral em 700 GW. Para se ter uma ideia, o potencial hídrico brasileiro é de 172 GW, dos quais mais de 60% já foram usados. Boa parte do que sobrou está na bacia do Amazonas, o que complica seguir investindo em hidrelétricas. São elas que hoje garantem a produção de 90% da eletricidade brasileira. Apesar de também impactarem o meio ambiente, são uma matriz energética limpíssima se comparadas a uma termelétrica a carvão, comum em países europeus. No mundo, o percentual de eletricidade limpa é de 12%.
No caso da energia eólica no mar, teremos de começar pela experiência internacional. Depois da China, Reino Unido e Alemanha são os principais mercados da área. Berço da tecnologia, a Europa se voltou para o território líquido por falta de espaço em terra. Data do início dos anos 1990 seu primeiro parque eólico marítimo, ao sul da Dinamarca. Rafael Vasconcelos, pesquisador sênior em Eólica Offshore da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, foi ver de perto os parques no Mar do Norte e pesquisou da construção aos impactos. Também testemunhou a resistência dos pescadores franceses: em maio de 2021, eles cercaram com 70 pequenos barcos uma embarcação gigante com turbinas e impediram a construção de um parque que atrapalharia o negócio deles. O pesquisador até escalou um aerogerador na Dinamarca, usando escadas de emergência pouco recomendadas para quem tem fobia de altura.
O trabalho de Vasconcelos, intitulado Mapeamento de modelos decisórios ambientais aplicados na Europa para empreendimentos eólicos offshore, ajudou o Ibama a criar o primeiro termo de referência para licenciamento de usinas eólicas no mar. Um dos coordenadores da diretoria de Licenciamento Ambiental do órgão, Eduardo Wagner informa que ainda falta um estudo espacial do mar no Brasil, a cargo de Marinha, do Ministério do Meio Ambiente e outros ministérios. “Na Europa, todos os países fazem esse planejamento, importante para evitar problemas com pesca e impacto visual. Na Escócia, por exemplo, a distância mínima permitida do litoral leva em conta a curvatura da Terra. São 32 quilômetros para ninguém enxergar o aerogerador da costa”, explica Wagner. “Um cata-vento a três quilômetros de Jericoacoara é inviável.”
Na década de 1970, ecologistas marchavam em Paris erguendo cartazes e cata-ventos cor-de-rosa pelo fim da energia nuclear. Não imaginavam que o cata-vento em seus quintais poderia perturbar com o ruído, atrapalhar a paisagem e interferir na vida selvagem. Emílio La Rovere, professor do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, um dos maiores centros de ensino e pesquisa de engenharia da América Latina, e conselheiro científico de Um Só Planeta, testemunhou os protestos na capital francesa, onde estudou. Desde então, acompanha a evolução do setor no Brasil e no mundo. Nunca esqueceu como, em 1988, a inauguração de uma usina experimental de energia eólica em Fernando de Noronha virou um espetáculo macabro. Gaivotas abatidas pelas hélices caíam ao lado do cata-vento em terra. De lá para cá, muita coisa mudou. “Os custos ficaram menores e as pás maiores, e precisam de menos velocidade para gerar mais energia. No mar, o problema paisagístico pode ficar ainda menor. Há empresas pedindo autorização para pintar as hélices da cor dos navios da Marinha porque isso ajuda a camuflar os aerogeradores na paisagem”, ressalta La Rovere.Com níveis variáveis de compromisso, países, empresas e sociedade civil buscam soluções para reduzir ou anular o uso de combustíveis fósseis, a fonte de gases que alteram o clima e ameaçam a vida no planeta. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, reclama que nem todos os líderes fazem o suficiente, tanto que seguem investindo na expansão da indústria de óleo e gás. Para compensar a alta no preço da energia decorrente da invasão da Ucrânia, os subsídios para o petróleo atingiram nível recorde em 2022: US$ 7 trilhões, segundo o Fundo Monetário Internacional. O recado de Guterres vai também para petrolíferas que querem ampliar suas reservas de petróleo e estão atrasadas na transição energética. É o caso da Petrobras, que até este ano sequer tinha uma diretoria dedicada a energia renovável.
Preocupada com a questão, a União Europeia é uma das mais empenhadas na transição, e foi uma das poucas que teve representantes no Climate Ambition Summit, organizado pela ONU em Nova York e para o qual nem Estados Unidos nem China foram convidados. Os chineses figuram entre os maiores poluidores do planeta e também produzem um terço de toda a eletricidade de fonte eólica offshore do mundo. São os mais agressivos na expansão da energia renovável: em 2022, a China acrescentou à sua matriz energética mais de três vezes o que a Europa conseguiu com todas as suas iniciativas para alcançar uma economia zero carbono até 2050. O bloco europeu pretende elevar a potência instalada em parques eólicos no Mar do Norte dos atuais 5 GW para 300 GW, adotando leis que facilitam sua instalação.
O vento é um elemento muito menos estudado do que a temperatura do planeta, registrada há milênios, e, por natureza, parece o retrato das incertezas. Um artigo publicado pela revista digital da Yale School of the Environment questiona se a mudança climática poderá desacelerar os ventos do planeta. Com polos menos frios, as massas de ar se deslocariam com menos força – é a diferença de pressão, devida principalmente a diferenças de temperatura, que faz surgir o vento. Ano passado, parte da Europa viveu uma “seca de vento” inédita. No Reino Unido, chegou a reduzir a produção de energia no Mar do Norte. O relatório do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental para Mudança Climática) aponta que até 2100 pode haver redução de 10% na velocidade média dos ventos no planeta, o que diminuiria em 30% a produção de energia.
A intermitência das fontes renováveis sempre foi um desafio. “Lidamos com ciclos mais curtos e mais longos, ventos mais fortes e mais fracos, faz parte”, diz o executivo da CTG, para quem o maior competidor da energia eólica em terra não é sua correlata no mar, mas as usinas solares, cada vez mais baratas. A desvantagem da solar é não trabalhar de noite. Por causa dessa oscilação é comum encontrar projetos que combinam várias fontes. Os europeus testam usinas para aproveitar a energia das ondas, das marés, do sol em painéis fotovoltaicos flutuantes e até para transformar algas em biocombustíveis.
Dona de um projeto pioneiro de painéis fotovoltaicos flutuantes no Mar do Norte, a holandesa Oceans of Energy é a única a fazer isso em águas tão turbulentas. Visto do alto, o parque solar, de área equivalente a uma vez e meia um campo de futebol, lembra um delicado tapete de vidro. Mas só a aparência é frágil: em fevereiro do ano passado, enfrentou ventos de até 140 km/h e ondas de dez metros por seis dias consecutivos. Foi a tempestade mais forte em 52 anos. “Precisávamos aprender e estar abertos para surpresas, porque o mar tem muitas”, diz um dos informes da empresa.
A Coppe, da UFRJ, vai começar a estudar o mar de Copacabana nas próximas semanas, para instalar uma usina experimental de ondas na Ilha Rasa, a 14 km da praia carioca. Em parceria com a China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) e durante três anos, 30 cientistas irão investigar o comportamento de turbinas eólicas flutuantes em profundidades de 60 a 150 metros, dando sequência a um outro projeto pioneiro de usina de ondas na América Latina que funcionou no porto do Pecém, no Ceará, até 2015. “É necessário ainda muito desenvolvimento para se tornarem competitivas, mas as usinas de ondas também poderão se beneficiar da expansão da energia eólica no mar”, disse Segen Estefen, coordenador do Grupo de Energias Renováveis do Oceano, da Coppe. A plataforma que atende a um projeto acaba servindo para acolher outros, como plantas de hidrogênio verde (leia mais na página 49). Num segundo projeto, também com os chineses, pesquisadores da Coppe irão trabalhar em um parque híbrido com fontes eólica, de onda e solar para reduzir a queima de gás em plataformas de petróleo.
Emissões na mira
Diante da resistência da indústria do petróleo, que continua recebendo trilhões de investimento, há duas importantes frentes de trabalho para virar o jogo para a energia verde: tirar os subsídios dos combustíveis fósseis, como já mencionado, e taxar a emissão de CO2. Assim, queimar diesel, gasolina e carvão ficaria tão caro que todas as tecnologias limpas seriam viabilizadas. Difícil é desestimular o uso de combustíveis fósseis sem causar desequilíbrios econômicos. “O aumento do custo das empresas vai parar nos consumidores, o que gera inflação e pode ter impacto recessivo. Por isso, a taxação de CO2 precisa de políticas públicas complementares para dar certo”, explica o professor La Rovere, da Coppe. Ele integrou uma comissão de especialistas sobre o tema. O grupo concluiu que políticas climáticas precisam ser distributivas e éticas, ou seja, os níveis adequados do preço do carbono devem variar entre os países. A notícia boa é que praticamente um quarto de toda a emissão de CO2 do planeta já sofre taxações, de acordo com o Banco Mundial. A tendência é o ritmo acelerar. O bloco europeu vai impor taxas por emissão de carbono a importações até 2026, pressão que vai atingir fornecedores em todo o globo.
De olho na corrida pela troca dos combustíveis fósseis pelas fontes de energia renovável, até a Colômbia, com o status de único país sul-americano com dois oceanos, anunciou antes do Brasil seu programa para atrair investimentos internacionais para a eólica offshore. Vasconcelos, da UFRN, lembra que os portos brasileiros não estão preparados para construir aerogeradores. “As turbinas estão cada vez maiores. Não dá para transportar um aerogerador de uma fábrica no interior de São Paulo para o porto de Santos”, diz. Enquanto concluímos etapas importantes para botar de pé essa nova cadeia produtiva, o custo dos projetos tende a cair, explica Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica. “O Brasil está no momento certo para pegar esse bonde, que é um trem-bala. A janela de oportunidade para atrair investidores não passa de um ano e meio, para fazer o primeiro leilão”, reforça. Se a lei de exploração for aprovada ainda este ano e os primeiros contratos estiverem assinados entre 2027 e 2028, Gannoum calcula que as primeiras usinas eólicas estarão operando no mar brasileiro em 2030. E isso é logo ali.
ENERGIA RENOVÁVEL NO BRASIL E NO MUNDO
Energias renováveis impulsionam combustível do futuro
O hidrogênio verde surgiu como a saída para descarbonizar diversas atividades, substituindo combustíveis fósseis. O problema é que ele ainda é muito caro. Obtido da quebra da molécula da água (H2O), demanda uma corrente elétrica pesada que, além de encarecer o processo, anula seu potencial renovável. Mas se passar a ser produzido com energia limpa, tudo muda. O resultado do processo é mais oxigênio na atmosfera e menos gases de efeito estufa à solta. Os parques eólicos offshore são uma plataforma possível e conveniente para reunir essas duas fontes renováveis. Segundo Maurício Tolmasquim, diretor de Transição Energética e Sustentabilidade da Petrobras, há estudos indicando que em pouco tempo o hidrogênio verde estará mais barato no Brasil do que o fóssil (considerado cinza e muito usado na indústria do refino). Das frentes abertas mundo afora, a produção para exportar é uma oportunidade, mas esbarra em desafios tecnológicos como a viabilização do transporte em forma de gás e a liquefação, que demanda energia para manter o combustível a baixíssimas temperaturas.
Por Isabel Clemente