De fluxos migratórios ao marketing, o que a tendência de viajar para se imunizar revela sobre desigualdades e oportunidades

Cruzar fronteiras foi o que historicamente moldou o mundo tal como o conhecemos hoje: gigante, mas ao mesmo tempo pequeno; globalizado, mas desigual; diverso e, vale lembrar, cada vez mais compartilhado. Viaja-se em busca de algo, alguém ou de uma condição melhor para si. Na pandemia de Covid-19, grande catalisador de mudanças deste século, o movimento se repete.

Quando se descobriu a primeira linhagem do novo coronavírus e as fronteiras se fecharam uma a uma, quase como num dominó, muitos quiseram viajar de volta para casa ou se isolar de tudo, em busca de refúgio. Aviões militares foram resgatar pessoas na cidade chinesa de Wuhan, o primeiro epicentro do vírus; viajantes desaceleraram drasticamente suas andanças e o lockdown definiu a temporada seguinte, marcada por restrições de mobilidade mundo afora após a declaração de pandemia pela OMS (Organização Mundial de Saúde), em 11 de março de 2020.

Mas a humanidade se mobilizou, e cientistas desenvolveram, em tempo recorde, vacinas contra a Covid-19. Campanhas de imunização se iniciaram no mundo todo –  até 28 de maio de 2021, mais de 1,7 bilhão de doses de vacinas foram aplicadas, segundo dados do Our World in Data, projeto da Universidade de Oxford, no Reino Unido. E os fluxos agora são em busca desse elixir de normalidade. Dentro dessa ideia, estão os deslocamentos pandêmicos, tema desta reportagem especial da CNN.

Eles vão além de um simples “turismo da vacina”. Sim, há aqueles que viajam, exclusivamente com esse propósito, a países com estágio avançado de imunização, praticando o turismo já clássico. Mas há quem tenha ficado preso em algum lugar antes de as vacinas existirem. Há quem more num país com doses abundantes e tenha que se vacinar no vizinho. Tem gente fazendo bate-e-volta na pátria mãe porque o lar atual se recusa a apertar o passo da vacinação.

Um uruguaio radicado no Brasil se largou em 2,4 mil quilômetros de estrada para se vacinar no Chuy. Uma americana instalada no Japão voou quase 10 mil km para se imunizar em Los Angeles. Uma brasileira calhou de estar em Vancouver, no Canadá, quando as fronteiras se fecharam, lá ficou e lá tomou a primeira dose. Um alemão embarcou no primeiro tour de uma agência norueguesa rumo à Rússia para receber a Sputnik V. Estes são alguns dos relatos à CNN, que identificou 12 fluxos ocorrendo atualmente. 

Alguns dos viajantes não quiseram se identificar. Eles dizem temer críticas por viajarem em plena pandemia (o fenômeno conhecido como “travel shaming”), por terem usado uma posição econômica privilegiada para buscar as injeções ou implicações por recorrerem a “atalhos” extraoficiais para fazerem a viagem.

VIAGENS SANITÁRIAS NO TEMPO

Tempo é considerado um elemento essencial para conter a pandemia. Desenvolvidas em período recorde, as vacinas contra Covid-19 têm sido tratadas como um tipo de chave para reabrir o mundo. Talvez isso explique a velocidade com que as pessoas passaram a se deslocar atrás delas – e o tempo que estão dispostas a investir para consegui-las.

Nas epidemias do passado, o tempo também foi um fator crucial. Na pandemia da gripe espanhola, lembrada como a gripe de “3 dias”, muitos tentaram migrar para países mais ao norte da Europa, não tão atingidos, para fugir das infecções. E, mesmo assim, conta a historiadora e antropóloga brasileira Lilia Schwarcz, as pessoas não conseguiram fugir da doença a tempo. 

“Era muito veloz”, diz ela, citando casos de famílias inteiras que repentinamente não eram mais vistas nas ruas e, dentro de três ou cinco dias, eram encontradas mortas em casa. “O fato de não existir vacina, de não existir uma saída desse tipo, fez com que as locomoções fossem muito menores”, explica.

Naquele momento, quem mais viajava era o vírus, e as barreiras sanitárias eram praticamente inexistentes. A gripe espanhola atingiu o Brasil, em 1918, chegando a bordo de navios vindos da Europa com tripulantes infectados. Aqui, foram cerca de 30 mil mortos em um intervalo de um ano.

Uma das embarcações, a Demerara, ficou conhecida como “navio da morte”. A nave atracou no Recife, em Salvador, no Rio de Janeiro e em Santos. Com pouca ou nenhuma inspeção das autoridades sanitárias, tripulantes desembarcaram sem questionamentos apesar dos relatos de enfermidades a bordo. Poucas semanas depois, as cidades registraram uma explosão nos contágios.

“A letalidade foi tal que muitos dos que vieram a falecer acabaram morrendo no próprio ano de 1918. Há casos em 1919 – na Amazônia, por exemplo, a doença continuou por um bom tempo e também teve muita subnotificação. As pessoas se assustaram e não tiveram tempo de se locomover”, diz Schwarcz, coautora do livro “A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil” (Companhia das Letras, 2020).

fonte: CNN 

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