Estudo inédito desenvolvido por pesquisadores da Embrapa Cerrados (DF), Universidade de Brasília (UnB) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília (IFB) aponta que o processo de decomposição da serrapilheira – camada de restos de plantas e material orgânico que cobre o solo – tem correlação direta com a diversidade da flora local e com o sinergismo de fatores, como a ação dos microrganismos decompositores, que ocorrem principalmente no período chuvoso. A pesquisa, de longa duração, foi desenvolvida em uma área florestal nativa de Cerrado e pode contribuir para o controle ambiental e iniciativas de conservação, como a recomposição de áreas degradadas e o controle da perda de matéria orgânica do solo.
A serrapilheira exerce funções importantes no equilíbrio e na dinâmica dos ecossistemas, sobretudo em regiões do Cerrado, onde a maioria dos solos apresenta baixa fertilidade natural. Por consequência, a sua decomposição ajuda a manter as propriedades físicas, químicas e biológicas do solo e a ciclagem de nutrientes, além de ter papel relevante na manutenção ecológica de diversas funções e sistemas florestais.
No estudo, a decomposição da serrapilheira de uma floresta savânica (Cerradão, foto à direita) foi analisada em função da composição florística local e da sazonalidade – alternância de estações secas e chuvosas ao longo dos anos –, considerando que o bioma Cerrado tem duas estações bem definidas: uma chuvosa (outubro a abril) e uma seca (maio a setembro). O trabalho está descrito no artigo How long does it take to decompose all litter in Brazilian savanna forest?, cujas autoras principais são Fabiana Ribeiro, da UnB, e Alexsandra Oliveira, da Embrapa Cerrados. O artigo faz parte da tese de doutorado de Ribeiro, que foi coorientada por Oliveira.
Como novidade, o artigo traz dados sobre a decomposição total da serrapilheira de uma área de Cerrado. Até então, os textos científicos sobre o processo no bioma apresentavam uma análise em curto período de tempo, contemplando dados coletados somente até a meia-vida, ou seja, a quantidade de dias necessários para o desaparecimento de 50% da matéria orgânica, sendo o tempo total de decomposição estimado por meio de modelos matemáticos. “Acompanhamos a decomposição da serrapilheira até o fim, o que representou 2.070 dias de observação”, explica Ribeiro.
Pesquisa avaliou tempo de decomposição da serrapilheira durante quase seis anos
O estudo foi realizado em uma área de quatro hectares de Cerradão na Quebrada dos Neres, zona rural do Paranoá (DF), onde não ocorreram incêndios após o ano de 1996. Entre agosto de 2014 e maio de 2020, os pesquisadores acompanharam a decomposição de 240 amostras de 20 gramas de serrapilheira contidas em bolsas de malha de nylon (litter bags) distribuídas aleatoriamente pela área, sendo que, a cada três meses, 10 delas foram coletadas.
A meia-vida da serrapilheira observada no local foi de 360 dias, período em que a decomposição foi mais acelerada. Após 180 dias, as perdas já eram significativas, sendo possível observar grande parte da estrutura interna das folhas, que no 360º dia estava fragmentada. Segundo estudos, a decomposição mais intensa nos primeiros meses é explicada pela fragmentação da serrapilheira por agentes físicos, pela fauna do solo e pela liberação de compostos solúveis, como açúcares, amidos e proteínas, que são rapidamente consumidos pelos microrganismos decompositores. Após esse período, a decomposição fica mais lenta devido ao maior percentual de estruturas mais resistentes, chamadas de recalcitrantes, como a lignina (molécula associada à rigidez, impermeabilidade e resistência mecânica e a ataques microbiológicos aos tecidos vegetais) e a celulose presentes nas estruturas de folhas e galhos.
A decomposição de 75% do material amostrado ocorreu entre 720 e 810 dias. Em 1.710 dias, somente a estrutura das nervuras e galhos finos foi observada misturada ao solo. A quantidade de biomassa foi constante entre os dias 900 e 1.980, chegando a zero, 90 dias após o último dia de coleta (2.070º dia). Veja a figura abaixo.
Como o estudo permitiu medir o tempo necessário para que as plantas fossem totalmente decompostas nas amostras, diferentes modelos matemáticos utilizados na literatura científica para estimar a decomposição da serrapilheira puderam ser testados. O modelo de simples entrada de Olson, que considera apenas o tempo e a taxa de perda em relação à massa inicial, foi o mais satisfatório para estimar a velocidade de decomposição da serrapilheira na área de Cerradão estudada, por ter apresentado a menor subestimação do processo.
“Após os testes, chegamos ao modelo simples, que se mostrou mais próximo da realidade”, comenta Ribeiro. Nesse sentido, conforme a pesquisadora da UnB, o estudo, ao testar modelos e sugerir o que melhor se adequa às condições do Cerrado, também contribui para diminuir erros de superestimação ou subestimação nas estimativas de decomposição de serrapilheira no bioma.
O que influencia a decomposição da serrapilheira?
A taxa de decomposição da serrapilheira é afetada por diversos fatores, como concentração de nutrientes, teor de lignina, atividade da fauna e outros agentes que fragmentam o material vegetal; e do ponto de vista climático, a temperatura e a precipitação.
Em áreas de Cerradão, como a que foi estudada, a composição da serrapilheira é predominantemente de folhas, que podem representar até 70% desse material nas diferentes fitofisionomias do bioma Cerrado.
Segundo a pesquisadora da Embrapa Cerrados, estudos como esse sugerem que as plantas do Cerrado tenham desenvolvido mecanismos conservativos e eficientes para minimizar a perda de nutrientes durante sua decomposição, resultando na produção de serrapilheira com alta relação de carbono/nitrogênio (C:N) e carbono/fósforo (C:P), o que pode significar baixa decomposição.
Ela lembra que o Cerrado é um ecossistema com baixo valor de nitrogênio, sendo que de 15% a 37% são reabsorvidos antes da queda das folhas, e que o nitrogênio inorgânico está disponível pela mineralização da matéria orgânica.
“Assim, o que for mais palatável aos decompositores diminui com o tempo, e não podemos acreditar que haja um aumento na quantidade de nitrogênio e fósforo. Pode ser que a concentração desses nutrientes tenha aumentado em função das características apresentadas na serrapilheira, resultando em menor palatabilidade, ou, também, a sua forma pode se encontrar imobilizada, ou seja, não disponível à decomposição”, explica, acrescentando que materiais com altos teores de substâncias solúveis e simples são mais rápida e facilmente decompostos que aqueles com grandes quantidades de lignina.
Influência das chuvas
No Cerrado brasileiro, é sabido que as condições de elevadas temperaturas e a capacidade de retenção de água contribuem para a decomposição da serrapilheira no início do período chuvoso, sendo que as taxas mais altas ocorrem nas primeiras chuvas. “Ou seja, é como se fosse um bônus para a decomposição e a mineralização, em função do favorecimento temporário das condições climáticas”, afirma Oliveira.
Durante as seis estações chuvosas observadas ao longo dos cinco anos e nove meses do estudo, foi observada, como previsto na literatura científica, a intensificação da decomposição da serrapilheira, mostrando relação direta entre esse processo e as precipitações.
Segundo as pesquisadoras, isso ocorre porque a decomposição da serrapilheira é diretamente proporcional à sua palatabilidade aos microrganismos decompositores. Por outro lado, nas estações de seca, quando há diminuição da água, a palatabilidade é menor, o que leva à diminuição da velocidade de decomposição da serrapilheira.
Diversidade da flora e a dinâmica de decomposição da serrapilheira
Além da disponibilidade de água, as características estruturais da serrapilheira ajudam a explicar a dinâmica de decomposição realizada pela fauna do solo. O tamanho das folhas, por exemplo, é um fator influenciador, uma vez que maiores áreas superficiais disponíveis à colonização microbiana aumentam a palatabilidade para organismos trituradores como as formigas cortadeiras, por exemplo.
Nesse sentido, foi realizado um inventário da composição florística da área estudada, com dez amostras dispostas aleatoriamente pela área, cobrindo um total de um hectare (ha). Foram encontradas 83 espécies de 41 famílias botânicas, que foram classificadas conforme a densidade (número de indivíduos/ha) e a dominância (porcentagem da área ocupada por uma espécie), entre outros critérios, na área.
A família Melastomataceae contou com o maior número de espécies, com 520 indivíduos. A espécie Miconia pohliana apresentou maior dominância na área. As 20 espécies com maior dominância representaram 84% das espécies presentes nas amostras. “Se sabemos quais espécies estão presentes, conseguimos verificar o quanto aquelas de maior ocorrência são atrativas aos microrganismos da área”, pontua a pesquisadora da UnB, acrescentando que as informações do estudo são representativas para outras áreas de Cerrado.
“A variedade e a diversidade de espécies florestais, a quantidade e a diversidade da serrapilheira, junto aos fatores bióticos e abióticos, influenciaram diretamente na decomposição da serrapilheira, uma vez que esses fatores estão ligados aos processos de modulação das características dos microambientes e dos organismos decompositores responsáveis pela ciclagem de nutrientes via serrapilheira”, conclui Ribeiro.
Resultados apoiam projetos de conservação, recuperação e controle ambiental
Por ser um método de monitoramento não destrutivo para avaliação da qualidade florestal, o estudo da dinâmica de decomposição da serrapilheira trouxe resultados relevantes para a elaboração de projetos de conservação e controle ambiental.
A pesquisadora da UnB explica que, em associação com outros dados ecológicos, é possível avaliar o comportamento da floresta em relação às tensões bióticas, como a ação de organismos decompositores, e abióticas, como temperatura e umidade. “Caso a floresta seja substituída por uma lavoura, é possível estimar a perda de nutrientes naturais. E, conforme o manejo do solo, podemos controlar a perda de matéria orgânica da superfície do solo”, exemplifica.
Além disso, o conhecimento das espécies de uma determinada área florestal de Cerrado e da decomposição da serrapilheira permite selecionar as espécies de plantas mais atrativas aos microrganismos decompositores. “Essas espécies vegetais podem ser escolhidas no momento do plantio conforme o interesse, considerando as estimativas da média de ciclagem eficiente dos nutrientes da serrapilheira”, diz a pesquisadora, salientando que essa é uma iniciativa importante para projetos de recuperação de áreas degradadas.
“Nesse contexto, o conhecimento associado do tempo de ciclagem da serrapilheira poderá contribuir para estudos de resiliência do ecossistema [Cerrado]. Resultados como os que obtivemos podem auxiliar na geração e orientação de políticas públicas voltadas ao funcionamento da resiliência climática, que tem a ver com a sustentabilidade”, finaliza a pesquisadora da Embrapa.
Os autores do estudo são Fabiana Piontekowski Ribeiro, Alexsandra Duarte de Oliveira, Angela Pereira Bussinguer, Maísa Isabela Rodrigues, Mikaela Soares Silva Cardoso, Ilvan Medeiros Lustosa Junior, Marco Bruno Xavier Valadão e Alcides Gatto.
Fonte: Embrapa Cerrados