Segundo o PublishNews, portal especializado no mercado editorial, o livro mais vendido no Brasil em 2022 foi “Mais esperto que o diabo: o mistério revelado da liberdade e do sucesso”, de Napoleon Hill. Publicada originalmente em 1938, a obra, uma mistura de ficção científica e autoajuda, narra uma entrevista do autor com o Diabo; Hill pergunta ao Diabo, que sistematicamente tenta minar as boas oportunidades, como evitar suas armadilhas, e recebe em troca sete princípios a serem seguidos rumo ao triunfo. Este não é um caso isolado: entre os 10 livros mais vendidos no ano passado, ao menos cinco estão na categoria de autoajuda.
Relatório recente da Marketdata, editora independente de pesquisa de mercado, apurou que os programas e produtos motivacionais – aperfeiçoamento físico, mental, financeiro e espiritual – faturaram nos EUA, em 2021, US$ 11,3 bilhões, e a previsão é crescer à taxa de 6% ao ano, atingindo US$ 14 bilhões em 2025 (“The U.S. Market For Self-Improvement Products & Services”). A cultura de autoaperfeiçoamento não é exclusividade da cultura americana, está incutida na cultura ocidental, é parte constitutiva da competição, da busca por soluções individualistas em detrimento de soluções coletivas (Manuel Castells já tratava desse “novo” tipo de individualismo no seu livro seminal “A Sociedade em Rede”).
As tecnologias digitais contemporâneas, particularmente o big data e a inteligência artificial (IA), ao produzirem um conhecimento inédito sobre os seres humanos, estão transformando a natureza e o processo de autoaperfeiçoamento. A internet e as redes sociais nos informam sobre os acontecimentos cotidianos mundo afora, parte deles agregados em plataformas especializadas. Também nos colocam em contato com os últimos livros, aplicativos, fóruns de debate e vários outros recursos que teoricamente contribuem para a evolução pessoal. Por meio da análise de nossos dados, os sistemas de IA oferecem recomendações com certo grau de assertividade em relação ao nosso perfil, aos nossos interesses, às nossas ambições e outras variáveis; essas recomendações interferem diretamente na forma como as decisões são tomadas. Em paralelo, a mídia social favorece a competição por popularidade e aprovação; são diversos os aplicativos e sites especializados em construir a “presença digital” nas redes sociais e, posteriormente, gerar visibilidade (processo contínuo).
Na esfera do autoaperfeiçoamento, o aplicativo Lifetick, por exemplo, promete ajudar o usuário, de forma divertida, a criar e gerenciar suas metas, encurtando a trajetória rumo ao sucesso. O Joe’s Goals, outro exemplo, é um site de rastreamento de metas gratuito, para até 6 metas. Ambos permitem que o usuário compartilhe seu progresso nas mídias sociais. Em outra perspectiva, o livro de Jane McGonigal, “Superbetter: How a Gameful Life Can Make You Stronger, Happier, Braver and More Resilient” (primeira edição em 2015, disponível em versão digital, inspira-se em técnicas de videogames para “gamificar seu caminho de sucesso”.
Esses exemplos estão descritos no artigo da revista New Yorker de Alexandra Schwartz (8 janeiro 2018, “Improving ourselves to death” ). A autora observa que, inspirados nas inovações tecnológicas, estamos na fase de “otimização pessoal”, guiados por “gurus de autoajuda”, alguns com históricos acadêmicos relevantes e compromissos com metodologias científicas, que se apresentam como capacitados a evitar que sejamos “deixados para trás” em um ambiente hipercompetitivo e globalizado. “O que eles estão vendendo são métricas. Devemos mapear nosso progresso, contar nossos passos, registrar nossos ritmos de sono, ajustar nossas dietas, registrar nossos pensamentos negativos – e então analisar os dados, recalibrar e repetir”, adverte Schwartz.
Os algoritmos de inteligência artificial estabelecem correlações, calculam probabilidades, fazem previsões sobre o nosso comportamento futuro, gerando um tipo de conhecimento inédito sobre nós mesmos, um tipo de conhecimento que não estava disponível antes da IA, um conhecimento quantificado. Se é controverso o alerta de Yuval Harari de que os algoritmos de IA estão nos observando, registrando onde vamos, o que consumimos, com quem nos relacionamos e, em breve, vão monitorar todos os nossos passos, respirações e batimentos cardíacos – e, em consequência, vão nos conhecer melhor do que nós mesmos -, podemos nos por em acordo sobre o fato de que essa quantificação do conhecimento molda (ou influencia) a maneira como nos percebemos.
Para Mark Coeckelbergh, filósofo da Universidade de Viena, o autoaperfeiçoamento não é mais opcional, mas um imperativo, na medida em que as tecnologias digitais não nos oferecem apenas informações, mas nos convidam a nos comparar com os outros (quem teve mais curtidas, quem motivou comentários mais generosos, quem foi mais replicado). Em seu novo livro, “Self-Improvement: Technologies of the soul in the age of artificial intelligence” (2022), Coeckelbergh adverte que essa constante comparação “nos arrasta para regimes de autodisciplina, autovigilância e conhecimento quantitativo duros e insuportáveis”. Com a IA, nosso self é quantificado, tornando-se um “data-self”.
Contribuímos ativamente para a formação do data-self, originado nos dados pessoais gerados em nossas interações online nos dispositivos e/ou meios digitais, dados esses captados, armazenados, tratados e utilizados por um ecossistema de tecnologias e organizações para nos rastrear, nos quantificar, nos analisar e nos influenciar (ou manipular). Esse novo tipo de conhecimento provém, inclusive, de práticas cotidianas modificadas pelas tecnologias; por exemplo, quando corremos com dispositivos como Garmin Vívoactive 3, Xiaomi Amazfit BIP A1608, Xiaomi Amazfit Pace, Samsung Galaxy Watch Active SM-R500, Apple Watch 5, Garmin Forerunner 235 ou Polar M430, transformamos a própria experiência da corrida, ao produzir e disponibilizar dados sobre nossos hábitos e nossa saúde. Os algoritmos de IA atualmente são parte essencial da cultura de autoaperfeiçoamento, com efeitos positivos e negativos (externalidades positivas e negativas, como sempre ocorre ao adotar sistemas de IA).
Coeckelbergh reconhece que a IA é parte do problema, mas também pode se tornar parte da solução. Para tal é imprescindível desenvolver modelos de IA aptos a gerar um tipo diferente de autoconhecimento e autoaperfeiçoamento, com foco não em quantidade, mas em qualidade, entregando um tipo de autodesenvolvimento mais sustentável e profundo. O filósofo advoga a favor de modelos que incentivem a percepção de que o crescimento individual sadio é relacional, e nos ensinem a encarar os outros não como competidores, mas como parceiros.
Com a premissa de que a tecnologia não é apenas um instrumento, um recurso externo, mas molda nossas ações e nossas narrativas, Coecklbergh defende que “se queremos uma cultura de autoaperfeiçoamento diferente, precisamos de histórias diferentes e tecnologias diferentes. Se não gostamos de uma história específica sobre a inteligência artificial, o que precisamos não é apenas rejeitar a história (e muito menos ignorá-la), mas reescrever a história ou escrever uma nova história”.
Fonte: Época Negócios