Entre itens do cotidiano que podem ser repaginados com uma nova atitude está o guarda-roupas, e entre materiais que pedem uma reavaliação cuidadosa, estão o couro e os sintéticos
A virada de chave que as mudanças climáticas exigem passa por diversos setores da economia, e também pelos lares mundo afora. Se por um lado indústrias devem se reinventar para cortar emissões de carbono, a principal fonte do aquecimento global, por outro, cidadãos têm papel ativo, que passa pelas escolhas de consumo. Entre itens do cotidiano que podem ser repaginados com uma nova atitude está o guarda-roupas, e entre materiais que pedem uma reavaliação cuidadosa, estão o couro e os sintéticos.
Quando se trata de couro, qual a atitude correta? É uma opção sustentável ou vale a pena apostar em novos tecidos, como “couro vegano”, por exemplo? Um problema complexo, que no momento não tem resposta simples. Mas, é possível, sim, consumir de forma mais consciente e ecofriendly se forem considerados alguns aspectos simples na hora de comprar.
Uma das questões que perpassam o couro é o bem-estar animal. Consumidores mais preocupados com os seres que coabitam o planeta conosco buscam opções de calçados e roupas que não tenham peles ou materiais oriundos de bichos. Assim sendo, o veganismo pulou das refeições para as vitrines. Um Só Planeta procurou especialistas em moda e a indústria do couro para discutir o assunto.
Nomes como Stella McCartney ou a marca de tênis Vert vêm impulsionando novos tecidos, com performance semelhante ao couro, porém feitos de fibras de abacaxi ou cogumelos, entre outras muitas opções. É chic e não depende da indústria da carne/pele, mas tem tem impactos ambientais associados. A reportagem entrou em contato com ambas as grifes, que preferiram não se manifestar.
De olho no plástico
Uma questão que envolve as alternativas ao couro é o fato de serem materiais com plástico em sua composição. Há raras exceções, como no caso do laminado vegetal (tecido orgânico com látex adicionado), que parece couro e ao mesmo tempo é biodegradável. A busca por um material que pareça couro, não seja de origem animal e ainda assim se decomponha facilmente é um trabalho em constante desenvolvimento.
Durabilidade é um ponto fraco também. “Esses materiais (opções ao couro) sempre contam com um percentual de 15 a 20% de material sintético. Temos o poliuretano, por exemplo, matéria-prima proveniente do petróleo. Ela performa bem do ponto de vista visual, porém tem vida útil de 2 a 3 anos, é um material que descasca”, afirma Monayna Pinheiro, professora do curso de moda da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado) e consultora na área de moda e sustentabilidade.
Vegetariana, a especialista em moda afirma que mantém suas antigas peças de couro, porém passou a evitar comprar novas. “Tento evitar o consumo, e se for consumir prefiro de segunda mão, em brechó, pois já está no mundo, já foi utilizado, e estimula a circularidade de bolsas por exemplo, itens do universo de luxo. Eu não me desfaço dos produtos de couro que eu tenho, pois também não faz sentido sair descartando os produtos, pois eles têm durabilidade e custo-benefício melhor. Foi a saída que eu achei para gerar menos impacto.”
Couro dura mais
A durabilidade do couro e o plástico presente nos sintéticos são dois fatores importantes a considerar na hora de comprar uma jaqueta nova. Bem-estar animal, também. Portanto, na corda bamba do consumo consciente, estamos até aqui equilibrados entre um veganismo que adiciona plástico ao meio ambiente ou uma peça atrelada à indústria agropecuária, com seus métodos e (enormes) emissões de carbono. Não há decisão fácil.
“Por mais que a gente saiba que o couro é de origem orgânica, o processo de fabricação dele leva uma série de produtos químicos, e temos todas as consequências do agronegócio, a monocultura… Ainda assim, é melhor do que o couro sintético, do meu ponto de vista, por ser mais durável”, avalia Graziela Nivoloni, coordenadora da graduação em design de produto e serviço no IED Brasil (Istituto Europeo di Design).
O processo de tratamento e tingimento do couro usa quantidades altas de água, e também produtos químicos, como o mercúrio, que, sem o tratamento adequado, pode contaminar rios e lençóis freáticos, causando danos neurológicos em pessoas e animais, além de afetar a reprodução das plantas. No entanto, pela durabilidade, o couro pode ser considerado mais sustentável, uma vez que usa matéria-prima uma vez para ser usado por tempo indeterminado, se bem cuidado.
“O couro dura mais, é praticamente eterno. Se hidratado, limpo, evitando fungo, você consegue garantir aquela peça por gerações, ao contrário do material sintético”, observa Monayna.
Indústria do couro tem monitoramento de efluentes
Segundo o CICB (Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil), a cadeia do couro e do calçado gera R$ 48,7 bilhões anuais em faturamento, com mais de 1,2 milhão de postos de trabalho diretos e indiretos. José Fernando Bello, presidente executivo do CICB, defende que o setor “ é, por sua natureza, um segmento reciclador”, pois aproveita um subproduto da cadeia de frigoríficos.
O último levantamento dessa indústria, de 2022, aponta que 94,4% dos curtumes do país fazem o controle diário de efluentes líquidos tratados; 83,4% das empresas têm profissional específico para lidar com questões ambientais na organização, ou profissional específico de consultoria externa; 100% possuem coleta seletiva de resíduos sólidos; 88,9% têm controle sobre o volume diário de água consumida; e resíduos sólidos são transformados em fertilizante.
“Este amplo controle sobre a atividade dos curtumes enxugou a indústria nos últimos 25 anos: mantiveram-se em atividade somente as organizações que se adequaram a todas essas normas, de modo que temos atualmente 214 curtumes no país (no passado, eram cerca de 800)”, afirma Bello.
Em meio às controvérsias, as opções ao couro ainda esbarram na lei. Vender “couro vegano”, por exemplo, com este nome estampado, fere a Lei 4.888/65, que estabelece que somente produtos feitos em pele animal podem receber a denominação “couro”, sendo proibida a utilização de termos como “couro ecológico”, “couro sintético” e outros.
Escolha pessoal baseada em valores e no uso consciente
Sem uma resposta pronta para o dilema do couro x sintético, a decisão permanece sendo totalmente pessoal. De acordo com cada contexto, alguns fatores relacionados à sustentabilidade do produto e a possibilidade de reciclagem ou circularidade vão contar para se chegar à opção escolhida.
Quando se trata de uma peça com potencial para durar uma vida toda, como bolsas e jaquetas, o couro aparece como opção de menor impacto, pois garante o uso prolongado, o que justificaria o uso dos recursos naturais empregados. Contudo, esbarra na causa animal e na supressão de vidas não-humanas.
Já com produtos de tecidos sintéticos, o uso de água será menos intensivo, e sem bichinhos envolvidos no processo. Neste caso, os valores individuais acabam pesando, e muito, na balança. Contudo, o reaproveitamento destes tecidos é praticamente inviável, e a chance de uma sandália de “couro de abacaxi” ficar em um lixão nos próximos 450 anos é real. “É muito delicado, pois acaba ficando um pouco sem saída. A grande problemática dos materiais alternativos é não ser biodegradável”, analisa Monayna.
“Você sabe que precisa mudar, mas não sabe como fazer essa mudança. A gente entendeu que está no caminho errado, mas estamos ainda tentando construir o mapa. Precisamos de lei, política, comunidade, atores olhando para soluções”, opina Graziela, que comenta ainda que, no IED, os alunos vêm desenvolvendo tecidos orgânicos que podem ser uma opção ao couro, porém ainda sem as características exigidas para entrar no mercado, como durabilidade e possibilidade de produção em grande escala.
A coordenadora chama atenção para nuances importantes na busca pela sustentabilidade, como a conveniência da matéria-prima. Tecido de abacaxi é interessante onde há produção de abacaxi, caso contrário, elimina-se um problema mas cria-se outro, com longas rotas de transporte, o que gera muitas emissões de carbono, por exemplo.
“Estamos sendo obrigados a respeitar o clima, a terra, o solo. Os alunos estão animados com essa descoberta. Há cinco anos, eles estavam focados na fabricação digital, agora temos a biofabricação, e espero que nos próximos anos possamos ver boas novidades.”
Fonte: Um só planeta