As nove obras abrangem autoras lusófonas brasileiras e estrangeiras, incluindo Lygia Fagundes Telles, Djaimilia Pereira de Almeida e Nísia Floresta; veja lista completa
Com nomes como Conceição Evaristo, Lygia Fagundes Telles e Rachel de Queiroz, a lista de livros para a Fuvest 2026 é composta exclusivamente de mulheres – algo inédito no histórico da prova.
Anualmente, a leitura obrigatória para o vestibular da Universidade de São Paulo (USP) inclui nove obras. Entre 2026 e 2028, as questões irão considerar publicações de autoras lusófonas, tanto brasileiras quanto estrangeiras, datando a partir do Romantismo. “Muitas delas foram alvo de décadas de invisibilidade pelo fato de serem mulheres”, aponta Maria Arminda do Nascimento Arruda, presidente do Conselho Curador da Fuvest e vice-reitora da USP, ao Jornal da USP.
Para o diretor executivo da Fuvest, Gustavo Ferraz de Campos Monaco, a novidade coloca a literatura como uma “ferramenta de reflexão e transformação social”. “Trata-se de trazer a público e valorizar o que muitas vezes ainda não se conhece, e de destacar a importância das mulheres no cânone, em diferentes períodos históricos, nos mais variados gêneros literários, com perspectivas diversas”, declarou.
Conheça as nove obras incluídas na lista de leitura para a Fuvest 2026.
1. Opúsculo Humanitário (1853), de Nísia Floresta
De autoria da potiguar Nísia Floresta, Opúsculo Humanitário é uma coletânea de 62 artigos originalmente publicados nos jornais O Diário do Rio de Janeiro e O Liberal no século 19. A obra lançada em 1853 foi considerada escandalosa em tempos de Brasil Império, especialmente por defender a igualdade de gênero.
O livro segue uma linha argumentativa na qual Nísia traça a condição feminina na sociedade ao longo da História, além de refletir sobre a educação das mulheres e sobre as diferenças de raça e classe entre as brasileiras. A autora ainda recomenda mudanças no país a partir das ideias de diferentes autoras.
“Nele está contida, em sua forma mais elaborada, a tese de Nísia Floresta como educadora feminista e reformadora social”, afirma a escritora Peggy Sharpe-Valadares no prefácio da segunda edição da obra, de 1989. “A sua preocupação maior, o sonho pelo qual lutou por tanto quanto teve de energias, foi o de elevar a mulher brasileira à plenitude de suas potencialidades humanas.”
2. Nebulosas (1872), de Narcisa Amália
Antologia de 44 poemas, Nebulosas é a única obra lírica de Narcisa Amália, escritora que também é famosa por ser a primeira jornalista profissional do Brasil.
No livro, a autora relata lembranças da infância e do amor por sua terra natal – São João da Barra, no Rio de Janeiro –, além de exaltar a natureza e a identidade nacional. Essas são expressões do Romantismo que se refletem, por exemplo, no poema “A Resende”, dedicado à cidade em que viveu. Narcisa também redigiu poemas críticos de cunho social, especialmente a favor da abolição da escravatura.
Sua escrita e visão crítica foram elogiadas por Machado de Assis. “Não sem receio abro um livro assinado por uma senhora”, escreveu Machado no Semana Ilustrada em dezembro de 1872. Mas o autor continuou: “A leitura das Nebulosas causou-me a este respeito excelente impressão. Achei uma poetisa, dotada de sentimento verdadeiro e real inspiração, a espaços de muito vigor, reinando em todo o livro um ar de sinceridade e de modéstia que encanta.”
3. Memórias de Martha (1899), de Julia Lopes de Almeida
Nesta autobiografia ficcional, a escritora carioca Julia Lopes de Almeida relata as memórias de Martha e sua vida no fim do século 19. Nascida em um cortiço no Rio de Janeiro no tempo do império, a personagem vive com a mãe viúva, que trabalha para sustentá-las.
A obra foi publicada originalmente em folhetim em 1888 no jornal Tribuna Liberal do Rio de Janeiro e é considerada o primeiro romance brasileiro a narrar a vida no cortiço – antecipando, assim, o célebre livro O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo.
Entre as temáticas presentes em Memórias de Martha estão a emancipação feminina por meio da educação e do trabalho e a abolição da escravatura, bem como a aristocracia cafeeira de São Paulo.
4. Caminho de pedras (1937), de Rachel de Queiroz
Em Caminho de Pedras, a escritora cearense Rachel de Queiroz aborda questões de gênero, de lutas sociais, da miséria e da situação das classes operárias em Fortaleza durante o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas.
A partir da paixão proibida entre Roberto e Noemi, a autora retrata a militância da esquerda nessa década e os conflitos internos do Partido Comunista Brasileiro. “É uma história de gente magra, uma história onde há fome, trabalho excessivo, perseguições, cadeia, injustiças de toda espécie”, escreveu Graciliano Ramos, célebre autor de Vidas Secas (1938), sobre a obra.
5. O Cristo Cigano (1961), de Sophia de Mello Breyner Andresen
A história que a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen apresenta neste livro é contada por poemas em sequência narrativa. A inspiração veio de um conto que ela ouviu do pernambucano João Cabral de Melo Neto, autor de Morte e Vida Severina (1955) – obra que, inclusive, já foi cobrada na Fuvest anteriormente. “[Ele foi] um poeta que também tinha a paixão da geometria e do concreto e a mesma solidariedade com o sofrimento humano”, observa Rosa Maria Martelo no prefácio de edição de O Cristo Cigano publicada pela editora Assírio & Alvim.
No livro, Sophia narra a lenda sevilhana sobre o escultor barroco Francisco Antonio Ruiz Gijón. “O pretexto deste poema foi a lenda do Cristo Cachorro que me contou em Sevilha, numa igreja de Triana, o poeta João Cabral de Melo Neto, a quem um cigano a tinha contado”, relatou Sophia em entrevista ao Jornal Letras e Artes em 1962.
O diálogo entre os escritores ocorreu enquanto os dois estavam diante da escultura de Gijón, popularmente conhecida como El Cachorro. O modelo desta obra teria sido um cigano apelidado de Cachorro que o próprio escultor havia apunhalado.
O Cristo Cigano é considerado singular no conjunto de poesias da autora, cuja obra é marcada pelo uso de substantivos concretos (ou seja, aqueles que se referem a objetos palpáveis).
6. As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles
As meninas é um depoimento de Lygia Fagundes Telles sobre a ditadura militar a partir dos monólogos interiores de três estudantes universitárias que moram em um pensionato de freiras em São Paulo. Essas protagonistas são Ana Clara, Lorena e Lia – cujas personalidades a autora classificava como “drogada”, “burguesinha” e “guerrilheira”, respectivamente.
Outras vozes além das personagens também interferem na narração do livro, que varia entre a primeira e a terceira pessoa. A história é escrita em fluxo de consciência, muito marcada pelos sentimentos das jovens.
Publicado em 1973, o livro contém a descrição de uma sessão de tortura em uma época em que o regime militar ainda estava em curso no Brasil. No entanto, a obra não sofreu censura. Lygia tinha hipótese para isso: segundo ela, o censor poderia ter achado a obra muito enfadonha, e, assim, não teria terminado a leitura.
Essa não é a primeira vez que o romance aparece no vestibular; o livro foi cobrado na prova de 1996 da Fuvest.
7. Balada de amor ao vento (1990), de Paulina Chiziane
Neste romance de 1990, a escritora moçambicana Paulina Chiziane explora temas como o papel da mulher em uma sociedade patriarcal, o casamento e a poligamia.
O livro conta a história de Sarnau, de seu casamento com o príncipe Nguila e de seu romance com o jovem cristão Mwando. A personagem questiona a existência do amor e promove uma reflexão sobre a posição feminina na sociedade em que vive.
“É uma história de amor adolescente, em que a família determina que a mulher tem de casar com o homem, mas ela tem sua paixão, e os conflitos em volta disso”, disse Chiziane em entrevista à revista Quatro Cinco Um.
No bate-papo, a autora também falou sobre as críticas que recebe por suas obras: “Um dos meus maiores problemas são as temáticas que escolho, consideradas subalternas, proibidas ou tabu, como a poligamia. Mais graves ainda são a feitiçaria, as nossas crenças”.
8. Canção para ninar menino grande (2018), de Conceição Evaristo
Essa obra da escritora mineira Conceição Evaristo pretende colocar um homem no centro da narrativa. Mas, segundo a autora, tal protagonista fala muito pouco – sua história é contada pelas mulheres de sua vida.
A partir do personagem Fio Jasmin, Conceição aborda as contradições e complexidades em torno da masculinidade de homens negros e os efeitos nas relações com as mulheres negras, em um “mosaico afetuoso de experiências negras”, conforme apontado na sinopse do livro publicado pela editora Pallas.
A escrita da autora nesta e em outras obras é guiada pelo seu conceito de escrevivência – junção das palavras “escrever” e “vivência” –, que carrega a ideia da escrita enquanto reflexo de uma coletividade e está relacionada a diferentes experiências de raça, gênero e classe.
“Construir essa historia do Fio é um exercício que eu observo na vida real; essa dificuldade de a gente acessar o homem. Eu não queria criar uma personagem como o Fio Jasmin como um homem só mulherengo, como um machista qualquer”, disse a autora ao Canal Curta. “Apresentar uma ficção em que as personagens negras são lidas a partir de suas subjetividades é também criar um outro discurso na literatura brasileira.”
9. A visão das plantas (2019), de Djaimilia Pereira de Almeida
Neste romance, a angolana Djaimilia Pereira de Almeida conta a trajetória de Celestino, ex-capitão de um navio que transportava africanos raptados e escravizados. Depois de anos no mar, no contexto das viagens entre a África e o Brasil que tiveram seu auge entre 1750 e 1850, o personagem retorna a Portugal para se tornar jardineiro.
Diferente de seus vizinhos, as plantas não o julgam. “O livro é muito pouco claro, deixa em aberto saber se Celestino tem ou não tem a consciência tranquila”, afirmou a autora em entrevista à editora Todavia. “Ele é um homem assombrado por fantasmas das suas vítimas, mas esses fantasmas também não o acusam de nada.”
Aliás, Djaimilia resgatou o protagonista da obra Os pescadores (1923), do português Raul Brandão, na qual diz-se que Celestino começou a vida como pirata e “acabou como um santo”.
“Desde a primeira leitura [de Os Pescadores], há mais de 15 anos, as breves linhas sobre Celestino me assombram e fascinam. Voltei a esse parágrafo muitas vezes, muito antes de imaginar que viria algum dia a escrever livros”, ela contou em bate-papo com a Academia Brasileira de Escritores (Abresc). “Quis escrever a sua história para perceber melhor a natureza desse fascínio e para apaziguar esse assombramento.”