Quando Anna Luísa Beserra inscreveu uma ideia em um prêmio científico, aos 15 anos de idade, ainda não se imaginava como empreendedora – apenas cientista. Aluna aplicada desde criança, aos 17, com autorização da Justiça, conseguiu pular um ano do colégio para ingressar na faculdade mais cedo e buscar apoio para seu projeto.
Ela também não imaginava que demoraria quatro anos para fazer sua primeira venda. Hoje com 25 anos de idade e uma filha de 11 meses, Anna lidera a startup SDW (Sustainable Development & Water For All, “desenvolvimento sustentável e água segura de beber para todos”, na tradução literal), e uma equipe de 15 pessoas, incluindo seu pai.
Depois de passar por incubadoras e aceleradoras de negócios, receber vários prêmios e mentorias, Anna conseguiu encontrar um modelo de negócio que viabilizasse a escala. A SDW se prepara para mais do que dobrar o faturamento de 1,9 milhão de reais em 2022 para 4 milhões até o final do ano.
Ao longo dos últimos quatro anos, grandes empresas financiaram o acesso à água potável e banheiro a seco para mais de 20 mil pessoas em áreas rurais de 15 estados.
Mas não foi fácil para a jovem estudante conseguir acesso a laboratórios e financiamento para construir, testar e dar o devido respaldo científico ao seu protótipo de reservatório de desinfecção de microorganismos da água por meio de raios ultravioletas, o Aqualuz.
Anna Luísa Beserra: “O Aqualuz é uma tecnologia voltada para o tratamento microbiológico. Um produto simples, com uma alta durabilidade” — Foto: Divulgação
Nascida e criada em Salvador, na Bahia, ela teve todo o apoio da mãe, enfermeira, e do pai, empreendedor, para seguir seu sonho de trabalhar “em alguma grande causa mundial”. Anna persistiu. Depois de centenas de melhorias e 15 versões diferentes do produto, ela conseguiu o primeiro cliente no final de 2019, pouco tempo depois de se tornar a primeira brasileira a ganhar o prêmio Jovens Campeões da Terra, da ONU.
A TBE, empresa de transmissão de energia, comprou 200 unidades do Aqualuz para comunidades no entorno de suas operações no interior da Bahia. “Foi uma empresa que de fato abraçou o projeto e nos ajudou a montar e executar junto”, lembra Anna.
Logo depois veio a segunda cliente, Alupar, holding da TBE, e comprou mais 200 unidades. Com isso, Anna convidou Letícia Nunes Bezerra, engenheira ambiental do Ceará que vinha trabalhando desde 2017 como voluntária no projeto, para ser sua sócia no negócio.
Casal beneficiado pelo projeto Aqualuz: a TBE, empresa de transmissão de energia, comprou 200 unidades do Aqualuz para comunidades no entorno de suas operações no interior da Bahia. — Foto: Divulgação
Impacto Social
A maioria dos 17 clientes hoje são do setor de energia – transmissoras, parques eólicos e solares. As demais, de setores como mineração, saneamento privado, seguros e financeiro. Anna também descobriu as organizações da sociedade civil como parceiras estratégicas, pois elas já têm a própria fonte de captação de clientes e podem inserir o Aqualuz em projetos mais amplos de saneamento básico.
O potencial de impacto é grande em regiões com bastante incidência solar. Globalmente, pelo menos 2 bilhões de pessoas usam uma fonte de água potável contaminada, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. No Brasil, 35 milhões de pessoas não têm acesso a água tratada. Cerca de 15 mil brasileiros morrem, na maioria crianças, e 350 mil são internados por ano por causa de doenças ligadas a um saneamento básico precário ou inexistente.
Beneficiário do projeto Aqualuz no interior da Bahia. — Foto: Divulgação
Tecnologia
A metodologia utilizada no Aqualuz é a Sodis – sigla em inglês para Desinfecção Solar da Água, inventada por uma instituição suíça para o tratamento da água a partir da exposição aos raios ultravioleta. Cada reservatório de aço inox geralmente é conectado a uma cisterna e tem capacidade de desinfectar em média 10 litros de água depois de, em média, 4 horas de exposição à luz solar.
A lógica é semelhante a da geração fotovoltaica de energia. “Varia de acordo com o horário do dia que a pessoa colocou em exposição, se estamos no verão ou no inverno, se é uma região de sol muito forte ou não”, explica Anna. “Nosso foco no semiárido se dá por essa questão de o sol ser bem mais forte”.
Cada Aqualuz é vendido a 850 reais, mas somado aos custos com transporte, logística e instalação o valor por unidade pode chegar de 1.000 até 5.000 reais – conforme a quantidade de reservatórios adquiridos e o local da entrega.
Equipe da Aqualuz. — Foto: Divulgação
Modelo de Negócio
O plano inicial de vender para governos ainda não funcionou, mas não foi descartado. Um teste de outro modelo de negócios – oferecer microcrédito para que as famílias possam parcelar a compra do Aqualuz – demonstrou desafios culturais, como a preferência por aparelhos automatizados, como os filtros para utilizar dentro de casa, quando o reservatório não é disponibilizado gratuitamente por uma terceira parte.
“O Aqualuz é uma tecnologia voltada para o tratamento microbiológico. Um produto simples, com uma alta durabilidade, a maior do mercado inclusive, de 20 anos, e requer um processo de uso um pouco mais interativo”, pontua Anna.
É preciso que o reservatório seja lavado com sabão, cerca de duas vezes por mês, conforme o clima da região onde está instalado – se tem muita areia, ou se venta muito, por exemplo, é necessário lavar cerca de duas vezes por semana.
O plano é exportar para outros países, depois da empresa se consolidar no Brasil. Mas um pequeno teste já está sendo feito no Equador por uma questão de oportunidade. Enquanto isso, tem se provado certeiro o modelo de negócio de viabilizar que empresas contribuam para um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para 2030.
O ODS de número 6 trata especificamente de apoiar a participação das comunidades locais para melhorar a gestão da água e do saneamento. Além do Aqualuz, um segundo produto está vendendo bem, o Sanu Seco, uma infraestrutura sanitária sem uso de água. Seu maior cliente no momento é justamente uma empresa de saneamento privado.
“Os clientes que nos procuram têm uma visão diferente. Ou porque já receberam uma demanda das comunidades do entorno que eles atendem. Ou por [o nosso negócio] ter alguma relação com o negócio deles”, resume Anna.
Sanu Seco, infraestrutura sanitária sem uso de água. — Foto: Divulgação
Fonte: umsoplaneta