Depois de nove episódios e uma temporada que arrancou elogios do início ao fim, The Last of Us afastou de uma vez por todas a infame maldição das adaptações de games. Mais do que isso, a série da HBO estabeleceu um novo padrão de qualidade para produções do gênero não apenas por se manter fiel ao material original, mas por expandir e até mesmo melhorar aquilo que já conhecemos.
Antes mesmo da estreia, sabíamos que algumas mudanças seriam feitas. Só que, ao invés de mudar e distorcer a obra — como tantas outras adaptações já fizeram antes —, o seriado usa isso a seu favor para enriquecer um texto que já era bom e deixar esse mundo desgraçado ainda mais atraente e impactante.
Já se passaram dez anos desde o lançamento original de The Last of Us para PlayStation 3 e fica claro na série como algumas ideias e conceitos amadureceram na mente do diretor do jogo e agora showrunner Neil Druckmann. De temáticas abordadas ao modo como certos personagens são apresentados e cenas são construídas, é evidente como a visão do autor evoluiu ao longo dessa década e a adaptação sabe tirar proveito disso muito bem.
E não se trata daquela velha briga do que ficou melhor ou, pior, qual formato é superior. Como o próprio Druckmann disse em algumas entrevistas antes da estreia, o seu principal objetivo ao levar essa história para a TV era mostrar para o grande público como os games podem oferecer tramas tão ricas e que muita gente desconhece.
Por isso mesmo, é muito mais correto dizer que a produção da HBO expande algo que já era muito bom, refinando o texto tanto pela própria evolução de seu autor, pelo fato de agora existir uma sequência com a qual se conectar e o próprio fato de a linguagem de TV exigir algumas mudanças que são inevitáveis.
Aprofundando relações
A primeira grande expansão que The Last of Us oferece ao jogo está em como a série consegue aprofundar relações que, nos games, acontecem de forma muito rápida e sem a mesma profundidade. Isso é claro já no capítulo de estreia, quando vemos muito mais da relação da Joel (Pedro Pascal) e Sarah (Nico Parker).
Quem jogou sabe que esse é um dos trechos mais emocionantes e pesados da história recente dos games e não faltam marmanjos que choraram com a morte da garota. Contudo, esse prólogo é bastante curto até para entregar ao jogador o apocalipse que o marketing vendeu. Assim, temos apenas os diálogos de pai e filha na noite do aniversário e o início do surto.
Já a série dedicou quase dois terços do episódio a essa trama, mostrando bem mais de como era a dinâmica dessa família. Com algumas cenas a mais, a gente vê o quanto Joel era apegado à menina e torna muito mais crível a dor da sua perda.
De forma bem semelhante, a própria dinâmica do protagonista com Tess (Anna Torv). Enquanto o game deixa subentendida a existência de um relacionamento entre os dois, a adaptação deixa mais evidente que os dois contrabandistas são mais do que apenas parceiros de negócios. E, mais uma vez, isso dá novo significado à dor da perda quando ela acaba sendo infectada — assim como também justifica a culpa que Joel projeta em Ellie (Bella Ramsay).
Aliás, a própria relação entre os dois protagonistas ganha novos contornos na série. Isso porque o jogo constrói essa relação muito a partir da jogabilidade, fazendo com que as interações e os próprios percalços da jornada formem esses laços que são o coração da trama. Só que o fato de não termos o gameplay em um seriado, mas dois atores muito bons dando forma aos personagens permite que essa construção seja feita na atuação e em detalhes que vão se tornando cada vez menos sutis.
Muito antes de Joel se desesperar com a possível perda de Ellie e a chamar de “minha garota” — ou “meu amor”, caso você tenha visto dublado —, a interpretação de Pedro Pascal dá pistas de que o coração desse velho amargurado está amolecendo. A cena em que ele segura o riso diante das piadas da menina é algo original da série e que traduz muito bem a criação desse vínculo.
Novos pontos de vista e mais histórias
Quando a HBO falou que iria criar histórias que não existiam nos jogos, muita gente olhou com desconfiança para uma possível descaracterização de The Last of Us. Mas o que vimos foi o oposto disso, com novas histórias apenas deram mais profundidade e significado a esse universo como um todo.
Um exemplo bem pontual disso é o encontro de Joel e Ellie com os dois nativo-americanos no meio da caminhada para o Wyoming. É uma interação bem breve e sutil, mas que evidencia o quanto o protagonista está aterrorizado, seja com as situações que enfrentou ou com o fato de estar se apegando à menina.
Só que existem outros exemplos em que essas adições foram bem mais radicais e ainda mais benéficas. A história de Bill e Frank é o mais óbvio e até já falamos sobre isso por aqui. A série pegou um ponto que é abordado muito superficialmente no jogo e transformou isso em um episódio que é lindo não apenas pelo roteiro, mas pelo modo como a sua temática vai justificar a transformação de Joel ao mesmo tempo em que expande o passado do próprio protagonista.
Algo semelhante acontece no arco envolvendo Henry (Lamar Johnson) e Sam (Keivonn Woodard), que é inexistente no videogame. Ao invés de retratá-los apenas como dois sobreviventes, a história dos irmãos serviu para explicar as relações de poder nesse mundo tomado pelo cordyceps e mostrar que a tirania nem sempre veio pela FEDRA, mas pelas próprias milícias que tomaram seu lugar em alguns pontos.
Outras explicações importantes que enriqueceram o universo de The Last of Us aconteceram no começo e no fim da série. Os primeiros episódios mostraram como o surto teria surgido e como se espalhou tão rapidamente pelo mundo e, no último capítulo, descobrimos por que Ellie é imune ao fungo.
Mudando a perspectiva
Falamos há pouco sobre como a impossibilidade de recriar a interação da jogabilidade forçou os produtores da série a adotarem outros caminhos que funcionaram muito bem. E isso está presente também nos momentos de ação e na mudança de percepção que essa virada oferece.
No game, o jogador é parte ativa do confronto. Quando os heróis são atacados por infectados ou saqueadores, é natural que a reação seja revidar e o foco fica em eliminar todas as ameaças para poder seguir em frente. Só que, quando somos colocados como espectadores da ação, o seriado aproveita para mudar o sentido e o peso daquele momento.
Isso fica bem claro na sequência final da temporada, quando Joel vai resgatar Ellie. Por ser o último grande embate do jogo, a sensação de adrenalina ao jogar é tão grande quanto a do próprio protagonista correndo para salvar a garota. Quem jogou deve se lembrar que mal parou para pensar no que estava acontecendo, pois o senso de urgência falava mais alto.
Essa mesma cena, na série, ganha uma conotação totalmente diferente. Ela é lenta, tensa e silenciosa, focando na frieza de Joel na hora de matar qualquer um que ficar em seu caminho. A mudança no tom é gritante e dá um peso muito maior para o diálogo final e para o que deve acontecer na próxima temporada. Enquanto o jogo constrói a cena quase como a última luta do herói, o seriado deixou claro que Joel é tão frio e egoísta quanto um vilão.
The Last of Us está disponível no catálogo da HBO Max.
Por: Durval Ramos