A healthtech sem fins lucrativos ImpulsoGov nasceu em 2019, a partir do inconformismo do paulistano com as desigualdades existentes no Brasil

Desde o início dos anos 2010, muito se fala sobre a revolução possível graças à enorme quantidade de dados disponíveis na internet ou coletados em diversas fases de nossa vida. É a chamada era do Big Data.

Setores como varejo, transporte, logística, financeiro, agronegócio e publicidade estão sendo transformados por esse grande volume de informações. E não é só: o Big Data também pode contribuir para um sistema público de saúde mais eficiente e com melhores índices de satisfação e qualidade.

Esta é a ambição do paulistano João Abreu, de 31 anos. Formado em Economia pela USP e com um mestrado em Administração Pública e Desenvolvimento Internacional em Harvard, ele acredita que os dados têm um potencial significativo para transformar o Sistema Único de Saúde (SUS) no melhor do mundo.

“O SUS tem a maior base de dados de saúde do planeta, mas esses dados não são utilizados de forma muito estratégica. Existe uma frase que circula lá dentro que diz: ‘Tem muito dado e pouca informação’”, explica o empreendedor social, em entrevista a Época NEGÓCIOS.

“O SUS do século 21 tem que alavancar esses dados todos que existem para que as pessoas, prefeituras e todos os demais órgãos comecem a tomar decisões bem informadas com as informações disponíveis”, explica.

Com o lema “o uso inteligente de dados para transformar a saúde pública do Brasil”, a ImpulsoGov foi criada em 2019, em parceria com a colega Isabel Opice. Hoje, a healthtech sem fins lucrativos atua com mais de 150 governos municipais ou estaduais, fornecendo os dados necessários para que o SUS consiga fazer uma ação preventiva maior e entregue melhores resultados para a população.

Segundo Abreu, a base de dados disponível de forma dispersa dentro do SUS também é capaz de identificar grupos vulneráveis que estão sendo deixados para trás, como crianças não vacinadas, gestantes com acompanhamento deficiente ou mulheres com papanicolau atrasado — o que pode acarretar uma maior incidência de câncer de colo de útero no futuro.

Outra ambição é aumentar a participação do sistema de saúde na prevenção de doenças, em vez de concentrar grandes equipes para tratar doenças em seus estágios mais avançados, reduzindo mortes evitáveis.

Recentemente, a ImpulsoGov deu mais um passo em direção ao seu objetivo de transformar a saúde pública brasileira. Ela foi selecionada para o programa 100x Impact Accelerator, que escolhe empresas capazes de se tornar “unicórnios sociais” — uma brincadeira com o nome dado às startups que atingem um valor de mercado acima de US$ 1 bilhão. O projeto é realizado pela britânica London School of Economics and Political Science e oferece um subsídio de 150 mil libras (cerca de R$ 1,1 milhão).

Todos os serviços e produtos da ImpulsoGov são gratuitos. As iniciativas são financiadas por entidades filantrópicas e empresas privadas que apoiam a missão de transformar a saúde pública no Brasil por meio do uso de dados e tecnologia.

Transformando privilégio em ação

A ideia para a ImpulsoGov surgiu quando Abreu ainda estava nos Estados Unidos para o seu mestrado. Lá, conheceu a também brasileira Isabel Opice, que se tornou sua colega de quarto. Entre uma aula e outra de Desenvolvimento Internacional, os dois construíram a base do que viria a ser a organização no futuro, que nasceu de uma vontade de transformar o Brasil em um ambiente menos desigual.

A consciência sobre as dificuldades e grandes disparidades econômicas presentes em seu país natal, no entanto, veio muito antes da graduação na USP ou do mestrado em Harvard. Foi em um passeio escolar.

Criado em um bairro nobre da capital paulista e frequentador de colégios particulares de elite, João se viu diante de uma escola com infraestrutura muito diferente do que vivia em seu dia a dia — e não foi preciso nem sair da cidade.

“Percebi que, vivendo em São Paulo, enfrentei desigualdades profundas desde cedo. A expectativa de vida em bairros como Moema é 22 anos superior à de várias áreas da periferia, como Cidade Tiradentes e Itaim Paulista. Isso sempre me impressionou e gerou muitas dúvidas, além de um desconforto”, explica.

”Comecei a me perguntar: por que isso acontece? Ao conhecer outras realidades, especialmente em outros países, percebi que o Brasil é bastante singular. Normalizamos e naturalizamos essas desigualdades, mas a verdade é que o Brasil é atípico. Poucos países apresentam contrastes tão grandes em espaços tão pequenos.”

Pais e professores nem sempre tinham as respostas certas para dar a uma criança preocupada tão cedo com as diferenças sociais, mas alimentaram em Abreu a paixão por descobrir meios de reduzir as disparidades.

“Quando eu era adolescente, meus pais me levaram para a Suécia. Foi uma viagem que, embora inicialmente parecesse focada na natureza, me expôs a um ambiente urbano muito diferente. Eu fiquei chocado ao perceber que, ao olhar ao redor, tudo parecia muito mais igualitário. As pessoas em diferentes bairros da cidade viviam de maneira semelhante, sem a disparidade de renda que eu estava acostumado a ver no Brasil”, conta. Daí nasceu a vontade de questionar por que o Brasil era tão diferente e a buscar resposta para as desigualdades sociais com que convivia diariamente. “Essa viagem foi fundamental para moldar minha visão sobre a realidade e a necessidade de mudança.”

Mais velho, foi em um estágio na Prefeitura de São Paulo que tomou gosto por saber mais sobre políticas públicas.

Revolução por meio dos dados

A ImpulsoGov nasceu em 2019. A ideia, no papel, é simples: organizar os dados disponíveis nos bancos de dados públicos do SUS e transformá-los em informações relevantes para que cidades e Estados possam traçar estratégias embasadas para a saúde local.

Enquanto a pedra fundamental do negócio ainda estava sendo construída, o mundo começou a ser devastado pela pandemia da Covid-19, acelerando o processo. João e sua equipe, então, pararam suas atividades anteriores e se dedicaram a desenvolver produtos digitais, análises e recomendações para ajudar cidades e Estados a navegar pela crise.

Inicialmente, o foco era criar ferramentas que permitissem às autoridades monitorar a evolução da pandemia em suas localidades, como a previsão de necessidade de leitos e a situação epidemiológica.

A compilação dos dados permitia uma previsão mais acertada sobre a necessidade de afrouxamento das regras de isolamento social ou, com a ajuda de modelos matemáticos, traçar a evolução da pandemia no curto prazo, ajudando os prefeitos a tomar decisões críticas durante momentos de alta mortalidade.

Essas experiências moldaram a ImpulsoGov, reforçando a convicção de que o SUS pode se tornar um dos melhores sistemas de saúde do mundo, utilizando dados para atender melhor às necessidades da população e focar na prevenção.

“A pandemia acelerou muito o processo de saúde digital na parte de prevenção no Brasil. O SUS tem a maior base de dados de saúde do planeta, e conseguimos monitorar 170 milhões de brasileiros. Essa combinação de dados e um exército de profissionais de saúde, especialmente enfermeiros e agentes comunitários, é poderosa”, explica Abreu. “Aprendemos que, ao apresentar dados de forma prática e compreensível para os tomadores de decisão, eles conseguem tomar decisões melhores”.

Apesar do pouco tempo de atuação, Abreu fala com orgulho de algumas das conquistas que os dados trouxeram para algumas regiões do Brasil. Um desses casos reduziu drasticamente o número de mulheres que não estavam realizando o acompanhamento correto da saúde ginecológica. João explica que, com os dados do SUS, a cidade passou a mandar mensagens para essas pessoas, informando que o exame estava atrasado e oferecendo a opção de agendá-lo em uma unidade de saúde próxima. “Esse simples ato de comunicação mais do que dobrou a quantidade de exames realizados de um mês para o outro nas cidades onde implementamos essa estratégia”.

Para João, os dados podem fazer do SUS o melhor sistema de saúde do planeta. “Temos dados que ninguém mais tem, profissionais de saúde fazendo prevenção que ninguém mais tem, só que a gente não está fazendo o que eu considero que é o mais fácil, que é usar a inteligência dos dados para a ação, para chegar nas pessoas que mais precisam e estão sendo deixadas para trás”, diz o empreendedor.

Por Jasmine Olga