“Geoinformação é pré-requisito para qualquer cidade que queira ser chamada um dia de cidade Inteligente. Ela é ferramenta estratégica para o processo de tomada de decisão mais assertivo, uma vez que nos oferece um retrato fiel do nosso território e alimenta vários indicadores de eficiência em políticas públicas para cidades inteligentes”. A opinião é de Grazielle Carvalho, presidente do Instituto de Gestão Territorial e Geotecnologias – IGTECH e CEO do Instituto Smart Citizen, dedicado à mentoria de cidades inteligentes.
Geógrafa pela UFMG e doutora em Geografia com ênfase em planejamento territorial smart pela Iowa State University, Grazielle acredita que uma cidade que quer ser mais eficiente deve buscar cada vez mais por uma infraestrutura de dados que lhe permita se compreender melhor. “Geoinformação é a fundação desta casa que estamos construindo. Sem a fundação, a casa não se sustenta no tempo, nem no espaço”, afirma.
Todos falam sobre cidades inteligentes, mas ainda existe a sensação de que isso é algo muito mais voltado para questões meramente tecnológicas. Como é possível transformar as cidades por meio de metodologias tão impactantes quanto as tecnologias?
Primeiro, é preciso entender que cidades inteligentes no Brasil são muito mais do que o wi-fi na praça ou a lâmpada de LED. Cidades Inteligentes é antes de tudo um projeto estratégico de Estado, de médio e longo prazos, que está acima de interesses politico-partidários, pois tem seus pilares na Constituição Brasileira.
Cidades inteligentes no Brasil, portanto, também devem ser:
- Humanas, garantindo os direitos sociais e promovendo a qualidade de vida da população (Art. 6 da Constituição Federal, 1988);
- Eficientes, onde a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37 da Constituição Federal, 1988);
- Sustentáveis, promovendo políticas públicas em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, e do equilíbrio ambiental (art. 182 e 225 da Constituição Federal, 1988; art. 2 do Estatuto das Cidades – Lei 10.257/2001);
- Inteligentes, com foco em governança e educação (art. 205 da Constituição Federal, 1988);
- E este projeto de política pública de cidades inteligentes deve ser realizado engajando os cinco agentes da Inovação (Governo, Empresas, Sociedade Civil Organizada, Instituições de Ensino e Cidadãos comuns) em um processo de Gestão Democrática de Cidades (art. 43 do Estatuto das Cidades), promovendo o engajamento e envolvimento dos cinco agentes no processo de priorização de projetos e políticas públicas, assim como do orçamento público. E não tem como fazer isso no Brasil sem o apoio de tecnologias.
A transformação das cidades por meio da tecnologia é algo real. Já está acontecendo. E vamos ver o impacto delas em todas as áreas: saúde, educação, mobilidade, saneamento, na gestão dos resíduos, na eficiência energética, na habitação e na regularização fundiária, na inovação, no desenvolvimento econômico e rural, na cultura, esporte e lazer, no turismo e na assistência social, em todas as áreas. Portanto, devemos entender que as tecnologias não são o fim em si mesmo, mas o meio para promover o desenvolvimento do nosso país de forma mais eficiente e sustentável. Elas vão promover mudanças estruturantes, e o que precisamos é nos preparar para esse momento de transição, entendendo que devemos promover as condições necessárias para que a grande maioria da população seja incluída neste processo revolucionário, minimizando assim os impactos na assistência social e na segurança pública.
E como enfrentar os desafios federativos com competências federais que interferem nas liberdades locais?
Vivemos em um Estado Democrático, no qual a administração pública direta é constituída pelos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Para fazer com que essa grande engrenagem funcione de forma eficiente, é preciso alinhar os instrumentos de planejamento nas três esferas territoriais (união, estados e municípios). Mas, para isso será necessário, antes, respondermos, minimamente, a essas perguntas básicas:
Qual o Brasil que temos?
Qual o Brasil que queremos?
Quais as políticas públicas prioritárias?
Qual o papel de cada agente da inovação neste processo?
Quais as fontes de financiamento nacionais e internacionais que podemos acessar para tirar esse projeto do papel?
Somente com a construção de um projeto de nação, envolvendo os cinco agentes da inovação, poderemos alinhar políticas publicas a nível federal e estadual com as demandas locais, promovendo assim o destrave econômico e a promoção de qualidade de vida nos 5.570 municípios brasileiros. Desafiador? com certeza. Impossível? Não
É como diria Guimarães Rosa: “A vida… o que ela quer da gente é coragem”.
Os direitos humanos são muito importantes para a viabilização das cidades inteligentes. É possível viabilizar cidades mais humanas e focar na melhoria de qualidade de vida do cidadão?
Com certeza, não só é possível como é algo aprovado em Lei e obrigatório para os 5.570 municípios no Brasil. No art. 6 da Constituição, temos o pilar da Cidade Humana no Brasil. Neste artigo, apresentam-se os direitos sociais que todo brasileiro tem. Sempre que a Gestão Pública direta ou indireta promove, o que temos é a priorização de políticas públicas que tem um impacto direto na qualidade de vida do cidadão. Por isso, são direitos constitucionais, e que devem ser priorizados no momento de definição do orçamento público, seja na escala municipal, estadual ou Federal.
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)
Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária (Incluído pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021).
Como atribuir sustentabilidade a uma cidade que deseja ser “inteligente”? Temas como meio ambiente, emprego, geração de riqueza e demais aspectos sociais podem interagir dentro do município?
O acesso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado também é um direito do brasileiro (art. 225 da CF, 1988). Portanto, Cidades Inteligentes, obrigatoriamente, devem ser sustentáveis, oferecendo à população áreas verdes para descanso e lazer. Cidades inteligentes também são aquelas onde a população tem alternativas qualificadas para geração de emprego e renda, com foco em empreendedorismo e inovação. Mas também são inclusivas, e garantem o apoio à população em estágio de vulnerabilidade social, promovendo políticas públicas para que alcancem sua independência e autonomia social e financeira.
É preciso entender que os princípios da sustentabilidade (equilíbrio entre o meio ambiente, desenvolvimento econômico e inclusão social) devem ser pensados na construção de políticas públicas de curto, médio e longo prazo. Isso é o que garante que uma cidade comum está trilhando o caminho correto para ser humana, eficiente, sustentável e inteligente.
A administração pública municipal tem constantemente buscado ser mais eficiente na prestação de serviços locais. Como as ferramentas voltadas para o uso de geoinformação podem ajudar os munícipes na constituição de serviços melhores?
Uma cidade que quer ser mais eficiente deve buscar cada vez mais por uma infraestrutura de dados que lhe permita compreender melhor a “cidade que temos” e se os projetos e programas priorizados na gestão estão nos levando da forma mais rápida e mais barata, sem perder a qualidade, para “a cidade que queremos”.
Neste caso, a Geoinformação é pré-requisito para qualquer cidade que queira ser chamada um dia de cidade Inteligente, já que a Geoinformação é entendida aqui como um conjunto de ferramentas que nos auxilia na coleta, tratamento e análise de dados geográficos para gerar informação de valor que auxilie o processo de tomada de decisão em políticas públicas para gestão de territórios (bairros, cidades, estados, país, bacias hidrográficas, ou qualquer outro recorte territorial que seja necessário). Ela é uma ferramenta estratégica para o processo de tomada de decisão mais assertivo, uma vez que nos oferece um retrato fiel do nosso território e alimenta vários indicadores de eficiência em políticas públicas para cidades inteligentes. Ela é a fundação desta casa que estamos construindo. Sem a fundação, a casa não se sustenta no tempo, nem no espaço.
Como serão as cidades inteligentes em 2050? Conseguiremos conciliar uma realidade mais futurista com mais humanismo?
A cidade no Brasil em 2050 deve conseguir resolver problemas públicos que se arrastam há séculos.
No Brasil, 43% da população possui esgoto coletado e tratado e 12% utilizam-se de fossa séptica (solução individual), ou seja, apenas 55% possuem tratamento considerado adequado (dados da Agência Nacional de Águas – ANA, 2017);
Em 2022, em números absolutos, 11,6 milhões de brasileiros passaram a viver abaixo da linha da pobreza. Outros 5,8 milhões passaram a viver em condições de extrema pobreza. Com esse crescimento, o Brasil passou a ter 62,5 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, dos quais 17,9 milhões eram extremamente pobres (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Síntese de Indicadores Sociais, 2022)
O índice atual de analfabetismo no país é quatro vezes maior do que em 2018. De acordo com o IBGE, o Brasil tem 14.194.397 pessoas que não sabem ler, escrever ou realizar as operações básicas de matemática. Quatro anos atrás, eram cerca de 11 milhões.
Cerca 3,35 roubos acontecem por minuto no Brasil. Em 2016, foram registrados 1 milhão e 850 mil roubos em um ano, apenas nas 27 capitais brasileiras. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, o Brasil é um dos países mais violentos do mundo.
As cidades inteligentes no Brasil de 2050 só serão verdadeiramente inteligentes se superarmos alguns problemas básicos e que se arrastam há séculos no nosso país. Porque, se usarmos a tecnologia de forma indiferente aos problemas públicos, ao invés de resolvê-los, vamos intensificá-los. A tecnologia é uma grande aliada nesse processo de cidades inteligentes. Agora, devemos nós, gestores públicos, empresários, professores, cidadãos e lideranças das mais diversas áreas, usar do nosso poder para promovermos a gestão democrática das cidades e, assim, garantir que teremos cidades inteligentes para todos, sem deixar ninguém para trás. Porque cidades inteligentes têm foco na melhoria de qualidade de vida das pessoas, e não nas coisas, e a tecnologia vai acelerar nossos resultados. A questão aqui é: qual tipo de resultados estamos acelerando?
Por ES Brasil