Com cada vez mais adeptos ao vegetarianismo, restaurantes têm colocado legumes e verduras como protagonistas, com pratos cheios de criatividade
O que começou apenas como uma “segunda sem carne” para alguns, já se transformou em um fenômeno (e objetivo para a maioria dos dias) para outros no Brasil. Segundo o Ibope, o número de vegetarianos no país cresceu 20% de 2018 para 2023, atingindo 40 milhões de pessoas – um quinto da população.
E mesmo quem não se limita a rótulos já tem o menor consumo de carnes como meta: desde 2017, 63% dos brasileiros dizem estar seguindo este caminho, de acordo com o Datafolha.
Nessa escalada de menos proteína animal e mais vegetais, quem sentiu o movimento foram os restaurantes. Foi-se o tempo em que vegetarianos e simpatizantes tinham que se contentar apenas com uma salada monótona, batata frita ou um risoto de cogumelos na hora de sair para comer. “É preciso ser criativo para agradar esse público que cresce cada dia mais e, claro, quer novidades o tempo todo”, alerta Marco Aurélio Sena, chef e sócio do TanTin Bar, em São Paulo.
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Tartar de tomates e pimentões curados do Quincho
Com a demanda crescente, chefs têm se mobilizado para dar protagonismo aos legumes e vegetais, tirando-os da mesmice de sempre e dando novas caras, cores e sabores aos pratos sem carne, mesmo em estabelecimentos não rotulados como vegetarianos.
“Quando a gente pensa, por exemplo, em um chuchu, imaginamos que é alimento sem graça, sem gosto. É daí que vem a criatividade e a sensibilidade do cozinheiro em extrair o melhor daquele alimento, combinando-o com ervas, especiarias, temperos, molhos – aliados que trazem mais identidade”, diz o argentino Pablo Inca, à frente do Cora, no centro de São Paulo.
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Pablo Inca, do Cora
Com um menu sazonal que muda em média a cada duas semanas, o restaurante tem apenas um item que nunca sai de cena, tamanho o sucesso: a couve-flor assada inteira, com purê de abóbora, grão de bico e gergelim.
Assim como Pablo, outra chef que tem um hit vegetal na casa é Giovanna Grossi, com sua vagem assada com coulis de azeitona preta, castanha-de-caju caramelizada e queijo Guaianá maturado por cerca de 45 dias. “Essa é a única receita que mantenho desde a abertura do Animus. A nossa proposta é mostrar que os vegetais podem ser gostosos, cheios de sabor e que, assim como as carnes, só precisam ser bem trabalhados”.
Vagem com coulis de azeitona preta, castanha-de-caju caramelizada e queijo do Animus
Quem faz isso muito bem (e bem antes do hype) é a chef Mari Sciotti, do Quincho. Mesmo não sendo vegetariana, desde 2018 ela viu um mercado crescente – e com ofertas limitadas – para apostar. “Era uma demanda que ninguém poderia ignorar”, afirma. “Eu queria quebrar paradigmas que geralmente acompanham a percepção do que é a culinária vegetariana, antes apresentada só por um viés de nutrição, de comida saudável”.
Em seu restaurante na Vila Madalena, não ter carne é só um detalhe. Mas apresentar esse conceito, especialmente para os carnívoros, foi um esforço que não aconteceu do dia para a noite: “No começo do restaurante, via pessoas se levantando da mesa ao perceber que não tinha carne no cardápio. Foi um grande trabalho estabelecer a marca de forma a torná-la desejável também aos que não tem nenhuma restrição”, lembra a chef.
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Mari Sciotti abriu o Quincho em 2018
Hoje em dia, com pratos que vão de cenoura assada no forno à lenha com homus de pistaches à tartar de tomates e pimentões curados, Mari diz perceber que seu número de comensais carnívoros são até maiores do que os vegetarianos.
O plant-based chegou até à culinária japonesa, conhecida pelos sushis e sashimis de peixes e frutos do mar fresquinhos. No restaurante de alta gastronomia Aizomê, da chef Telma Shiraishi, é servido um menu degustação de sete etapas, que pode ser vegetariano ou vegano. Inspirado na culinária dos monges budistas, os sabores concentram-se em vegetais, cogumelos e algas, seguindo a sazonalidade.
Prato do dia: consciência
Muito dessa demanda vem de um questionamento dos nossos hábitos de consumo, junto a uma busca por uma vida mais consciente. Quem percebe isso é Hyssa Abrahim Filho, sócio e chef do bar paulistano Varal. “A proposta vegetariana vai de acordo com as tendências que o mundo está vivendo. Vemos o aquecimento global, a preocupação em adotar mais vegetais e diminuir a dependência de carnes na dieta. Quanto mais plantas, mais equilíbrio para o planeta”, diz ele, que aposta num cardápio majoritariamente de petiscos e pratos sem carne.
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Sushis veganos e vegetarianos do Aizomê
Até na terra do churrasco, o Rio Grande do Sul, já tem uma onda de procura por mais vegetais, principalmente vindo de um público mais jovem. É pelo menos o que percebe Marcelo Schambeck, chef do restaurante especializado em carnes Capincho, em Porto Alegre: “Talvez ainda estejamos um pouco atrasados nesse movimento, mas sinto que é uma tendência em ascensão por aqui. Por isso, dou especial atenção aos vegetais que acompanham os pratos com carne, mostrando que receitas nada óbvias podem surpreender e se tornar a escolha principal na próxima visita do cliente”.
E essa consciência não se limita aos grandes centros urbanos, especialmente do Sudeste. No Nordeste, em seus restaurantes em Jericoacoara (o Ello, que acaba de ganhar um menu degustação veggie de nove etapas) e na Barra Grande (o La Cozinha), o belga Hervé Witmeur também sentiu um aumento dos clientes vegetarianos: “É lindo ver essa mudança”.
Mas para o chef, a responsabilidade não deve vir apenas dos consumidores, mas da própria indústria. “Temos que agir por uma economia regenerativa em harmonia com o planeta. A gastronomia precisa mostrar o exemplo através de uma cozinha responsável que respeita os diferentes ecossistemas e os ciclos da natureza”, diz.
Da terra à mesa
Esse respeito que Witmeur menciona tem uma forte relação com a origem dos insumos, especialmente os vegetais. No caso do belga, seus restaurantes são abastecidos por sua própria fazenda, a La Reserva, em uma área de 14 hectares de terra nos Tabuleiros Litorâneos, em Parnaíba (PI). Por lá, se cultiva frutas, vegetais, verduras e super-alimentos sem pesticidas, também usados para suprir os outros estabelecimentos da região. “Na fazenda, estamos aprendendo todos os dias sobre o plantio e também sobre os benefícios de cada planta. É uma cozinha mais íntima respeitando cada produto em acordo com as colheitas”, conta.
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O chef Hervé Witmeur na sua fazenda La Reserva
Quem segue um princípio parecido é A Casa do Porco – que, por mais que seja batizada com o nome de um animal, também serve um menu degustação vegetariano desde maio de 2021, com legumes, hortaliças, frutas e até flores plantadas no Sítio Rueda, no interior paulista. Hoje, 20% dos comensais que fazem a degustação no 12º melhor restaurante do mundo pedem a versão veggie, nomeada de “Da terra saímos e para ela voltamos”.
“O vegetariano é espelhado no ‘regular’, tem a mesma apresentação, para que o cliente não sinta diferença entre comer pratos com ou sem carne. A ideia é que ele se sinta incluído em todas as nossas ideias, afinal os nossos vegetais são tão especiais quanto os porcos e têm o mesmo cuidado de criação e produção”, explica a chef Janaína Rueda.
Por lá, os embutidos, pururucas, tartares e churrascos suínos são substituídos por criações como melancia, melão, batata doce e pitaya curados, sanduíches de linguiça de couve-flor, tartar de chuchu e rabanete, mandioca com glacê e mais.
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A Casa do Porco tem um menu vegetariano desde 2021, que vive mudando; na foto, sushi de cogumelo
Já quem não tem sua própria horta depende de uma boa rede de produtores. No novo Feriae, bar paulistano com 60% do cardápio vegetal, esse trabalho levou nada menos do que dois anos: os sócios percorreram cidades em São Paulo e Minas Gerais para estabelecer uma rede de pequenos produtores orgânicos e agroflorestais, que fornecem insumos sazonais diretamente para o restaurante, evitando atravessadores. Deles vem o fubá de milho crioulo à framboesa, pêssego, feijão e café que estrelam o menu, dependendo da época do ano.
Jogo de sabores com vegetais
Mas não basta ter (só) ótimos insumos. Para convencer o público, especialmente o carnívoro, é preciso ser gostoso – com camadas de sabores, da acidez ao umami. Para isso, os chefs usam e abusam de ingredientes fresquíssimos, temperos, ervas e pimentas, além de (muitas) técnicas.
Estamos falando de defumar, brasear, fermentar, tostar, empanar, fritar, confitar, gelificar…são vários os métodos para elevar um legume ou verdura para outros patamares. “Para valorizar o ingrediente, nosso maior recurso é o fogo. Junto com ele, cocções lentas e com bastante especiarias ou vinagres para dar acidez e profundidade, deixando o vegetal como protagonista e realçando o sabor natural dele. Todos os vegetais têm um potencial incrível. O importante é como são tratados e os elementos que compõem o prato: acidez, dulçor, amargor, texturas”, explica o chef Mario Panezo, do Feriae.
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Pratos do Feriae, com 60% do cardápio vegetariano
O Chou segue uma linha parecida, com a brasa sendo a maior aliada dos pratos. “O defumado da grelha já dá muito mais personalidade para as verduras, o que já começa a tirar essa ideia do sem graça”, diz Gabriela Barretto, por trás do restaurante paulistano, que há 15 anos faz a chamada “cozinha de produto”, onde o ponto de partida é o ingrediente, e não a receita.
Mas além da cozinha, o trabalho também se estende ao salão. Especialmente nas casas que não são 100% vegetarianas, é preciso um esforço da equipe para vender e promover os pratos plant-based, que nem sempre são vistos como apetitos à primeira vista.
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Brócolis queimado na chapa com molho picante de amendoim do Chou
“O mais interessante é que alguns clientes que não esperam muito de alguns pratos, quando provam se surpreendem com o sabor e a entrega. Um exemplo é nosso risoto de vagem: de início não tinha tanta saída, mas com um trabalho em conjunto com o salão atingimos vários comensais, que provaram e ficaram encantados”, diz Panezo.
No Cora, de Pablo Inca, o trabalho vai na mesma direção. “Sempre instigamos e desafiamos os clientes a provarem os vegetais”, diz. “Acham que uma beterraba não pode ser tão boa quanto uma proteína animal, têm em mente que seu uso se limita a saladas, e muitas vezes eles se surpreendem”.
Texto: Giovanna Simonetti