A cozinha vegetariana não é mais a mesma – e muitas vezes nem quer ser chamada assim. Com potencial de soar mais palatável até para quem come carne, o termo gastronomia plant based vem sendo adotado para nomear um movimento crescente de restaurantes que repensam o uso de ingredientes de origem animal. Nada a ver com o bufê natural da esquina ou com pratos pouco inspirados reservados aos clientes veganos dentro de cardápios regulares.
Agora, chefs renomados do Brasil e do mundo (entre eles, Daniel Humm, do multipremiado Eleven Madison Park, de Nova York) lançam mão de técnicas apuradas para criar receitas que têm plantas como elemento principal. Mesmo a tradicional escola de culinária Le Cordon Bleu, com 126 anos de história e unidades em 20 países, se volta para a tendência, com a criação de um Diplôme Plant Based.
“Vamos elevar essa cozinha a outro patamar, com um nível Le Cordon Bleu de técnicas de apresentação, aroma e sabor”, disse Marina Queiroz, diretora Acadêmica no Instituto Le Cordon Bleu São Paulo, durante o lançamento do novo curso, em junho. Com custo de R$ 59 mil (mais matrícula de R$ 1.740), as aulas ministradas ao longo de quatro meses são divididas em práticas e teóricas, com aprendizado de receitas veganas salgadas e doces (muitas trazidas da unidade londrina e adaptadas à alimentação brasileira) e estudo de temas como horta urbana e PANCs (plantas alimentícias não convencionais).
“Ser tradicional não significa não estar em sintonia com o que é atual. Quando a gastronomia evolui, a Cordon Bleu acompanha. Foi assim com a nouvelle cuisine, por exemplo”, complementa Marina. “O plant based não é modismo. É o que futuro nos reserva: pensar a cozinha de forma mais saudável, levando em conta a sustentabilidade. Em breve teremos muitas pessoas no mercado atuando dessa forma.”
Responsável pela elaboração das receitas na aula de apresentação do curso, a chef Mari Sciotti vai além na sua leitura do movimento: “Não é futuro, é presente. E só vai crescer”, diz. “Já não basta servir como opção vegetariana uma massa com molho de tomate. O público quer mais.” (Uma amostra: em um restaurante com animal até no nome, o paulistano A Casa do Porco, a versão vegetariana corresponde a 20% das vendas do menu degustação Da Roça para o Centro, lançado em 2021.)
Em seu próprio restaurante, o Quincho Cozinha & Coquetelaria, na Vila Madalena, em São Paulo, a chef Mari Sciotti procura desde 2018 fazer uma gastronomia de plantas que saia do lugar comum. “A intenção é apresentar os vegetais como protagonistas, algo que eles podem e devem ser. Antes, eram encarados como acompanhamento ou entravam em uma cozinha vegetariana sem graça ou muito voltada para a questão de ser saudável. Mas você pode beber uísque e comer fritura e ser vegano.”
Mari não é vegana nem vegetariana. A decisão de abrir um negócio de cozinha baseada em vegetais (e fungos e algas) foi, em grande parte, mercadológica – ela viu uma tendência e resolveu apostar nela. Também contou o desafio gastronômico. “É possível adaptar até o mais clássico dos preparos ao universo vegetal”, diz. “A construção do prato é como qualquer construção: você pensa em diferentes texturas e em como os sabores vão se complementar. Também são necessárias técnicas apuradas, com adaptações para mostrar quanto essa gastronomia pode ser complexa.”
Fermentar, defumar, tostar, assar, desidratar, empanar, concentrar e confitar (cozinhar lentamente em gordura) são algumas das técnicas utilizadas pela chef em sala de aula e em seu restaurante. Como no tartar de cogumelo eryngui assado (de sabor ressaltado por temperos como mostarda l’ancienne e molho de cogumelo concentrado), servido sobre tempurá de peixinho da horta (folha aveludada) e coberto por um sagu de tucupi em que as pequenas esferas de massa de mandioca remetem a um caviar vegetal.
Ou no risoto de quinoa vermelha com creme de castanha de caju, alho confitado com azeite e tomilho, brócolis assado e couve cavolo nero desidratada até ficar crocante – pela gordura da castanha, o prato vai bem com malbec, vinho tradicionalmente servido com carne vermelha. “A missão é fazer com que o mais inveterado dos carnívoros coma uma refeição inteira de vegetais e saia satisfeito”, resume Mari.
Em abril, quando apresentou um menu-degustação vegano inspirado na culinária dos monges budistas, Telma Shiraishi, do Aizomê, procurou ressaltar que não se tratava simplesmente de uma versão sem peixe de sushis e outros preparos. A lógica é outra.
“Queremos mostrar alternativas sem o sentimento de que se está abrindo mão de algo”, diz a chef. Para isso, ela se norteia pelos princípios que regem a culinária tradicional japonesa – relacionados aos cinco elementos contemplados na filosofia budista (terra, água, fogo, ar e vazio).
Assim, todas as refeições devem ser pensadas para englobar cinco gostos (doce, salgado, azedo, amargo e umami), cinco sentidos (visão, olfato, paladar, tato e audição), cinco cores (branco, vermelho, amarelo, preto e verde), cinco tipos de preparação (grelhado, cozido, frito, ao vapor e fresco ou cru) e cinco pontos de adequação (temperatura, ingredientes, quantidade, técnicas e hospitalidade adequadas).
Embaixadora para Difusão da Cultura e Culinária Japonesa, título recebido do governo do Japão, Telma fez do seu restaurante no bairro paulistano dos Jardins uma espécie de embaixada da culinária do país asiático. Ela também está à frente do restaurante do centro cultural Japan House e é responsável por banquetes e recepções do consulado em São Paulo. Suas criações, como uma conserva de maxixe, foram parar inclusive nas marmitas (bentôs) da princesa Mako do Japão em visita ao Brasil.
Montar um menu vegetariano é um aprofundamento do estudo de Telma sobre a culinária japonesa. “Quando mergulhei em minhas pesquisas, o maior apelo foi pelos aspectos filosóficos e espirituais que me ajudaram a perceber como comer e cozinhar podem ser uma forma simples de conexão com a vida”, diz. “Para mim faz cada vez mais sentido explorar essas possibilidades e amplificar nossas opções ao ver tantas questões ligadas à sustentabilidade, à nossa saúde e à saúde de planeta.”
Trabalhar com ingredientes locais e sazonais é uma preocupação da chef tanto nos pratos vegetais como naqueles que levam matéria-prima de origem animal (ela não trabalha com salmão e diz dar preferência a peixes da costa brasileira obtidos por pesca sustentável). “No Japão, não há terreno para cultivo intensivo de alimentos e criação de animais”, diz a chef. “Em vários períodos a dieta do povo foi basicamente vegetariana, com a inclusão de pequenas porções de pescados, carne de caça, aves e ovos. O japonês se voltou muito à exploração de outros recursos nutricionais, com o uso de algas, cogumelos e vegetais que nascem espontaneamente nas montanhas e nos campos, além de técnicas de conservação e de fermentação.”
Já nem tão carnívoros
Se o Japão já era inclinado a uma alimentação vegetariana, o mesmo não se pode dizer da França ou da Argentina – pense em franceses sem manteiga ou argentinos sem bife de chorizo. Mas nesses países também têm surgido cozinhas em que o vegetal reina, mas que não se encaixam nos antigos estereótipos vegetarianos.
Instalado em Arès, perto de Bordeaux, o ONA (abreviação de Origine Non-Animale) se tornou em 2021 o primeiro restaurante vegano da França a receber uma estrela Michelin (duas a menos que o nova-iorquino Eleven Madison Park, que reabriu em junho de 2021, após meses fechado devido à pandemia de covid-19, anunciando ter se tornado vegano).
Em Buenos Aires, o antes italiano Gioia, no Palacio Duhau – Park Hyatt, também foi repaginado, tornando-se o Gioia Cocina Botánica. Os chefs Julián Galende e Kenyi Heanna não apenas tiraram carne, leite e ovos das receitas. Pensados para compartilhar, os pratos agora exploram de um jeito pouco óbvio as possibilidades dos vegetais.
Alguns exemplos: sopa fria de amendoim com abacate e banana-da-terra tostada; beterraba assada com agrião e grapefruit; patê de cogumelos com nibs de cacau e ameixas grelhadas; pera ao vinho torrontés com crocante de cereais e calda de chocolate. Tudo é apresentado como “cozinha à base de plantas”, e não como vegetariano, em uma tentativa de não restringir à clientela aos que não comem carne.
Em termos de presença de proteína animal na cultura alimentar, Minas Gerais talvez possa ser comparada à França ou à Argentina. Por isso, quando resolveu abrir o Florestal, um restaurante de “protagonismo vegetal”, a chef Bruna Martins ouviu muita gente, incluindo o sócio e marido, dizer que “isso em BH não pega”. Seguiu em frente com a ideia, até porque queria se renovar. “Sempre criei pratos em cima de carne, de cozinha afetiva mineira, e não queria me repetir”, diz.
No Birosca, outro restaurante de Bruna em Belo Horizonte, as estrelas são preparações como costelinha de porco com calda de ameixa e purê de canjica branca ou lasanha com coalhada, cebolas tostadas e fonduta de queijo com pistache. Já no Florestal, ela montou um menu mais de 90% composto por vegetais – mas não sai alardeando isso no salão ou no cardápio. “O cliente pede um charuto de kimchi, uma sopa de wonton, um espetinho de couve-flor com coalhada; de repente cai a ficha de que não está pedindo carne”, diz a chef.
“Quando você escreve que é vegetariano ou vegano, isso assusta. Cria-se uma situação em que só público que já consome vai gostar e querer comprar. O conceito do plant based veio justamente para isso, para acolher também os carnívoros.”
- Reportagem publicada na edição 98, lançada em junho de 2022
Por: Mariana Weber