Hoje, a Amazônia é urbana. Essa afirmação pouco ortodoxa contrapõe o grande senso comum sobre uma das regiões mais importantes do país. A Amazônia não é só floresta e tanto a sua população, quanto a sua economia, sobrevivem das cidades. De fato, um de cada quatro moradores da Amazônia Legal reside em áreas urbanas, conforme apontam os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, as cidades amazônicas apresentam indicadores de qualidade de vida abaixo do restante do Brasil, sofrendo mais com escassez de saneamento básico, problemas de mobilidade urbana e até mesmo baixa cobertura de arborização urbana.
Segundo o estudo, “Cidades Amazônicas: um chamado à ação”, do projeto Amazônia 2030, a urbanização recente da Amazônia brasileira foi marcada por dois momentos relacionados à “integração” da região com o restante do país. O primeiro refere-se à proximidade dos rios da rede urbana mais antiga que se formou, sobretudo a partir da economia da extração da borracha nativa, a partir da segunda metade do século 19. O segundo momento ocorreu após os anos 1970, quando muitas cidades e vilas surgiram ou cresceram rapidamente no entorno dos eixos rodoviários abertos pelo governo militar.
Esse crescimento acelerado e desordenado das cidades ao longo das rodovias foi resultado de projetos de ocupação que priorizavam a colonização agropecuária, projetos de mineração e construção de hidrelétricas, ao invés de olhar para as pessoas e a floresta. Isso resultou em cidades mal distribuídas, com poucas cidades de médio porte e uma enorme quantidade de cidades pequenas e sem estruturas necessárias para atender os seus moradores.
Segundo o estudo, este crescimento desordenado também está associado ao baixo uso dos instrumentos de planejamento. Apenas metade dos municípios da região possui o Plano Diretor, instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
Sem planejamento para a melhoria dessas cidades, a população tende a deixar a região para outros centros urbanos ou ir para a fronteira do desmatamento, onde apesar da qualidade de vida ser ainda mais precarizada, há uma falsa esperança de se ganhar dinheiro com práticas, na maioria das vezes, associadas à criminalidade como grilagem de terras, desmatamento, garimpo ilegal e extração irregular de madeiras.
Por isso, o desafio de desenvolver a Amazônia e proteger as suas riquezas naturais, passa impreterivelmente por aprimorar suas cidades. Por exemplo, a melhoria da oferta de educação, transporte público, internet banda larga e da segurança pública são chaves para atração e retenção de capital humano nas cidades.
É necessário, ainda, considerar princípios bioclimáticos adequados para cidades da região, especialmente diante do agravamento das mudanças climáticas. O estudo “As cidades na Amazônia Legal: diagnóstico, desafios e oportunidades para urbanização sustentável”, também do projeto Amazônia 2030, mostrou que a arborização das cidades amazônicas também é inferior à média brasileira. O que só piora a qualidade de vida dos seus moradores, pois, a arborização de ruas e a conservação de áreas de florestas remanescentes devem ser priorizadas em uma região de clima quente e úmido.
A melhoria da qualidade de vida na região demanda uma atualização dos processos de planejamento a partir da criação de projetos com envolvimento local e não mais de modelos importados ou impostos pelo governo federal. A conservação de áreas verdes é essencial para propiciar conforto térmico e abrandar o efeito de chuvas torrenciais. Além disso, as práticas utilizadas por populações indígenas há milênios também devem servir como princípios bioclimáticos na ocupação do território, na relação com a floresta e nas construções a fim de torná-las mais confortáveis e eficientes.
Incorporar a diversidade das culturas e dos modos de vida amazônicos na busca pela qualidade de vida na região garante um resultado mais coerente e efetivo a esse propósito. Neste sentido, é estratégico fortalecer os atores locais em suas proposições positivas sem, contudo, ignorar as possíveis contribuições externas.
Mas, como fazer isso? A revisão e o desenho de modelos de desenvolvimento tendem a ocorrer por meio de movimentos sociais e culturais. Esses movimentos incluem a interação de médio e longo prazos de especialistas, sociedade civil, gestores públicos e empresariais. A realização de eventos periódicos estimula tanto a criação de redes de colaboração como a visibilidade necessária para o problema e suas soluções. No caso da Amazônia, é fundamental que esse debate seja realizado na própria região.
Desse modo, garantimos a presença de especialistas em complexidade urbana locais capazes de rever as políticas públicas em curso e formular planos de desenvolvimento sustentável específicos para a região. A melhoria da qualidade de vida nas cidades amazônicas poderia ser impulsionada por um movimento estruturado a fim de angariar parceiros e sensibilizar os principais atores sobre o conceito de desenvolvimento nas cidades amazônicas. Experiências internacionais mostram como esses movimentos podem ser estruturados a partir das seguintes iniciativas:
Exposições culturais
Para resgatar o senso de pertencimento e engajar o público capaz de atuar sobre as transformações necessárias, tais como prefeitos e secretários municipais, acadêmicos, artistas, organizações da sociedade civil, filantropia e setor privado.
Congressos internacionais periódiocos
Permitem uma ampla troca de ideias sobre os desafios e soluções urbanas. Por exemplo, os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM) são modelos de diálogo e de construção participativa de soluções para as cidades. Essa abordagem poderia inspirar uma Bienal do Urbanismo para a Amazônia, a qual reuniria capacidades locais e internacionais com os objetivos de identificar e expandir boas práticas de desenho urbano já existentes, resgate dos saberes tradicionais e construir novas formas de pensar as cidades amazônicas.
Esse conhecimento compartilhado poderia contribuir para a reversão e mitigação dos danos de modelos de urbanização impostos nos últimos anos à região amazônica. Novos modelos também são essenciais à inevitável adaptação às mudanças climáticas do planeta. Nesse sentido, o intercâmbio com outras cidades da zona tropical será especialmente relevante. Além disso, uma Bienal do Urbanismo para a Amazônia com alternância de cidades-sede permitiria um conhecimento mais aprofundado sobre a diversidade de cada parte da região.
*Gustavo Nascimento é preto, faixa preta, jornalista e coordenador de projetos em O Mundo que Queremos.
Fonte: Um só Planeta