Grande parte da tecnologia criada para as viagens espaciais foi incorporada às atividades na Terra. Na nova era, a tendência é que as invenções cheguem ainda mais rápido
O que aconteceria se uma fábrica construída no espaço se transformasse no laboratório ideal para o desenvolvimento de medicamentos para HIV e câncer? E se uma nova economia surgisse a partir da extração de minerais em asteroides? E se, em vez de passar as férias na praia ou no campo, você fosse para a Lua?
Pode até parecer ficção científica, mas essa realidade está cada vez mais próxima. “O que podemos esperar em breve é o surgimento de uma nova economia espacial, que vai superar tudo o que já foi feito até hoje”, diz Martin Elvis, professor do Centro de Astrofísica de Harvard & Smithsonian, em entrevista a Época NEGÓCIOS.
Como exemplo, Elvis cita a possibilidade de, em um futuro nem tão distante, desenvolvermos órgãos humanos em microgravidade, por meio da impressão de células vivas em 3D. “Na Terra isso é mais difícil porque, ao adicionar uma segunda camada de células, elas simplesmente deslizam”, conta o professor. “Em microgravidade isso não deve acontecer. Se conseguíssemos cultivar órgãos de reposição no espaço, isso seria um grande avanço para a humanidade”, diz o astrofísico.
Nas últimas décadas, o setor espacial deu contribuições não só para a saúde, mas também para comunicações, infraestrutura e agronegócio, entre outros. “A Nasa desenvolveu instrumentos para satélites que monitoram constantemente as mudanças climáticas e os desastres naturais”, diz Rob Mueller, tecnólogo sênior e investigador principal de Pesquisa e Tecnologia no Kennedy Space Center.
Um dos sistemas mais promissores de captura de carbono veio diretamente de estudos atmosféricos realizados pela Nasa. Trajes espaciais com isolamento térmico usados por astronautas já foram adaptados para a construção civil. Componentes de peças dos ônibus espaciais são empregados todos os dias em turbinas eólicas.
“A Nasa já desenvolveu mais de 2 mil spin-offs de equipamentos e materiais usados no espaço e que hoje estão inseridos na nossa vida”, diz Thaisa Storchi Bergmann, astrofísica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Como exemplo, ela cita as pequenas câmeras fotográficas dos celulares, a tomografia computadorizada, os lençóis metálicos que são usados em acidentes, que foram desenvolvidos para proteger astronautas da radiação do espaço, e os fones de ouvido sem fio. “O espaço pode ser usado para a ciência e para o benefício de todos no planeta”, resumiu Tim Peake, ex-astronauta britânico, durante uma entrevista coletiva.

“Essas inovações contribuem para o crescimento econômico, ao aumentar a produtividade das empresas e criar novas oportunidades de negócios”, diz Luisa Corrado, professora de Economia na Universidade de Roma Tor Vergata, vice-editora da Spatial Economic Analysis e autora do estudo The macroeconomic spillovers from space activity (“As repercussões macroeconômicas da atividade espacial”, em tradução livre).
Segundo Corrado, o impacto econômico dessa nova indústria pode se dar de duas formas: direta – por exemplo, com satélites servindo de base para a criação de sistemas de posicionamento, como o GPS, fundamental para transporte em geral – e indireta, com materiais e ferramentas sendo reutilizados em outros setores, caso das células solares, dos sensores e de materiais como a espuma elástica, usada em travesseiros.
Em seu estudo – realizado em parceria com Stefano Grassi e Aldo Paolillo –, a professora analisa a contribuição do setor espacial para a tecnologia e o PIB dos Estados Unidos, da década de 1960 até hoje. “Nossa pesquisa indica que a atividade espacial teve um efeito mais significativo na economia entre o final da década de 1960 e o início da década de 1980. Isso sugere que a influência da exploração espacial foi mais pronunciada no início da Era Espacial do que no contexto atual. Se a New Space Era trará benefícios semelhantes ou maiores, ainda não sabemos”, afirma.
É fácil entender por que a maior contribuição do espaço para a Terra aconteceu nas décadas de 1960 e 1970. Poucas inovações foram tão revolucionárias para a história do planeta quanto os satélites. Em 1962, o primeiro satélite de comunicação, o Telstar 1, permitiu a transmissão de sinais de televisão e chamadas telefônicas através do Atlântico. O TIROS-1, de 1969, viabilizou uma previsão do tempo mais precisa; mais tarde, satélites como o Luna 9 aumentaram o conhecimento sobre o sistema solar. Já nos anos 1970, o desenvolvimento de sistemas de navegação por satélite levou ao lançamento do primeiro GPS, que revolucionou a navegação em terra, mar e ar.
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O que vem por aí
Nada se compara, porém, com o que ainda está por vir, na opinião de Martin Elvis. “A crescente redução de preços para levar pessoas e equipamentos ao espaço deve favorecer a parceria entre empresas do setor espacial e de áreas como saúde, alimentação e infraestrutura”, afirma.
“Isso impulsionará as pesquisas científicas em microgravidade, porque muitos países e corporações poderão colocar alguém em órbita para fazer esses testes. Os cientistas poderão ir pessoalmente. E como eles conhecem melhor seus experimentos do que qualquer outra pessoa, serão muito mais capazes de realizar novas descobertas”, diz.
Walt Engelund, administrador adjunto de Programas na Diretoria de Missão de Tecnologia Espacial (STMD, na sigla em inglês), da Nasa, concorda. “Futuras missões à Lua ou a Marte podem gerar novas tecnologias, como a que será necessária para minerar o gelo nas crateras da Lua e usá-lo para a sobrevivência dos astronautas”, diz. “Ou ainda para quebrar os átomos da água e gerar combustível”, afirma Elvis. “A Lua é nossa pedra de toque. Se conseguirmos aprender a construir bases, cultivar alimentos, sobreviver à radiação intensa e ao frio terrível do satélite, então poderemos fazer isso em qualquer lugar”, completa o astrofísico.
Em seu estudo Space: the U$ 1.8 trillion opportunity for global economic growth (“Espaço: a oportunidade de US$ 1,8 trilhão para o crescimento econômico global”), a McKinsey prevê algumas inovações espaciais que devem beneficiar a Terra:
- aperfeiçoamento de serviços de internet em locais remotos e do sensoriamento de dados para a agricultura;
- melhor conectividade, para dar suporte à mineração, ajudando a monitorar remessas e controlar emissões;
- mapeamento em radiofrequência, para detectar transportes ocultos, favorecendo seguradoras; desenvolvimento de culturas de células para prever modelos de doenças;
- fabricação de supercondutores, uma vez que o vácuo natural no espaço poderia facilitar técnicas inovadoras de camadas finas;
- comunicação a laser entre satélites, para acelerar a troca de dados, tanto no espaço quanto na Terra.
Para a professora de Economia Luisa Corrado, a estimativa de receita de mais de US$ 1 trilhão “é ambiciosa, mas plausível”. “Olhando para o futuro, novas atividades podem surgir. A economia espacial tem o potencial de transformar o mundo como o conhecemos em várias dimensões. Embora atividades como turismo espacial e mineração espacial ainda estejam em desenvolvimento, seu surgimento provavelmente remodelará nosso futuro.”
Ela aponta, porém, que existem desafios para viabilizar esses desdobramentos. “As tecnologias relacionadas a novas atividades, como a mineração espacial e a comunicação a laser, por exemplo, ainda estão em desenvolvimento e podem enfrentar atrasos. A incerteza quanto ao tamanho dos custos pode potencialmente retardar o desenvolvimento de novos mercados e reduzir os investimentos. As barreiras regulatórias também representam riscos significativos para as empresas, com questões não resolvidas, como os direitos de propriedade dessas tecnologias, que podem gerar tensões geopolíticas e atrasar o crescimento da economia espacial.”
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Startups interestelares
Além das agências espaciais e de gigantes como SpaceX e Blue Origin, são muitas as startups que estão prontas para inovar no espaço. Em uma tentativa de reverter a escassez de minérios na Terra e ainda fazer a transição para um processo de extração sustentável – já que mineração é uma das principais emissoras de carbono na atmosfera –, Matt Gialich e Jose Acain fundaram, em 2022, a AstroForge.
A startup californiana tem como objetivo minerar metais raros em asteroides – com foco na extração daqueles que pertencem ao grupo da platina, como paládio, ródio e rutênio. “Esses materiais são amplamente utilizados na fabricação de superprocessadores e na geração de hidrogênio verde. Se quisermos avançar nessas áreas, vamos precisar de uma fonte limpa”, diz Gialich, cofundador e CEO da AstroForge.
Ainda neste ano, a empresa deve mandar a sonda Brokkr-2 ao espaço pela primeira vez – ela vai “pegar carona” em uma viagem da empresa Intuitive Machines à Lua. Só que, antes do destino final, vai usar o próprio sistema de propulsão para se acoplar ao asteroide-alvo, onde será possível verificar sua composição.
Outra novata da exploração espacial, a Space Solar tem como objetivo gerar energia no espaço, para depois transmiti-la para a Terra. A principal motivação, diz o co-CEO Martin Soltau, é colaborar com a transição energética global.
Para isso, pretende colocar em órbita satélites com enormes painéis solares e espelhos usados para concentrar a luz. A eletricidade gerada será convertida em ondas de rádio de alta frequência e transmitida para uma antena receptora em um ponto fixo na Terra. A empresa fez uma demonstração de como seria feita essa transmissão em abril de 2024, usando seu equipamento Harrier para transmitir 50 watts de energia em diferentes direções no espaço.
Até 2030, a Space Solar pretende entregar a primeira estação comercial de energia solar no espaço, fornecendo 30 megawatts para diferentes mercados na Terra. “Muito em breve – ainda nesta década – o espaço vai fornecer energia acessível e abundante às nações, o que é particularmente importante para os países em desenvolvimento. Também será possível gerar energia para estruturas espaciais, tornando as atividades humanas mais sustentáveis, tanto no espaço quanto na Terra”, diz Soltau.
Inovações em saúde estão na mira da californiana Varda Space Industries, que pretende fabricar medicamentos em microgravidade. Em junho de 2023, uma cápsula com 90 centímetros de largura da Varda foi ao espaço, integrada a uma nave espacial da Rocket Lab. A cápsula continha os materiais necessários para cultivar cristais de ritonavir, um medicamento antiviral usado para tratar HIV e hepatite C. Uma semana após a decolagem, a empresa anunciou que o experimento havia funcionado.
“Foi a primeira vez que o processamento orbital de medicamentos aconteceu fora de uma estação espacial administrada pelo governo. Este é um passo importante na comercialização de produtos criados em microgravidade e na construção de um parque industrial em órbita”, disse a empresa em uma publicação no X (antigo Twitter).
Cristalizar medicamentos contra o câncer é a meta da britânica BioOrbit, que desenvolve uma plataforma para esse fim. A proposta é conseguir obter alta concentração da fórmula de um remédio em um volume menor. Com a inovação, pacientes com câncer poderiam permanecer em suas casas para fazer o tratamento, já que os medicamentos cristalizados seriam administrados de forma subcutânea, e não mais intravenosa.
A empresa pretende testar sua tese no espaço em 2025, com financiamento da Agência Espacial Europeia. A próxima revolução da indústria farmacêutica, quem diria, virá do espaço – quem sabe as novidades que ela poderá trazer?
Por: Raphaela Suzin