Depois de ficar mais de 30 dias inundado pela enchente que atingiu Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, o Aeroporto Internacional Salgado Filho começou a passar pelo processo de limpeza com a expectativa de reabertura até o final do ano. A suspensão das operações da principal porta de entrada para o estado gaúcho mostra como a crise climática não é só uma questão de cuidados com o meio ambiente – quando os eventos climáticos extremos atingem determinada região, os impactos se tornam uma questão de logística, de infraestrutura, de moradia, de saúde pública, entre diversas outras áreas que interferem no dia a dia da população.
Contudo, mesmo diante de uma crise histórica que atingiu quase 95% das cidades gaúchas, do fato de disponibilizar bilhões de reais para a reconstrução do estado e, ainda, e de reconhecer que os impactos do aquecimento global já são uma realidade, — “vivemos as consequências das mudanças climáticas que alguns ainda teimam em negar”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a tragédia no RS —, o governo federal continua a dar sinais de que pretende continuar a avançar em investimentos nos principais causadores da crise do clima: os combustíveis fósseis.
“É contraditório? É, porque estamos apostando muito na transição energética. Mas enquanto a transição energética não resolve o nosso problema, o Brasil tem que ganhar dinheiro com esse petróleo”, reconheceu Lula em entrevista na última terça-feira (18/6) à rádio CBN, ao falar sobre a possibilidade de extrair petróleo da Margem Equatorial, área do litoral brasileiro que se estende do Rio Grande do Norte ao Amapá, a poucos quilômetros da floresta amazônica.
Em março, o então presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, afirmou em entrevista ao jornal The New York Times que a petroleira irá “até a última gota de petróleo, assim como a Arábia Saudita ou os Emirados farão o mesmo”. Substituído por Magda Chambriard no final de maio, as declarações sobre as intenções para a estatal continuaram no mesmo tom: ela defendeu a expansão da exploração de petróleo e citou, inclusive, a extração na Margem Equatorial. Em discurso durante sua cerimônia oficial de posse, nesta quarta-feira (19/6), também argumentou que o petróleo deve financiar a transição energética.
A Margem Equatorial é apontada pela Petrobras como a última grande fronteira exploratória no Brasil, com potencial de garantir a segurança energética do país após o esgotamento das reservas do pré-sal a partir da década seguinte. Porém, a área abrange, entre outras, as bacias hidrográficas da foz do Rio Amazonas, Pará-Maranhão e Barreirinhas, regiões sensíveis do ponto de vista ambiental e com uma rica biodiversidade em parte desconhecida. Um acidente nos campos de exploração, em uma região também conhecida pelas suas fortes correntezas, teria potencial catastrófico, segundo ambientalistas. A Petrobras, por sua vez, afirma que o sentido das correntes marítimas não levariam o petróleo vazado para a costa, em caso de acidente.
Em discurso na FII Priority Summit, encontro internacional de líderes e executivos no Rio de Janeiro na semana passada, quarta-feira (12/6), Lula defendeu publicamente a exploração da Margem Equatorial: “É importante ter em conta que nós, na hora que começarmos a explorar a chamada Margem Equatorial, vamos dar um salto de qualidade extraordinário. Queremos fazer tudo legal, respeitando o meio ambiente”, afirmou. “Mas não vamos jogar fora nenhuma oportunidade de fazer esse país crescer”, concluiu.
O Ibama vetou no ano passado um pedido da Petrobras para fazer uma perfuração de análise na região da foz do Amazonas, a 179 quilômetros do Amapá e 500 quilômetros do rio Amazonas. O pedido, segundo o presidente da órgão, Rodrigo Agostinho, apresentou “inconsistências preocupantes” para uma operação segura em um lugar de “alta vulnerabilidade” e “extrema sensibilidade” socioambiental. O Ibama cobrou da Petrobras uma avaliação ambiental de área sedimentar para poder reanalisar o pedido.
“O Ibama tem uma posição, o governo pode ter outra. E, em algum momento, eu vou chamar o Ibama, a Petrobras e o [Ministério do] Meio Ambiente na minha sala pra tomar decisão”, afirmou Lula na entrevista à CBN.
De acordo com a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima (OC), Suely Araújo, a situação do Rio Grande do Sul é a mais recente, mas há outros casos que ilustram os eventos climáticos extremos: a Amazônia viveu uma seca histórica em 2023 e diferentes regiões do país foram afetadas por ondas de calor recentemente.
“Não dá para o país ser, ao mesmo tempo, um megaprodutor de petróleo e uma potência ambiental. São papéis que não são compatíveis. O ano de 2023 foi o mais quente da história e 2024 caminha para uma situação pior. O mundo precisa seguir para a descarbonização não só no discurso, mas na prática”, disse Araújo.
Além das imagens e dos impactos impressionantes causados pelas enchentes no Sul, o Brasil assumiu o compromisso de sediar a COP30, a conferência do clima da Organização das Nações Unidas (ONU), em Belém, capital do Pará, no ano que vem. O interesse pela realização do evento foi mais uma sinalização do compromisso com a agenda ambiental do governo desde o período de campanha do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Lula trouxe nomes como Marina Silva (Rede), Sônia Guajajara (PSOL) e Joênia Wapichana para o primeiro escalão do governo e, ao sair vencedor nas urnas, subiu a rampa da posse presidencial ao lado do cacique Raoni Metuktire. Muitos sinais foram dados para demonstrar que as agendas ambiental e climática seriam prioritárias na nova gestão.
De acordo com um levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), os subsídios para combustíveis fósseis entre 2018 e 2022 no Brasil foram de R$ 334,6 bilhões, enquanto para as renováveis foram apenas R$ 60,1 bilhões. Em cinco anos, os subsídios aos fósseis cresceram 123,9%, enquanto às renováveis aumentaram 51,7%. Do total direcionado aos combustíveis fósseis, 74% foram destinados à produção de óleo e gás.
Em um evento no Palácio do Planalto em março deste ano, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou que os combustíveis fósseis podem financiar a transição energética, mas que eles não precisam de subsídios por serem altamente rentáveis. De acordo com o associado-sênior do think tank climático Third Generation Environmentalism (E3G), Gustavo Pinheiro, o discurso sobre usar o petróleo para a transição faria sentido caso o produto fosse taxado e se os tributos fossem alocados em atividades de financiamento para a transição.
“Quando descobrimos o pré-sal, a promessa era que ele financiaria a educação. Os royalties de petróleo, que compõem a maior parte do dinheiro que vai para os estados e municípios, têm sido gastos sem nenhum tipo de controle. Infelizmente, a destinação de recursos de petróleo para a transição é só uma narrativa”, afirmou.
O cenário de subsídios não é muito diferente no contexto internacional. Segundo um relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), os subsídios aos combustíveis fósseis atingiram um recorde de US$ 7 bilhões em 2022. Os incentivos equivalem a 7,1% do produto interno bruto global e é mais do que os governos gastam anualmente em educação (4,3%) e cerca de dois terços do que gastam em cuidados de saúde (10,9%).
Contudo, ao mesmo tempo em que os países produtores de petróleo querem explorar o recurso até o fim, os esforços globais para combater a crise do clima têm o objetivo de fazer com que a demanda por combustíveis fósseis caia significativamente nos próximos anos. De acordo com um relatório da Agência Internacional de Energia (IEA), a demanda por óleo, gás e carvão atingirá seu pico em 2030. Além disso, a agência prevê que haverá dez vezes mais veículos elétricos nas ruas e que as fontes renováveis representarão metade da matriz energética global.
Por isso, especialistas também questionam a viabilidade de novos poços no Brasil. No caso da foz da Amazonas, as perfurações que a Petrobras deseja fazer no curto prazo seriam para confirmar a existência de petróleo no local. Mas existe um tempo mínimo, que pode girar em torno de 10 anos, até que a produção se consolide e traga retornos financeiros. Ou seja, a exploração da Margem Equatorial só se viabilizaria no início da próxima década, quando espera-se um avanço maior da transição energética global.
Além disso, o Brasil mantém a sua imagem internacional como a do país que depende, majoritariamente, de fontes renováveis de energia, com destaque para as hidrelétricas e um aumento considerável da oferta de energia eólica e solar nos últimos anos. Para a diretora-executiva do Instituto E+ Transição Energética, Rosana Santos, o Brasil corre o risco de sujar a própria imagem e de tirar o foco da oportunidade de se tornar uma potência verde para investir em um ativo que estará defasado em poucos anos. “Partindo do pressuposto de que os países com os quais o Brasil faz negócios estão levando a sério o net zero até 2050, o Brasil não conseguirá vender esse petróleo por muito tempo”, disse.
Para Santos, o investimento na indústria de baixo carbono vai gerar renda e inverter a lógica de Norte e Sul Global, na qual os países ricos e desenvolvidos, no Hemisfério Norte, têm melhores condições de vida, enquanto os países do Hemisfério Sul ainda enfrentam desafios para garantir direitos básicos. “O problema é de todos. O que estamos sofrendo aqui, de Norte a Sul do Brasil, é consequência da queima de combustíveis fósseis em todo o planeta”, disse.
Apesar dos alertas dados pela ciência, o Ministério de Minas e Energia (MME) tem o objetivo de fazer com que o país se torne o quarto maior produtor de petróleo no mundo até 2029. Por mais que o combustível não seja usado internamente, ele será queimado em algum lugar no planeta – e o Brasil terá contribuído de maneira significativa para novas emissões de gases de efeito estufa em escala global.
Mesmo os ambientalistas sabem que a exploração de petróleo não vai acabar de um dia para o outro. A questão não é tanto sobre encerrar as atividades das petroleiras de imediato, mas, sim, ter um plano para que as atividades sejam direcionadas às energias renováveis, principalmente, no curto a médio prazo. Para Marta Salomon, especialista sênior em políticas climáticas do Instituto Talanoa, o Brasil precisa definir um cronograma com mais investimento em energia renovável e limpa, que ainda é muito pouco.
Para ela, o clima não é um assunto de meio ambiente, é um tema que atravessa todas as áreas de gestão do país. Salomon destaca que a produção de alimentos é um dos setores que mais será atingido pela mudança climática, e que períodos de seca intensa afetam a capacidade das hidrelétricas. Com o aumento de preço dos alimentos, o reflexo será percebido na inflação. “O Brasil é um país muito vulnerável à mudança climática. Não é só o nível do mar que vai subir e cidades costeiras vão ficar debaixo d’água. Tudo está conectado”, disse.