Desenvolver sistemas computacionais que utilizem componentes biológicos, como células cerebrais, proteínas ou DNA é promissor, mas ainda esbarra em desafios técnicos e implicações éticas
À medida que avançamos na Era da Informação, cientistas exploram continuamente novas fronteiras da computação, para além das arquiteturas convencionais baseadas em silício. Diante deste cenário, a biocomputação se mostra uma tendência promissora para modificar a capacidade de processamento de informações e a resolução de problemas nos mais diversos setores.
Na medicina, por exemplo, células programáveis podem oferecer terapias personalizadas para doenças genéticas e câncer. Já na agricultura, a biocomputação pode ser usada para criar organismos geneticamente modificados que são mais resistentes a pragas, crescem mais rapidamente ou produzem mais nutrientes.
Ao combinar princípios de biologia e ciência da computação para criar sistemas biológicos que funcionam como computadores, a biocomputação deixa de recorrer a processadores de silício, como os que temos em nossos computadores e smartphone. Passa, então, a utilizar moléculas biológicas como DNA e até organoides cerebrais para realizar cálculos, processar, armazenar e transmitir informações de formas não convencionais.
As principais abordagens dessa nova fronteira tecnológica incluem a computação de DNA, que usa a bioquímica do DNA para resolver problemas de forma maciçamente paralela; a computação celular, que concentra-se na engenharia de circuitos gênicos e ferramentas de biologia sintética para programar comportamentos computacionais em células vivas; além da computação neural, que cria redes neurais artificiais inspiradas em cérebros biológicos.
Espera-se que o setor de mercado de biologia sintética, intimamente ligado à biocomputação, cresça de US$ 11,49 bilhões em 2024 para US$ 40,2 bilhões até 2035. A taxa de crescimento anual composta (CAGR) deste mercado deve ficar em torno de 12,06% durante o período de previsão (2025 – 2035), segundo dados da empresa de análise de mercado Market Research Future.
Capacidade de computação e baixo custo energético são vantagens
“As principais vantagens da biocomputação são a sua alta capacidade de computação e, principalmente, o baixo custo energético. As redes neurais orgânicas funcionam de uma forma muito eficiente e com custo energético extremamente baixo. É por isso que está todo mundo empolgado com essa tecnologia”, afirma o biólogo e neurocientista Alysson Muotri, em entrevista a Época NEGÓCIOS.
Muotri é um dos pioneiros no desenvolvimento dos minicérebros, estruturas criadas em laboratório que replicam o cérebro humano em seus estágios iniciais de formação.
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Atualmente, uma das principais linhas de pesquisa do cientista está relacionada ao uso da inteligência artificial na ciência. Ele busca entender como o cérebro humano aprende para poder treinar um novo algoritmo de IA, e assim humanizar a tecnologia.
A proposta é usar os organoides desenvolvidos em laboratório para criar uma IA com a mesma capacidade de aprendizado do cérebro humano. Ou, explicando de outra forma, tirar proveito do mecanismo evolucionário que está codificado no DNA de cada ser humano para treinar um novo algoritmo. Essa abordagem da biocomputação poderia potencialmente levar a sistemas computacionais mais eficientes e com menor consumo de energia.
Segundo ele, os organoides cerebrais são a cereja do bolo da biocomputação pela sua capacidade de elevar o poder computacional exponencialmente. “Trabalhamos muito com o conceito de organoid intelligence, tipo de inteligência que deve em algum momento substituir a inteligência artificial”, diz. O conceito a que se refere é um campo multidisciplinar emergente que trabalha para desenvolver computação biológica usando culturas 3D de células cerebrais humanas (organoides cerebrais) e tecnologias de interface cérebro-máquina.
Na opinião do neurocientista, o futuro desse mercado vai estar em aprender como reescrever algoritmos para futuras inteligências que sejam baseadas na biocomputação. Ou seja, a gente não usará mais o tecido orgânico como a base de computação, mas vai aprender os princípios de aprendizado do cérebro: Como é que a gente aprende? Como que a gente guarda uma memória? Como associamos fatos a cheiros, a contextos?
“Tudo isso acontece no cérebro a todo momento e não temos a menor ideia de quais são os princípios fundamentais que a evolução criou para que essas redes neurais consigam fazer isso”, afirma ele. “O futuro da biocomputação está em a gente decifrar tudo isso e transferir o material orgânico para um algoritmo que vai conseguir fazer isso de uma forma única”.
1º computador biológico de uso comercial do mundo já está à venda
Em março, durante o Mobile World Congress 2025, na Espanha, a startup australiana Cortical Labs apresentou o CL1, o primeiro computador biológico de uso comercial do mundo. Do tamanho de uma caixa de sapatos, o dispositivo utiliza um chip com neurônios cultivados a partir de células-tronco para criar uma inteligência artificial biológica.
Sua proposta é baseada na a Inteligência Biológica Sintética (SBI). Em relação à eficiência energética, o CL1 consome entre 850 e 1.000 watts por rack de servidor – uma parcela mínima em comparação aos clusters de GPU convencionais.
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Diferente de modelos de IA tradicionais, o CL1 usa circuito com estimulação neural bidirecional, permitindo que os neurônios aprendam com os próprios dados. “Você se conecta diretamente a esses neurônios. Implementa o código diretamente nos neurônios reais e resolve os desafios mais complexos da atualidade”, afirma a Cortical Labs em seu site.
De acordo com a empresa, cada unidade será vendida por cerca de US$ 35 mil e os primeiros computadores CL1 estarão disponíveis para envio aos clientes em junho.
Setor tem de lidar com questões éticas e jurídicas além dos desafios técnicos
Apesar de inovadora, a integração entre materiais genéticos e tecnologia, especialmente com o propósito de criar sistemas biológicos que funcionam como computadores, traz desafios e levanta algumas preocupações éticas que não devem ser ignoradas.
A própria fabricação do material orgânico, que ainda é muito variável no laboratório, é uma das principais adversidades. De acordo com Muotri, são poucos laboratórios do mundo que conseguem fazer isso, então transformar esses protocolos, deixá-los mais acessíveis e mais reprodutíveis é um dos grandes desafios da biocomputação.
“O outro grande desafio é como você manter o biocomputador ‘vivo’. Porque como ele tem um material orgânico, assim como qualquer organismo, ele precisa ser alimentado o tempo todo. Apesar do custo desse alimento ser baixo, ainda tem que ter uma automação para mantê-lo ativo”, comenta.
Segundo Julia Pazos, sócia de Propriedade Intelectual, Inovação e Tecnologia do Cescon Barrieu Advogados, ao usar redes neurais humanas em sistemas de tecnologia, é preciso entender de onde vem esse material, se o seu uso foi autorizado e se o dono do material sabe para qual finalidade.
“Um consentimento amplo e que não seja específico, ou seja, sem que o dono do dado saiba a finalidade do uso, é extremamente questionável e pode ser considerado antiético. Há também um debate sobre até onde a tecnologia pode ir na simulação de processos cognitivos humanos e tal uso exige controle rigoroso e uma estrutura legislativa específica que antecipe riscos e traga diretrizes claras”, afirma.
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Nestes casos, a advogada orienta que o primeiro passo é garantir transparência na coleta dos dados genéticos, por meio de consentimento claro e direcionado à finalidade pretendida. Depois, é essencial implementar práticas estruturadas de governança, incluindo restrição de acessos, protocolos de segurança da informação, auditorias internas e análise e revisão dos riscos.
E por mais que o Brasil ainda não conte com uma lei específica que trate diretamente do uso de material genético em conjunto com tecnologias avançadas e IA, existem normas em vigor que se aplicam de forma indireta. A LGPD, por exemplo, classifica dados genéticos como sensíveis e estabelece regras rigorosas para seu uso. A Lei de Biossegurança também pode trazer diretrizes para a manipulação de material biológico. Além disso, a privacidade, integridade física e respeito à dignidade humana são garantias constitucionais.
“Obviamente existe uma preocupação que haja uma legislação específica, já que a tecnologia está avançando em passos largos e ainda falta uma legislação que trate especificamente dessa interseção entre biotecnologia e IA, por exemplo. O marco legal da IA, apesar de ainda não aprovado, é um passo importante nesse sentido e já abre espaço para a discussão sobre os limites e responsabilidades no uso de inteligência artificial, inclusive em contextos mais delicados como esse”, diz.
Por: Fabiana Rolfini