O aniversário de 20 anos do carro flex-fuel, tecnologia brasileira que viabilizou o sucesso do etanol, me fez lembrar de uma reportagem (íntegra — 284 KB) que fiz para o jornal O Estado de S.Paulo, em junho de 1989, sobre a poluição causada pela queimada da cana-de-açúcar no interior paulista.
Um levantamento feito pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais) concluiu que, no pico da colheita, a queima dos canaviais no Oeste de São Paulo provocava uma poluição tão elevada quanto a de uma cidade industrial como São José dos Campos.
A pesquisa derrubou o mito de que o ar no interior era mais puro do que nas cidades fabris. As queimadas despejavam nas regiões canavieiras fuligem e grandes quantidades de monóxido de carbono e ozônio, provocando sérias doenças respiratórias.
A reportagem fez um barulho danado entre os usineiros, que chegaram a pedir a minha cabeça à direção do jornal. Em carta enviada ao doutor Júlio de Mesquita Neto, então diretor responsável do Estadão, a Sopral (Sociedade dos Produtores de Açúcar e Álcool) dizia não saber se eu era “verde” ou “vermelho”.
Mesmo conservador e alinhado ao setor rural, o jornal manteve o seu repórter “comunista”. Mais, saiu em defesa da mecanização da colheita da cana em São Paulo, que à época começava a evoluir. Ninguém mais aguentava respirar os gases tóxicos da queima da cana na temporada da colheita e ver quintais e as roupas do varal cobertos de fuligem.
Em 2007, o governo do Estado de São Paulo e as usinas firmaram um protocolo de boas práticas agroambientais, que representou um grande salto à mecanização da colheita.
Hoje, segundo levantamento do IEA (Instituto de Economia Agrícola), a colheita mecanizada já alcança 97% das áreas produtivas de cana do Estado de São Paulo. Foi um grande avanço para a produtividade e sustentabilidade do setor, embora a um custo social altíssimo –a dispensa de cerca de 300 mil boias-frias que trabalhavam na safra. Uma colheitadeira moderna substitui até 100 trabalhadores no corte de cana.
Em menos de 3 décadas, o setor sucroalcooleiro conseguiu girar a chave, passando de inimigo número 1 do meio ambiente à referência em sustentabilidade tanto no campo como na indústria. Práticas como preparo reduzido do solo, manejo racional da palha, rotação de culturas e reciclagem de resíduos orgânicos passaram a ser adotadas por boa parte das usinas e produtores.
Um bom exemplo foi o vinhoto, resíduo tóxico resultante da destilação do álcool da cana. Décadas atrás, ele era despejado nos rios e em mananciais, poluindo a água e degradando os ecossistemas, até os pesquisadores descobrirem sua utilidade como fertilizante ou aditivo para ração animal.
Outros resíduos, como o bagaço e a palha da cana, produzem a bioeletricidade. Em 2022, o setor sucroenergético produziu 18.400 GWh para a rede, geração equivalente a 4% do consumo anual de energia elétrica no ano, capaz de atender a 9,3 milhões de casas.
De acordo com a Unica (União da Indústria da Cana-de-Açúcar), esta produção equivale a redução de emissões de CO2 estimadas em 3,8 milhões de toneladas, marca que só seria atingida com o plantio de 27 milhões de árvores nativas ao longo de 20 anos.
Mas a grande sacada, que garantiu o sucesso do etanol, foi a criação do carro flex pela indústria automobilística brasileira. Antes disso, o consumidor tinha que optar entre comprar um carro à álcool ou à gasolina e ficar à mercê da volatilidade dos preços dos combustíveis e da oferta.
Quem tem cabelos brancos deve lembrar da crise de 1980, quando faltou álcool nas bombas e muitos motoristas, principalmente taxistas, ficaram sem combustível. E muita gente ficava na mão nos dias mais frios do inverno quando o carro a álcool teimava em não pegar.
Com o lançamento do Gol 1.6 Total Flex da Volkswagen, em 2003, o consumidor ganhou a opção de ter um carro capaz de rodar com gasolina e/ou etanol hidratado. Hoje, 83% dos automóveis saem das fábricas brasileiras com esta tecnologia.
Em junho de 2006, entrevistei para a revista Agroanalysis, da FGV, o professor José Goldemberg, à época secretário do Meio Ambiente de São Paulo. Físico conceituado, Goldemberg é um entusiasta dos biocombustíveis brasileiros, como etanol e biodiesel.
“O biocombustível é um sucesso econômico e ambiental e melhorou a qualidade do ar nas grandes cidades como São Paulo. O etanol, ao substituir parte da gasolina, evitou doenças e a morte de milhares de pessoas por problemas respiratórios”, disse o físico, lembrando que quem abastece o carro com etanol ajuda a reduzir a poluição e prestigia uma solução que é desenvolvida no país.
Nessas duas décadas do carro flex, desde 2003, o uso do etanol no país evitou que mais de 515 milhões de toneladas de CO2 eq fossem lançadas na atmosfera. Para atingir a mesma economia de CO2 eq seria preciso plantar mais de 4 bilhões de árvores nativas nos próximos 20 anos.
Mas essa história não termina aqui, como avisa Evandro Gussi, CEO da Unica. O Brasil pode ir além com o desenvolvimento de tecnologias que aliam etanol e eletrificação, e etanol a hidrogênio verde, reduzindo ainda mais a pegada de carbono. Em 3 de abril, a Toyota, Shell Brasil, Raízen, Hytron, Universidade de São Paulo (USP), Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI) e o Senai anunciaram uma parceria para contribuir em um projeto de pesquisa que visa a produzir hidrogênio, o combustível do futuro, a partir do etanol.
Sobre o autor
Bruno Blecher, 69 anos, é jornalista especializado em agronegócio e meio ambiente. É sócio-proprietário da Agência Fato Relevante. Trabalhou em grandes jornais e revistas do país. Foi repórter do “Suplemento Agrícola” de O Estado de S. Paulo (1986-1990), editor do “Agrofolha” da Folha de S. Paulo (1990-2001), coordenador de jornalismo do Canal Rural (2008), diretor de Redação da revista Globo Rural (2011-2019) e comentarista da rádio CBN (2011-2019). Em 1987, criou o programa “Nova Terra” (Rádio USP). Foi produtor e apresentador do podcast “EstudioAgro” (2019-2021).
Fonte: Poder 360