Substantivo. Gíria. Termo usado pelas pessoas que nasceram, cresceram e vivem nas periferias, conhecendo a todos do lugar. No Rio de Janeiro, pode significar também algo como “parceiro”, “amigo de infância”. (Fonte: dicionário popular)
A arte sempre me fez ir além das possibilidades de futuro que se apresentavam. Eu achava que, na arte, caberiam subjetividades que não se adequam a nenhuma outra plataforma, nenhuma outra linguagem.
Naturalmente, como muitas meninas negras, não fui forjada nos museus ou nas vernissages de arte contemporânea, nunca estudei história da arte com propriedade. Mas cresci nas ruas do centro do Rio de Janeiro onde cores, sons e corpos performam um cotidiano complexo, cheio de vida.
Talvez tenha sido por essas ruas que aprendi que arte e técnica caminham juntas na previsão de futuros que só os artistas saberão entender.
TECNOLOGIA, ARTE, FAVELA, PERIFERIA E NEGRITUDE FORMAM UM CALDEIRÃO ESTÉTICO PODEROSO.
Neste último mês estive atravessada por projetos de arte contemporânea que têm me feito avançar nos meus entendimentos sobre tecnologia, mas também sobre o futuro, sobre as transformações que esses projetos podem ser capazes de operar em um sistema ainda tão opressor como é o da arte institucionalizada e das corporações de tecnologia. Estou falando de projetos que saem das favelas e periferias desse Rio de Janeiro em eterna efervescência cultural.
No começo de agosto estive na abertura da galeria SocialCryptoArt, uma iniciativa da 2050 – laboratório de inovação e tecnologia – e dos crias do Santo Amaro, favela da Zona Sul Carioca.
Lá me encontrei com Gean, Osvaldinho e seus companheiros de sonho e luta em uma favela que eles chamam futuro. A 2050 vem formando jovens da comunidade para atuar em projetos que envolvem design, arte, escaneamento e impressão 3D, além de negócios e comunidades artísticas no metaverso.
Os jovens aprendem juntos em tutoriais espalhados pela internet e já têm clientes como L’Oréal, Kenner e Museu do Amanhã.
Osvaldinho me disse que “é hora de ir pra cima”, que a qualidade do trabalho que tem saído do laboratório que fica nas vielas da favela está acima da média do que se vê.
Essa qualidade transborda a técnica (que poderia ser considerada perfeita nos meios high tech onde circulo) e avança para o que brilha ainda mais meus olhos: a melhoria da qualidade de vida e da possibilidade de sonhar proporcionada a jovens favelados.
Entre as duras realidades urbanas e virtuais, os crias do Santo Amaro estão com os olhos atentos em 2050. Espero que até lá o mundo consiga compreender a potência deles.
É fácil reconhecer essa potência na garotada que solta pipa nas quebradas – a arte de domar os ventos e rabiscar os céus, como diz Luiz Antonio Simas. A cultura pipeira sempre me encantou porque congrega corpos, técnicas e territórios.
Simas diz que estamos perdendo as ruas quando levamos os jogos das praças para os celulares. Concordo, mas, como tudo nesse mundo, é preciso relativizar.
Outro dia, troquei uma ideia demorada aqui em casa com Leonardo Souza, cineasta e artista interdisciplinar da Baixada Fluminense e criador do Okoto Studio que também desenvolve experiências imersivas e interativas.
Ele é responsável pelo projeto Rabiola Céu Aberto – uma projeção mapeada interativa onde soltamos pipa com o celular, dividindo a mesma tela com vários jogadores. O projeto já foi exposto em museus e praças públicas nos últimos meses e tem angariado fãs, sobretudo jovens adolescentes, mas não apenas. Uma experiência e tanto que jamais poderá ser comparada com a emoção de cruzar papagaios da laje ou de garantir uma pipa avoada.
Mas o que Leonardo propõe é disputar o imaginário sobre os crias, sobre as crianças e adolescentes negros e sobre os territórios periféricos a partir da brincadeira, do lúdico e da tecnologia. O projeto Rabiola celebra a cultura da pipa e das periferias do Brasil por meio da arte, dos softwares de mapeamento e da interação digital.
Uma das exibições do Rabiola aconteceu no Galpão Bela Maré, em junho. O Bela é um espaço de arte contemporânea que existe desde 2012 e fica na beira da Avenida Brasil, em uma das maiores favelas da América Latina – a Maré.
Ali já vivi muitas experiências estéticas e hoje acompanho a programação do espaço que garante centralidade para artistas negros, LGBTQIA+, favelados, periféricos. Um movimento incontido, uma vanguarda que temos o privilégio de vivenciar.
Sim, eu tenho certeza que estamos vivendo uma revolução. Ela não é só tecnológica, estética, mas periférica. Um guia digital de espaços de arte em territórios “incomuns” àqueles permitidos à arte tem me feito pensar nisso.
O Otrxs Centrxs é uma iniciativa do curador Alexandre Silva, cria da Baixada Fluminense em parceria com o data_labe (ainda vou falar sobre o data_labe em outros textos dessa coluna). O projeto é prova de que a arte que conhecemos sempre esteve vinculada a uma ideia de corpo e território. No mapa, é possível caminhar por outros Rios, reconhecer outras artes e artistas.
O QUE A RAPAZIADA NOS APRESENTA É UM OUTRO REGIME DE VISIBILIDADE ONDE O CORPO NEGRO, MARGINALIZADO E MALTRATADO SEGUE ALTIVO, PODEROSO, TRANSFORMADOR.
Durante o mês de setembro, o Guia Outrxs Centrxs estará na agenda da ArtRio – a famosa feira de arte contemporânea, a instituição da arte, o mercado da arte. Não é trivial.
Menos ainda é a ocupação da 35º Bienal de São Paulo pelos curadores Diane Lima, Grada Kilomba e Hélio Menezes. Corpos negros capazes de coreografar o impossível. Estou ansiosa para visitar a Bienal e reconhecer minhas companheiras e companheiros ali, ocupando o lugar do instituído e transformando-o.
O que a rapaziada nos apresenta é um outro regime de visibilidade onde o corpo negro, marginalizado e maltratado por um sistema perverso e racista segue altivo, poderoso, transformador. Outras narrativas também são possíveis para nós.
Tecnologia, arte, favela, periferia e negritude formam um caldeirão estético poderoso, e isso me faz ter certeza de que, enquanto, em pleno 2023, muitas vezes vemos a reprodução de pensamentos de séculos passados, a juventude negra e favelada já está pautando 2050. Imagina se a gente tivesse mais estrutura, mais oportunidade, onde os crias já estariam?!
Parafraseando o saudoso Gonzaguinha, eu acredito é na rapaziada!
Texto: Sil Bahia