A sustentabilidade do trabalho depende da coexistência positiva de humanos e IA

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A Amazon decidiu, em 2022, dobrar o teto salarial (anual) dos funcionários de tecnologia de 160 mil para 350 mil dólares. Segundo o comunicado interno, a mudança visa alinhar a Amazon com as gigantes de tecnologia como o Google, Facebook, Apple e Microsoft, enfrentando a intensa competitividade do mercado de trabalho em 2021 para reter e recrutar talentos. O movimento da Amazon ilustra o protagonismo da tecnologia num cenário de automação acelerada.

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É cada vez mais intenso o debate público sobre o futuro do trabalho, particularmente os efeitos das mudanças tecnológicas sobre o emprego, os salários e a desigualdade. Com o propósito explícito de “agregar cientificidade” ao debate, o Israel Public Policy Institute publicou o artigo “Race Against the Machine? The Role of Technological Change for Employment, Wages and Inequality” (janeiro, 2022) de autoria de Ulrich Zierahn, professor da Universidade de Utrecht, Holanda. O ponto de partida de Zierahn é o conceito de “Routine Replacing Technological Change” (RRTC), introduzido pelo professor de economia do MIT David Autor.

Autor, um dos maiores especialistas em automação do trabalho, ao lançar o conceito de RRTC em 2003 (“The Skill Content of Recent Technological Change: An Empirical Exploration” ) já alertava que a) as mudanças tecnológicas alteram as habilidades profissionais e b) a tendência é o “capital computacional” substituir os trabalhadores na execução de tarefas manuais e cognitivas, inclusive as mais complexas. O avanço da inteligência artificial (IA), com a chamada “automação inteligente”, acentuou o processo de automação em curso desde meados do século XX. A principal vantagem da IA sobre os trabalhadores humanos é a sua capacidade de detectar padrões “invisíveis” em grandes conjuntos de dados (big data), gerando decisões potencialmente mais assertivas, além de permitir que os sistemas “aprendam” com os dados num processo de aperfeiçoamento contínuo.

Como reconhece o Fundo Monetário Internacional (FMI) (“Should We Fear the Robot Revolution? The Correct Answer is Yes”, 2018), não há consenso em torno da premissa de que a automação gera crescimento e desigualdade por parte de economistas e estudiosos das novas tecnologias. O FMI identifica duas perspectivas: (a) os pessimistas da tecnologia temem uma distopia econômica de extrema desigualdade e conflito de classes com previsões de queda acentuada da taxa de emprego, e (b) os otimistas da tecnologia que, mesmo reconhecendo os impactos negativos da automação a curto prazo, baseiam-se nos processos históricos anteriores de mudança tecnológica com vetor positivo entre destruição e criação de empregos, com aumento de salários e de renda per capita. Em qualquer cenário, mantidas as condições atuais, a automação é positiva para o crescimento econômico e negativa para a desigualdade. Kai-Fu Lee adverte que “o século xxi pode trazer um novo sistema de castas, dividido em uma elite plutocrática de IA e as massas em lutas impotentes” (capítulo “A Human Blueprint for AI Coexistence” no livro “Robotics, AI, and Humanity: Science, Ethics, and Policy”, 2021, acesso aberto).

A automação inside mais fortemente sobre os empregos de salário médio, polarizando o trabalho entre empregos de baixa e alta renda. Em paralelo, a substituição do trabalhador humano pelos sistemas inteligentes gera efeito negativo sobre a renda ao aumentar a competição pelos empregos remanescentes (redução salarial). Segundo o Bureau of Labor Statistics dos EUA, por exemplo, as duas profissões que mais crescem no país são os auxiliares de saúde domiciliar e os auxiliares de cuidados pessoais, com curva salarial decrescente.

As projeções sobre o futuro do trabalho estão permeadas de imprecisões metodológicas e/ou de interpretação, inclusive o famoso estudo dos pesquisadores britânicos Carl Benedikt Frey e Michael Osborne (“How Susceptible are Jobs to Computerisation?”, 2013). O elemento sensível em qualquer pesquisa é a metodologia, nesse caso, Frey e Osborne extraíram suas projeções de expectativas de especialistas sobre quais funções poderiam ser automatizadas, desconsiderando fatores críticos que extrapolam a tecnologia, por exemplo, mudança cultural e processual nas organizações, capacidade de investimento, arcabouço regulatório, além da conjuntura política.

As transformações na economia afetam diretamente o ritmo, a intensidade e a configuração da automação, consequentemente o presente e o futuro do trabalho. Dani Rodrik, professor da John F. Kennedy School of Government da Universidade de Harvard, crê que a economia global pós crise de 2008, pandemia da covid-19 e guerra da Ucrânia será mais fragmentada e regionalizada, decretando o fim da hiperglobalização. Por outro lado, a sociedade hiperconectada gera um conjunto de dados extraordinários estimulando a proliferação de modelos de negócio baseados em dados (data-driven models). São múltiplos os exemplos que recomendam não hipervalorizar, e isolar, os efeitos da tecnologia. É inexorável, contudo, que a sustentabilidade do trabalho como o concebemos está ameaçada.

A pandemia, ao acelerar a digitalização, impactou o trabalho em duas frentes: escassez de mão de obra qualificada – 68% dos executivos brasileiros alegam dificuldade para encontrar profissional qualificado para posições-chave, índice superior ao registrado em países da região, como Argentina (40%), Costa Rica (40%) e México (38%) – e trabalhadores que não conseguem uma ocupação. No Brasil, a pandemia ampliou a desigualdade entre a educação pública e a privada, sinalizando que os jovens menos favorecidos cheguem ao mercado de trabalho apresentando deficiências de formação que nem sempre as empresas estão dispostas a suprir em seus programas de treinamento e/ou qualificação. O relatório do Banco Mundial “Employment in Crisis : The Path to Better Jobs in a Post-COVID-19 Latin America”, 20 de julho de 2021, prevê que a crise da Covid-19 trará efeitos duradouros sobre o emprego, sendo que os trabalhadores menos qualificados tendem a ser mais afetados.

É praticamente consenso a necessidade de requalificar os profissionais investindo em educação. No Brasil as barreiras são tremendas: a) de acordo com o Indicador de Analfabetismo Funcional (INAF) três entre cada dez brasileiros têm limitação para ler, interpretar textos, identificar ironia e fazer operações matemáticas, sendo considerados analfabetos funcionais, contingente que representa 30% da população entre 15 e 64 anos; b) o baixo desempenho no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Programme for International Student Assessment, PISA) da Organização para Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE) sugere, além da baixa qualidade do ensino, uma grande disparidade nos resultados dependendo do contexto socioeconômico dos alunos.

Ensino deficiente é uma barreira aos trabalhadores no uso de tecnologias digitais, gerando, portanto, uma desigualdade digital de segundo nível que restringe ainda mais a mobilidade dos trabalhadores, particularmente os trabalhadores de baixa qualificação. Outro agravante é que o aprendizado formal, mesmo supondo de qualidade para todos, por si só não preenche as lacunas de habilidades associadas às novas funções. As “soft skills” derivam de formação (não de treinamento) adquiridas em múltiplas vivências e experiências, em geral, acessíveis apenas a um contingente restrito da população.

Visando a sustentabilidade do trabalho, as políticas públicas em parceria com o setor privado, precisam incorporar os conceitos de Lifelong learning (aprendizagem ao longo da vida), fundamental para acompanhar a aceleração atual; e Autorregulação da aprendizagem, em que cada indivíduo estrutura, monitora e avalia seu próprio aprendizado, ampliando sua capacidade de retenção de conteúdo e engajamento. O futuro deverá privilegiar quem “aprende a aprender”.

Fonte: época negócio

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