domingo,24 novembro, 2024

A nova ordem da inovação: como grandes empresas estão ampliando o investimento de risco no Brasil

Testar a própria tolerância ao risco ganhou recentemente um novo significado para a gigante de softwares Totvs, com receita líquida de R$ 4,6 bilhões em 2023. Desde 2021, a companhia decidiu dedicar R$ 300 milhões para um fundo próprio de venture capital – o CV iDEXO. Parte desse valor já foi investido em dez startups – da Cromai, que utiliza inteligência artificial para gerar dados para o agronegócio, à IBBX, que imprime longevidade às baterias ao reciclar a energia perdida. Muitas estão em estágio inicial de operação. Nem todas possuem relação direta com o negócio da Totvs. “Queremos nos manter próximos do ecossistema de startups, o que estimula a inovação interna e ajuda a rejuvenescer a companhia, mas também a lucrar com isso”, afirma Dennis Herszkowicz, CEO da Totvs.

Criado em 2021, o CV iDEXO representa o perfil do investimento corporativo de capital de risco (ou apenas CVC, na sigla em inglês para corporate venture capital) no Brasil hoje. Sete em cada dez deles têm menos de quatro anos de vida, segundo uma pesquisa do Global Corporate Venturing Institute, organização que acompanha os investimentos corporativos de risco no mundo, a que Época NEGÓCIOS teve acesso com exclusividade. Com mais fundos em operação, e transações com cheques mais altos, o mercado assume contornos inéditos e começa a despontar como um personagem atuante do ecossistema de inovação no país. Elaborada em parceria com a ApexBrasil, a Fundação Dom Cabral e a Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (Abvcap), entre outras entidades, a pesquisa elaborada pelo Global Corporate Venturing Institute contou com a participação de 42 fundos de CVC locais. O levantamento constatou que 58% deles dedicam a esse tipo de investimento até US$ 50 milhões, e 94% esperam que a iniciativa possa ajudar a trazer insights estratégicos.

A participação relativa do CVC nos investimentos totais de capital de risco mostra o avanço dessa modalidade. De acordo com o Distrito, plataforma de inovação que monitora o ecossistema brasileiro de startups, o número de rodadas de investimentos com participação de capital de risco corporativo saltou de 15, em 2016, para 103 em 2022 (os dados relativos ao ano completo de 2023 não estavam disponíveis até o fechamento desta reportagem). Em termos percentuais, a participação de CVCs na quantidade de aportes no Brasil atingiu 12,3% no primeiro trimestre em 2023 – o maior patamar histórico. Em 2022, chegou a 10,9%. De acordo com a mesma pesquisa, os fundos locais de CVC movimentaram US$ 1,3 bilhão em 2021. Isso representou um salto de 419% em relação a 2020. A queda de 47% em 2022 reflete as turbulências econômicas globais, que também obrigaram os grandes fundos de venture capital a investir com mais austeridade. Esse movimento não anula a expansão robusta de 2016 em diante. Naquele ano, os fundos de CVC do Brasil movimentaram US$ 73,6 milhões. Só nos três primeiros trimestres de 2023, registrou-se um volume quase quatro vezes maior.

A relevância de fundos de CVC no ecossistema de inovação está consolidada em mercados mais maduros. Diversas startups que se converteram em unicórnios, por sinal, devem muito aos fundos de CVC (leia quadro). Um dos principais investidores da ZongMu Technology, por exemplo, a maior desenvolvedora de sistemas para veículos autônomos da China, com US$ 11,4 bilhões em valor de mercado, é a Qualcomm Ventures. Ligado à fabricante americana de semicondutores e softwares para conexões sem fio, este fundo tem mais de US$ 2 bilhões em ativos e um portfólio com mais de 150 companhias.

A estratégia ganha novas adesões em diversos setores e em vários pontos do planeta. Boa parte dos fundos de risco desse tipo no mundo – 40% deles – surgiu a partir de 2020 – e a maioria realiza, em média, mais de quatro negócios por ano. Hoje apenas 35% dos fundos estão sediados no Canadá ou nos Estados Unidos, onde esse modelo surgiu e ganhou tração. Nos anos 1970, a americana ExxonMobil investiu em 37 startups de setores distintos. Foi a maneira que a gigante de petróleo e gás encontrou para se aventurar em outros setores. Instituído em 1991, o Intel Capital tem como foco investir em startups que estão ajudando a moldar o futuro da computação, algo que afeta diretamente o core business da multinacional. Com o tempo, tornou-se mais comum encontrar exemplos em outros setores e regiões do mundo. Fundado em 2013, o Distil Ventures, do qual a britânica Diageo é a principal investidora, tem o propósito de fomentar o desenvolvimento de novos tipos de bebidas. Para as startups que abraça, o fundo de CVC injeta de 250 mil a 10 milhões de libras. Uma das contempladas produz o Seedlip. Trata-se do primeiro destilado não alcoólico do mundo de que se tem notícia.

O maior do gênero é o Google Ventures. Fundado em 2009, tem mais de US$ 10 bilhões de ativos sob gestão. Diversos unicórnios receberam aportes dele. É o caso da Gusto e da Snyk. A primeira, cujo valuation é de US$ 10 bilhões, auxilia no processamento de pagamentos e benefícios de funcionários. Com valuation de US$ 7,4 bilhões, a Snyk ajuda empresas guiadas por software a se manterem seguras. Das mais de 400 startups que receberam cheques do Google Ventures, 65 chegaram ao IPO. Por exemplo? A Uber, que dispensa apresentações, e a GitLab, uma plataforma que se vale de IA para garantir a segurança de todas as fases do ciclo de desenvolvimento de softwares.

Especializada em soluções de gestão de relacionamento com clientes, a Salesforce criou o seu CVC no mesmo ano que o Google. Chamado de Salesforce Ventures, investiu mais de US$ 5 bilhões em quase 400 startups. Uma delas é a Talkdesk, que criou um software de call center em nuvem para companhias (valuation: US$ 10 bilhões). Do total de empresas que caíram nas graças do fundo, 30 já abriram o capital. É o caso do Zoom, do Dropbox e do DocuSign. De 2009 para cá, o Salesforce Ventures já revendeu sua participação em mais de 140 companhias.

Vida própria

De acordo com a pesquisa realizada pelo Global Corporate Venturing Institute, as estruturas que estão sendo criadas no Brasil em geral são enxutas e operam de acordo com suas próprias regras. Para 44% delas, existe uma entidade legal separada e verba totalmente comprometida com autonomia operacional significativa. Esses times têm menos de dez pessoas em 71% dos casos. E 83% dispõem de um head de CVC. Quase a metade (48%) trabalha em estreita colaboração com universidades e laboratórios nacionais, e 45% dispõem de programas para aproveitar oportunidades de inovação interna. “Com o CVC, chegaremos mais rápido a um portfólio de tecnologias que podem transformar o nosso negócio”, diz Julio Ramundo, diretor da Suzano Ventures. Fundado há dois anos, o braço de capital de risco da maior fabricante de celulose do mundo tem como metas incentivar a substituição de matérias-primas de origem fóssil por alternativas renováveis e de baixo carbono e o desenvolvimento de embalagens sustentáveis, entre outras. Estão previstos US$ 70 milhões em investimentos. “A Suzano se vê como uma startup de cem anos”, acrescenta Ramundo. “Por isso, precisa acelerar o acesso à inovação em escala global, para além de suas próprias atividades de pesquisa e inovação.”

Assim como ocorre em diversas partes do mundo, também no Brasil fundos de venture capital e os corporativos volta e meia jogam no mesmo time, mesmo que com propósitos distintos. Conhecida pelas maquininhas de pagamento quadradas, a SumUp, unicórnio com valuation de US$ 8,5 bilhões, recebeu aporte tanto da Bain Capital e do Goldman Sachs quanto do braço de capital de risco da American Express. As cifras concedidas por corporações, no entanto, não raro remetem ao chamado “smart money”. “Os fundos de venture capital geralmente abrem a carteira e acompanham os resultados à distância”, diz o presidente da ABCVC. “Já os corporativos costumam se colocar à disposição das startups para ajudá-las a conquistar mercado.”

“Um CVC, se bem explorado, carrega a credibilidade de seus ‘sponsors’, o que já ajuda a alavancar as startups”, diz Pedro Meduna, cofundador do L4 Venture Builder. Criado há dois anos, o fundo é ligado à B3, que se comprometeu a direcionar R$ 600 milhões a ele, e é gerido de maneira independente. Aposta, principalmente, em startups que tragam inovações relativas a finanças descentralizadas, tokenização de ativos e por aí vai. “A B3 quer estar próxima de ‘teses’ que sejam adjacentes ao negócio principal dela e que tenham grande potencial de crescimento ao longo dos anos”, explica Meduna.

Na Totvs, os recursos estão a cargo de uma gestora independente, a Citrino Ventures, que tem carta branca para alocá-los nas startups que julgar mais promissoras. “Todo fundo de venture capital (VC), inclusive os corporativos, precisa ser tão agressivo quanto o necessário e ter como objetivo o retorno do dinheiro investido”, afirma Herszkowicz, justificando a decisão de colocar o CV iDEXO nas mãos de especialistas no assunto. “Intuitivamente, diria que os fundos de CVC geridos internamente pelas companhias tendem a ser mais conservadores.”

Casos de fundos que concentram recursos de diversas companhias não são raros. É o que se vê no WE Ventures, criado pela Microsoft. Metade dos R$ 60 milhões captados já foram injetados em startups – o dinheiro veio da gigante de tecnologia, da Multilaser, da Porto Seguro, da Suzano e da Positivo, entre outras. Gerido pela M8 Partners e sob o comando de Marcella Ceva, que exerce o cargo de chief investment officer, o fundo só investe em startups com pelo menos uma mulher na liderança – 20% de participação feminina é outro pré-requisito.

Os aportes variam de R$ 1 milhão a R$ 5 milhões. “Um dos objetivos da Microsoft é fomentar o ecossistema de startups, no qual só víamos iniciativas masculinas”, diz Franklin Luzes, COO da Microsoft Participações. Trata-se do braço da companhia responsável pelos aportes em fundos de capital de risco. “Dispomos de tecnologia para ajudar qualquer startup a ganhar escala global”, acrescenta o executivo. Eis outra das razões que levam a empresa de Bill Gates a se aventurar no CVC.

om uma série de desafios pela frente, há motivos para acreditar que o movimento dos fundos de CVC deve continuar a ganhar tração, como indicam as trajetórias de empresas dos mais diversos setores no país (veja os perfis na pág. 42). Outra pista vem da pesquisa elaborada pelo Global Corporate Venturing Institute: gestores brasileiros reservaram capital suficiente para rodadas futuras de startups que entraram para o portfólio. Cerca de 47% deles separaram mais de 20% de seus recursos para isso. Se buscar o risco é uma subversão das regras tradicionais de grandes empresas, um grupo crescente de líderes parece ter disposição para estabelecer uma nova ordem.

Jovens e ativos
Boa parte dos fundos de corporate venture capital acelerou suas atividades a partir de 2020 – e a maioria realiza, em média, mais de quatro negócios por ano

* Pesquisa que considerou 500 entrevistados de 363 fundos de todos os continentes
* Pesquisa que considerou 500 entrevistados de 363 fundos de todos os continentes

– 20% dos fundos estão sediados na América Latina – atrás de Estados Unidos e Canadá (35%), Europa (23%) e empatado com Ásia e Pacífico (20%)
– 40% dos fundos de CVC no mundo* têm menos de quatro anos de vida – 43% surgiram entre 2015 e 2019
– 42% realizam entre quatro e seis investimentos por ano – 23% fecham mais de sete negócios no mesmo período
– 47% investem em outros fundos de venture capital, para acesso à expertise de especialistas, a novas regiões ou a empresas em estágio inicial
– 56% 
miram o mesmo nível de retorno financeiro que fundos tradicionais de venture capital
– 57% investem em empresas em estágio inicial – em 2023, 48% afirmaram o mesmo
– 59% dos fundos têm menos de US$ 100 milhões sob gestão
– 75% dos investimentos miram empresas com sede nos Estados Unidos e no Canadá, embora apenas 35% dos fundos estejam sediados nesses países
* Pesquisa que considerou 500 entrevistados de 363 fundos de todos os continentes

De onde vêm e para onde vão
As empresas que investem em capital de risco no mundo estão bem distribuídas entre diversos setores e portes

* Cada respondente indicou um ou mais setores de origem por CVC, de acordo com a abrangência da atuação de cada companhia e da quantidade de empresas patrocinadoras por CVC - Fonte: Global Corporate Venturing Institute
* Cada respondente indicou um ou mais setores de origem por CVC, de acordo com a abrangência da atuação de cada companhia e da quantidade de empresas patrocinadoras por CVC – Fonte: Global Corporate Venturing Institute
Fonte: Global Corporate Venturing Institute
Fonte: Global Corporate Venturing Institute
*Pergunta de múltipla escolha  - Fonte: Global Corporate Venturing Institute
*Pergunta de múltipla escolha – Fonte: Global Corporate Venturing Institute

Aposta de bilhões
Os maiores unicórnios que receberam aportes de fundos de CVC

ZongMu Technology
O que faz: Maior desenvolvedor de sistemas para veículos autônomos da China
Valuation: US$ 11,4 bilhões
Principal investidor: Qualcomm Ventures

Gusto
O que faz: Auxilia no processamento de pagamentos e benefícios de funcionários
Valuation: US$ 10 bilhões
Principal investidor: Google Ventures

Talkdesk
O que faz: Criou um software de call center em nuvem para companhias
Valuation: US$ 10 bilhões
Principal investidor: Salesforce Ventures

SumUp
O que faz: É conhecida pelas maquininhas de pagamento quadradas
Valuation: US$ 8,5 bilhões
Principal investidor: American Express Ventures

Lacework
O que faz: Fornece segurança para armazenamento em nuvem
Valuation: US$ 8,3 bilhões
Principal investidor: Liberty Global Ventures

FalconX
O que faz: É uma corretora de ativos digitais
Valuation: US$ 8 bilhões
Principal investidor: Liberty Global Ventures

Snyk
O que faz: Ajuda empresas guiadas por software a se manterem seguras
Valuation: US$ 7,4 bilhões
Principal investidor: Google Ventures

Blockchain.com
O que faz: Oferece serviços financeiros para o universo cripto
Valuation: US$ 7 bilhões
Principal investidor: Google Ventures

ConsenSys
O que faz: Empresa de software que faz uso de blockchain
Valuation: US$ 7 bilhões
Principal investidor: Coinbase Ventures

Toss
O que faz: Plataforma de serviços financeiros móveis
Valuation: US$ 7 bilhões
Principal investidor: Qualcomm Ventures
Fonte: CB Insights

Ascensão no Brasil
Com a criação de mais fundos, o corporate venture ganhou participação no total de aportes de capital de risco no país

Fonte: Distrito
Fonte: Distrito

– 75% dos fundos de capital de risco corporativo no Brasil foram criados a partir de 2020 – 20% surgiram entre 2015 e 2019
Fonte: Global Corporate Venturing Institute

* até o terceiro trimestre - Fonte: Distrito
* até o terceiro trimestre – Fonte: Distrito
* até o terceiro trimestre - Fonte: Distrito
* até o terceiro trimestre – Fonte: Distrito

Como estão organizados os CVCs
Os principais modelos de operação para os investimentos

– 10% Capital vem do caixa da companhia, com uma área dedicada sem relação direta com a agenda do negócio
– 13% Capital vem do caixa da companhia sem uma área dedicada, com investimentos esporádicos
– 15% Capital vem do caixa da companhia, mas existe uma área de CVC dedicada, guiada por prioridades do negócio
– 18% Existe uma entidade separada mas com gestão da empresa
– 44% Existe uma entidade legal separada e verba totalmente comprometida, com autonomia operacional significativa
Fonte: Global Corporate Venturing Institute

Fonte: Global Corporate Venturing Institute
Fonte: Global Corporate Venturing Institute

Por que investir
As principais razões pelas quais as empresas se dedicam a CVC no Brasil

– 94% consideram importante ou muito importante para ter insights estratégicos
– 77% consideram importante ou muito importante para engajamento comercial
– 58% consideram importante ou muito importante para ter acesso e opção de criar novos negócios e fazer M&A
Fonte: Global Corporate Venturing Institute

Redação
Redaçãohttp://www.360news.com.br
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