Muitos países ao redor do mundo fazem um planejamento de 15 a 30 anos para suas áreas de ciência e tecnologia e adotam diferentes abordagens de estudos de futuros e foresight para criar e antecipar cenários. É neste quesito que o Brasil escorrega há muito tempo
Cresci ouvindo que o Brasil era o país do futuro. O futuro virou presente, e a promessa continua. Esse é o resultado de uma sociedade que entende o seu potencial, mas, ao mesmo tempo, é incapaz de se planejar de maneira organizada para alcançar objetivos mais ousados.
Os motivos? Podem ser muitos. Questões econômicas, culturais e políticas.
Na minha pesquisa de doutorado, investiguei o processo de inovação nos países emergentes, especialmente nos BRICS. Descobri que o poder de gerar conhecimento e inovação está intrinsecamente ligado com a capacidade do país de planejar suas áreas de ciência e tecnologia no longo prazo.
Um dos casos mais impressionantes, e que sempre uso como exemplo, é o da Coreia do Sul. O país deixou de ser uma nação pobre, com educação de baixa qualidade e pesquisas sem pretensões na década de 60 para virar uma potência em geração de conhecimento e inovação tecnológica. É o resultado de um planejamento de longo prazo, como bem detalhado no livro “Da imitação à inovação”, escrito por Linsu Kim.
Muitos países ao redor do mundo fazem um planejamento de 15 a 30 anos para suas áreas de ciência e tecnologia e adotam diferentes abordagens de estudos de futuros e foresight para criar e antecipar cenários.
É neste quesito que o Brasil escorrega há muito tempo.
O ano era 2014, e eu lembro de estar levantando dados para minha tese quando percebi que o planejamento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) do Brasil terminava naquele mesmo ano. Não havia nenhuma pista do que fariam dali para frente. Quais seriam as estratégias e áreas prioritárias?
De lá para cá, muita coisa mudou. Inclusive, rolaram trocas de governos com posições ideológicas diferentes. O que não mudou foi a inabilidade do Brasil em pensar o seu futuro em ciência e tecnologia.
Avance 10 anos no tempo. Estamos em 2024, e o único planejamento estratégico do MCTI disponível que eu encontrei é o de 2020 a 2023.
A situação fica ainda mais urgente com os avanços da Inteligência Artificial (IA). O Brasil precisa participar da construção do futuro e não somente esperar que as coisas sejam impostas por quem desenvolve tecnologias poderosas.
Muita gente ainda não percebeu, mas podemos estar vivendo exatamente em um daqueles momentos que ficarão na história da humanidade como um ponto de inflexão. Uma marca no tempo que pode ser a mais decisiva de tudo o que vivemos até aqui.
A IA vai trazer mudanças complexas e estruturais por ser um tipo de tecnologia que impacta simultaneamente diferentes dimensões das nossas vidas: cognitivas, psicológicas, afetivas, econômicas, políticas, sociais e culturais.
Ignorar qualquer uma dessas dimensões é abandonar o fato de que agora estamos lidando com um ‘artefato inteligente’ que emula até a linguagem, que é como organizamos nossos pensamentos, planejamos e nos comunicamos.
Sempre ouvi que a linguagem nos distinguiria de outros animais, mas chegamos no tempo em que criamos um ente que também passa a dominá-la. Talvez não exatamente da mesma forma que nós, mas com um comportamento resultante similar.
E tudo isso acontece sem que tenhamos chegado ainda na IA geral, uma máquina superinteligente que supostamente ultrapassa a capacidade cognitiva humana.
Não sabemos ao certo quando – ou se – chegaremos nessa superinteligência, mas o potencial de transformação da IA é tão grande que nomes importantes da ciência estão assinando cartas e mais cartas colocando-a como um risco para a extinção da humanidade, ao lado do aquecimento global e guerras nucleares.
É um exagero?
Mais ou menos. Eu classificaria esse tipo de risco como hipotético. Podemos até discuti-lo, mas como uma hipótese, e sem perder o foco de outros desafios mais imediatos e urgentes.
Devemos focar em como usar a IA ao nosso favor, em inovação que sejam benéficas para as diferentes sociedades, sem perder de vista os conhecidos problemas: vieses, discriminações, falta de representatividade e concentração de poder.
Eu não consigo pensar em nenhum segmento de mercado que não será impactado de alguma forma pela IA. Saúde, educação, segurança, indústria, varejo, serviços públicos, todos se beneficiarão por meio de uma inovação impulsionada pela IA, mas sem estar imune a novos riscos.
A questão que precisamos debater é: como será esse processo?
Hoje, o cenário da IA é de alta concentração nas mãos de pouquíssimas empresas de tecnologias do Norte Global (especialmente nos EUA), que desenvolvem e treinam modelos que serão usados pelo mundo todo.
Se tudo se mantiver como está, vamos ficar cada vez mais dependentes de empresas de fora e seremos apenas consumidores de tecnologias que têm desenhos éticos, valores e representações culturais que podem ser diferentes das nossas.
É nesse sentido que o Brasil precisa participar da discussão global e pensar que seu papel não é apenas de consumidor de tecnologia, mas de fomentador para o desenvolvimento local.
Além do evidente hard power das tecnologias – concentração de chips, modelos, dados e fluxos comunicacionais -, eu venho argumentando em minhas pesquisas e debates que a IA generativa é também uma nova forma de soft power. Ela expressa visões específicas de mundos nos conteúdos que cria – seja de maneira intencional ou por falta de representatividade nos dados de treinamento.
Recentemente, publicamos um artigo científico preliminar em que mostramos as limitações das IAs atuais em representar a identidade cultural brasileira. Algo parecido também acontece com a língua portuguesa.
Se quisermos preservar nossas identidades, línguas, culturas e autonomia, precisamos ter o mínimo de autossuficiência em IA. E quando digo o mínimo, é o mínimo mesmo, porque sei que a competição de igual para igual com os países ricos é atravessar um labirinto sem saída.
Mas isso não quer dizer que devemos jogar a toalha. Podemos pensar em caminhos que facilitem o desenvolvimento local para aplicações específicas. Algumas sugestões pragmáticas envolvem o fomento de criação de conjuntos de dados em português, o estabelecimento de uma infraestrutura computacional nacional e o incentivo de adoção e aperfeiçoamento de modelos de código-aberto para a nossa realidade.
O MCTI anunciou há algumas semanas que irá revisar a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA). Ponto positivo. Mas minha sugestão é que o Brasil ouse e abrace um planejamento de longo prazo que utilize novas formas de pensar sobre o futuro.
Precisamos estar preparados para diferentes cenários, e para isso existem abordagens e ferramentas que serão cruciais para governos e empresas revisarem suas estratégias para IA. Estudos do Futuro, Foresight, Design Especulativo e Governança Antecipatória formam uma caixa de ferramentas que nos ajuda a lidar com a incerteza enquanto criamos e antecipamos cenários do futuro.
Não é mais suficiente discutir uma estratégia autocontida e que projete o amanhã como uma extrapolação do ontem. O futuro é imprevisível, mas a ousadia da imaginação humana é o que permite enxergar as inúmeras possibilidades para estarmos preparados quando elas chegarem.
O Brasil não pode deixar mais nada para depois. Porque, se não, o nosso amanhã será, mais uma vez, criado por outros.
Fonte: Época Negócios