Eles lotam cinemas, enchem feiras, assistem jogos e compram, mesmo. Um público variado que guarda o superpoder que as marcas precisam conhecer

Quadrinhos, séries, filmes, livros, animes… O mundo dos geeks é maior do que todos os multiversos da Marvel. E, mesmo assim, até pouco tempo atrás, a audiência era vista como uma audiência de nicho.

O jogo virou. Só nos últimos dias, o trailer do game Grand Theft Auto 6 teve mais de 100 milhões de visualizações em poucas horas, e a décima edição da CCXP brasileira recebeu mais de 287 mil visitantes.

Não foram situações atípicas do final do ano, foi a regra do ano todo. Das 10 maiores bilheterias de 2023, seis foram de filmes cultuados pelos geeks. Os cinemas encheram e as audiências de streaming também.

Nas séries de mais sucesso neste ano, estão uma versão de um game (“The Last of Us“, da HBO), um live-action de anime (“One Piece“, da Netflix), além de uma série sobre Star Wars (“Ashoka“) e outra da Marvel (a segunda temporada de “Loki“), ambas do Disney+.

The Last of Us (Crédito: HBO)

As turnês mais populares de música de 2023 são de duas artistas preferidas pelos geeks no ano: Taylor Swift e Beyoncé.

“O geek é pop. Estamos saindo do porão, saindo do estereótipo e chegando na vanguarda da produção criativa mundial”, diz Otávio Juliato, CCO da Omelete Company, empresa de entretenimento responsável pela CCXP.

Crédito: beyonce.com

Em parceria com a consultoria GoGamers, a Omelete Company preparou a pesquisa Geek Power, em que traça o perfil deste público no Brasil. De acordo com o levantamento, a renda mensal de metade deles fica em torno de dois a quatro salários mínimos. A maioria (55%) tem entre 22 e 39 anos e curso superior completo ou pós-graduação (52%).

É um público que consome mesmo. Na CCXP do ano passado, o tíquete médio gasto por cada participante dos quatro dias do evento foi de R$ 912.

CADA UM NO SEU QUADRADO

O que marca este público é a paixão por produtos da cultura pop. No Brasil, 42,5% dos que se dizem geeks amam filmes, 18,6% são fãs de séries, 11,6% são aficionados por música, 7,8% por animes, mangás e quadrinhos e 7,5% por jogos.

Embora haja interseção entre os gostos, cada um dos públicos demonstra comportamentos diferentes. Os fãs de quadrinhos, por exemplo, são em sua maioria pessoas com mais de 40 anos e sete em cada 10 colecionam objetos ligados ao tema de interesse. Enquanto isso, 69,4% dos gamers seguem criadores de conteúdo e acompanham streams de gameplay.

Na categoria dos que amam animes e mangás, os “otakus”, quase 40% fazem cosplay (atividade de interpretar e se vestir como seus personagens favoritos).

Crédito: Omelete Company/ GoGamers

Para o pesquisador e membro da GoGamers,Mauro Berimbau, os geeks não são apenas fãs, mas consumidores que querem participar da criação. “São pessoas que querem ajudar a construir os produtos, que fazem questão de se envolver”, afirma.

Quando desbalanceada, essa energia toda pode levar as marcas a sentirem o lado sombrio da força. A paixão anda para os dois lados. Por serem tão presentes e engajados, os geeks são exigentes com o que consomem.

Ter o personagem favorito ou o tema que gostam não é o bastante. Como o que aconteceu com o live action dos Cavaleiros do Zodíaco ou o filme do The Flash. Ambos têm uma base de fãs fiéis, mas a qualidade do produto, os efeitos especiais e a história renderam ondas de críticas fervorosas, o que desestimulou a audiência geral.

NÃO TEM NERD, MAS TEM O HULK

Entender como canalizar a força passa por muito treinamento. Mas não precisa do mestre Yoda, ou de uma Academia Jedi. O primeiro passo é simples: não confundir geek com nerd. São definições que se interpolam, mas não são as mesmas.

O que conecta o público à “identidade geek” é o gosto pela cultura pop e pelo estilo de vida que se liga a essas preferências. O nerd, não exatamente. A palavra pode ser usada para se referir a pessoas que gostam de estudar ou que são boas em assuntos específicos.

OS GEEKS NÃO SÃO APENAS FÃS, MAS CONSUMIDORES QUE QUEREM PARTICIPAR DA CRIAÇÃO.

Na visão de Carlos Silva, sócio da GoGamers, são denominações que carregam julgamentos e preconceitos. O termo “nerd” não costuma ser usado com conotação positiva e, por muito tempo, foi usado como forma de ofender e excluir. Já o termo “geek” se tornou mais popular e divertido.

“O nerd e o geek têm valores muito próximos em diversos comportamentos. Em outros momentos o geek estaria mais associado a alguém tecnológico e o nerd, a um perfil mais informado, estudioso. Esses comportamentos não são muito diferentes, mas é bem possível que, para essas pessoas, esses sejam os parâmetros que definem a sua identidade”, explica Silva.

Final do campeonato de League of Legends (Crédito: Marv Watson/ Riot Games)

No Innovation Fast 2023, o head de parcerias da Garena (criadora do jogo FreeFire), Marcio Milani, contou que já deixou de fazer contratos com marcas porque elas queriam chamar os gamers de nerds. “A marca precisa ser aceita por essa comunidade e se tornar relevante”, afirmou.

Para Mauro Berimbau, outra dica para as empresas se conectarem a este público é entender as subdivisões e as subculturas dentro das paixões. “Existem aqueles que são fãs de séries e aqueles que são super-fãs de ‘Doctor Who‘. Não são exatamente o mesmo público”. Até entre os gamers, se criam subculturas diferentes: há aqueles que amam jogar e os que preferem assistir eSports.

O MONSTRO NO MEIO DA SALA

Embora cheia de poder, a audiência geek tem um calcanhar de Aquiles, uma criptonita: a diversidade. Segundo a pesquisa, 51,8% do público geek brasileiro é composto por homens e um pouco mais de 53% se identificam como brancos. Apenas 20% não é heterossexual.

É uma composição de público que tende a ser reativa a conversas sobre inclusão e representatividade. O que não impediu que, este ano, o filme favorito da audiência geek tenha sido “Barbie“.

Crédito: Warner Bros. Pictures

Quando se pensa em tamanho de produção, tipo de lançamento, estúdios envolvidos e qualidade do blockbuster, “Barbie” se encaixa perfeitamente como produto da cultura pop. Mas o fato de ter uma temática feminina gerou dúvidas entre os criadores da pesquisa. “Quem imaginaria, no ano passado, que Barbie seria o filme mais visto em 2023?”, pergunta Oliviato, da Omelete Company.

Foram também levantadas dúvidas e até brincadeiras quando se revelou que Taylor Swift foi a artista favorita entre os geeks. Nesta semana, a artista recebeu o título de pessoa do ano pela revista “Time“, além de ser indicada como a mais ouvida de 2023 no Spotify e de ter uma turnê que esgotou ingressos pelo mundo todo.

Créditos: Taylor Hill/ TAS23/ Getty Images para TAS Rights Management

A audiência, em sua maioria masculina, se desprendeu dos preconceitos com relação ao termo nerd, mas ainda parece se ligar aos estereótipos de gênero. Romances e comédias românticas figuram entre os livros preferidos dos geeks, mas não são considerados produtos “bons o bastante” por parte da crítica de cultura pop.

Crédito: Amazon Prime Video

Não é incomum surgirem campanhas online que pedem boicote a certo filme ou game por conta da caracterização de personagens femininas ou da escolha de atores negros para protagonizar filmes ou séries. Em 2022, alguns fãs fizeram campanhas contra a série “O Senhor dos Anéis: Anéis do Poder” por causa de um personagem negro como elfo.

O próprio trailer de GTA 6, que causou comoção entre os fãs, recebeu críticas porque, pela primeira vez, os usuários poderão jogar com uma personagem feminina.

Muitos disseram que, por contar com mais personagens negros e latinos, o game estaria sendo cooptado pela “cultura woke” – termo usado para rechaçar as discussões sobre representatividade na mídia.

Mas esse padrão está mudando aos poucos, como explica Andreza Delgado, cocriadora do Perifacon, evento voltado para os geeks da periferia de São Paulo. Este ano, a quinta edição do evento teve público de 13 mil pessoas.

“É importante a gente ocupar esse espaço e mostrar que a periferia não gosta só de um tipo de filme ou série, mas curte quadrinho, anime, games”, afirma Andreza.

Mais importante do que tudo isso, é que a periferia não é padawan (aprendiz), é mestre Jedi. Existem criadores, produtores e designers de cultura pop na favela. O Perifacon mostra esse lado.

Para Andreza, houve transformações significativas no cenário da cultura pop, como o longa-metragem de animação “Homem-Aranha no Aranhaverso”, que ficou em quinto lugar entre as maiores bilheteria no mundo.

O filme mostra um menino negro, Mike Morales, como o super-herói. A mudança é reflexo da entrada de mais negros, negras e mulheres na sala de criação, o que já traz novos efeitos. Um movimento que, diferente da linha da linha do tempo da Marvel, não pode voltar. E que tende a dar ainda mais poderes aos geeks.

Texto: CAMILA DE LIRA